Posições diferenciadas em torno da feitura composicional

A obra é inicialmente um criador. Deus não existe que através do mundo que ele criou,
o Papai Noel que pelos presentes que distribuiu,
o compositor que pelas obras que foram escritas.
Ora, o que é um verdadeiro artista criador
senão aquele que conjuga o controle do instinto,
a evidência do estilo, a recusa das soluções fáceis e, sobretudo,
a originalidade na utilização de meios
(mais do que os meios eles mesmos) com uma afetividade profunda?
Mas sem a técnica, e se apenas a afetividade existir, a obra não existe”.
Serge Nigg (1945-2008)
(o primeiro compositor a escrever obra dodecafônica em França)

O blog anterior suscitou posicionamentos diversos quanto à escrita musical de nossos dias. É natural que assim seja e entendo salutar posições por vezes antagônicas sobre a matéria. Creio que só deve ser descartado o pensamento unitário, radical, a ver uma só verdade. O velho adágio “pior do que não ter lido nenhum livro é a leitura de apenas um livro”. Portanto, recebi posicionamentos de leitores, assim como de Maury Buchala, que me enviou opiniões de músicos respeitados.

Como intérprete a percorrer repertório que tem origem no século XVIII até as correntes hodiernas, entendo que o acúmulo das décadas fez-me avaliar a boa escrita e o talento, assim como a má escrita e a mediocridade. Naquele século há muitas obras que não se sustentaram por falta de embasamento escritural e pela ausência do talento. Daí meu empenho, in conditio sine qua non, de revelar determinados autores quase esquecidos, mas profundamente merecedores de maior divulgação. Daí minha vontade de, entre os 23 CDs gravados no Exterior, em três deles ter privilegiado especialmente compositores contemporâneos com linguagens diversas: o CD New Belgian Studies (Bélgica – De Rode Pomp, 2004), a conter 10 autores belgas atuais, o CD “Estudos Brasileiros” (Brasil, Academia Brasileira de Música, 2006), a privilegiar oito compositores pátrios e o CD “Éthers de l’Infini” (França – Esolem, 2017), a abrigar quatro criadores de três países diferentes, França, Portugal e Bulgária. Os CDs com as integrais de Estudos de Alexandre Scriabine e Claude Debussy (Bélgica – De Rode Pomp, 2002 e 2006, respectivamente) deram início ao aprofundamento nesse gênero musical tão complexo, o Estudo.

Estou a me lembrar do saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Um episódio, já mencionado em blog bem anterior, fez-me pensar numa observação arguta de Luca tão logo entramos numa galeria que apresentava mostra de pintores contemporâneos abstratos. De longe destacou algumas poucas obras de mérito, descartando a maioria. Perguntei-lhe sobre sua aferição da qualidade. Explicou-me técnica e criatividade e a ausência desses atributos em muitos expositores nessa mostra. Serenamente percorremos os corredores e disse-lhe que na música se dá o mesmo, quando da apreciação de alguém versado na matéria. Nas duas áreas das Artes a mídia tem papel preponderante e o incenso pode ser sentido tanto para os meritosos precedidos pela fama como para a mediocridade, a depender de julgamentos tantas vezes estranhos. Nada a fazer.

Admiro a escrita musical competente, oriunda sobretudo de alguns centros de estudos do hemisfério norte. Diria apenas que há outras tendências, baseadas nas estruturas tradicionais. Contudo, há uma paradoxal desproporção quando da avaliação de projetos composicionais pelos institutos de fomento, tanto em nossas terras como bem acima da linha do Equador. Aqueles voltados às tendências “progressistas” – e nelas incluiria a música a partir de sons eletrônicos – recebem as maiores benesses, apesar de, no todo, resultarem em audiências pequenas. Um de seus adeptos já teria confessado em entrevista que se trata de música ainda destinada a guetos. Contudo, aos que professam tendências mais tradicionais, essas verbas de incentivo mostram-se nulas ou minguadas e não é difícil constatar que o apoio dos Institutos de fomento destina-se basicamente às linhas de composição “progressistas”. Não incentivam a linguagem estruturada na tradição, escrita essa professada na atualidade por muitos músicos de inegável valor. Esse é fato real. Como mencionei, apenas a falta de técnica e de talento não deve ser prestigiada. Quanto à linguagem praticada por compositores de diversos credos, posições dogmáticas são perniciosas sob todos os aspectos. Não obstante elas existem, hélas.

Das mensagens recebidas, salientaria inicialmente a do compositor e pensador francês François Servenière, tantas vezes com posições a enriquecer Ecos de blog anterior. Escreve: “Concordo com o post precedente e apenas uma qualidade pode unir as duas entidades de artistas, a sinceridade”. Servenière, voltado a uma linguagem com fortes raízes na tradição, no jazz e na improvisação, apesar de ter conhecido e praticado conteúdos da vertente dominante composicional em França, comenta: “Nossas composições, as de Maury e as minhas, num espelho. Duas escolas de pensamento em comparação, dois modos de expressão ambivalentes, que vão no mesmo caminho de trabalho sensível da apreensão íntima da sociedade; no entanto, duas expressões radicalmente diferentes”. Conclui: ” Na França ainda há forte influência do legado deixado pela escola de Pierre Boulez. Humana, espiritual e artisticamente, essa tendência me deixa frio como gelo, apesar de admirar o domínio escritural incontestável no caso específico das obras de Maury”.

Maury Buchala enviou-me três curtas mensagens de músicos saudando o CD. O renomado compositor Jorge Antunes escreve: “Parabéns pela bela resenha de seu ex-professor. Aproveito para dizer que também ouvi o CD e fiquei impressionado. Gostei bastante das tuas obras, todas muito bem estruturadas e com detalhismo admirável na construção dos pequenos objetos sonoros”. Alexandre Rosa, contrabaixista da OSESP, felicita-o: “Parabéns, bela e merecida crítica deste seu excelente trabalho”. A soprano belga Françoise Vanecke saúda e rememora: “Bravo! Bravo! Conheço pessoalmente José Eduardo Martins!”. Em 1995, Françoise e eu apresentamos, em recital na cidade de Gent, o Poemetto Lirico “Offelia”, de Henrique Oswald. O músico Philippe Hurel e o ótimo violinista Francesco D’Orazio felicitam calorosamente Maury Buchala pela realização de “Portrait”.

Por fim uma “mensagem oral”. Encontrei velho amigo ao passar pelo Largo de São Bento no Centro Histórico de São Paulo. Após cumprimentos, Alfredo diz-me diretamente não entender e não gostar da música de “laboratório”, pois lera o post e ouvira várias obras de Maury através do Youtube. Tínhamos algum tempo e fomos a um café próximo. Uma sua frase, “essa música não tem sentimento”, serviu para que eu lhe explicasse que a prática da escuta leva a entendê-la, possivelmente não sob esse prisma de cunho bem romântico, dos sentimentos, da emoção – “langage du coeur”, nas palavras bem anteriores de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) -, mas através de uma compreensão racional e que, como intérprete, apesar de ter minhas nítidas preferências, e essas são voltadas à música tradicional que para nós, pianistas, remonta ao repertório do século XVIII, ainda sob a égide do cravo, ao me debruçar sobre repertório bem contemporâneo sinto prazer de estudar a trama escritural e as possibilidades sonoras novas. Concordei com ele no sentido de que a música muito bem escrita do Maury Buchala não é para o grande público. Há longo caminho até que a escuta majoritária chegue realmente a apreciá-la. Ao menos nossa conversa de uns bons 15 minutos deve ter servido para reflexão, pois, ao se despedir, Alfredo disse sorrindo: “vou pensar no que você me disse, professor” (num tom bem jocoso, diga-se).

O que podemos imaginar da música do amanhã? O repertório voltado à tradição já deu provas de imanência. Da contemporaneidade, quem subsistirá? Quais obras conseguirão ultrapassar a arrebentação, essas ondas próximas à praia que, vencidas, levam ao grande oceano, à perenidade. Não seria a discussão meramente ideológica um entrave para que a obra, seja qual for a tendência, flua com naturalidade? O embate a partir de ideias pré-estabelecidas pelos “contendores” não levaria a criação, seja qual for a tendência, ao impasse?

Duas frases famosas de Claude Debussy (1862-1918), neste ano em que se comemora o centenário de sua morte: “La musique doit humblement chercher à faire plaisir, l’extrême complication est le contraire de l’art” e “N’écoute les conseils de personne, sinon du vent qui passe et nous raconte les histoires du monde”.

The previous blog (on Maury Buchala’s CD “Portrait”) received much feedback, with some messages holding opposing views on contemporary trends in classical music composition. I believe diversity of opinions is welcome. As a pianist, though I cannot deny my preferences for the traditional piano repertoire, the one recognized as excellent over a long period of time, I’ve always tried to be open to new musical languages, as far as I see in them talent and quality. But will they stand the test of time?