Navegando Posts publicados em abril, 2018

Crônicas singelas e envolventes

Há livros que resultam em mais do que livros.
São rituais de um culto centrado em certo pedaço do mundo;
são chamados à vida de pessoas interessantes que morreriam de fato
se não fossem assim evocadas;
são poemas de bem querer ideados com talento e escritos com elegância,
mente clara  e coração acelerado.
Este livro, o de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza é um deles.
Hernâni Donato (1922-2012)
(Membro da Academia Paulista de Letras)

Botucatu é cidade que pertence ao meu universo de afetos. Dediquei-lhe posts nesses 11 anos de blogs ininterruptos. Desde 1954 lá me apresento, sempre a ter a renda total dedicada à Vila dos Meninos, obra fundada pelo meu saudoso padrinho de crisma, o ilustre prelado D. Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu.

Meu último recital deu-se em 2013, no auditório da Faculdade Santa Marcelina, organizado pela professora Maria Amélia Blasi de Toledo Piza. Ofereceu-me dois livros. Resenhei neste espaço “Botucatu Notas Musicais” (vide blog 02/11/2013). O segundo, “Por que amo Botucatu”, perdeu-se nas minhas estantes. Reencontrei-o ultimamente. De pequeno formato e não caudaloso, acompanhou-me nestes últimos dias. Crônicas amorosas, curtas, a reverenciar a cidade que Maria Amélia tanto ama (Por que amo Botucatu. São Paulo, Scortecci, 2003).

As crônicas, breves, pontuais, com contornos singelos, pueris talvez, retratam fielmente a figura de Maria Amélia, generosa na amizade, estimada pela sociedade local e no meio universitário. Seus trabalhos acadêmicos, dissertação de mestrado e tese de doutorado, versaram sobre os artistas plásticos descendentes do compositor Henrique Oswald. Defendeu-os junto à UNESP.  Magníficos contributos. Abordei essa valiosa contribuição no post mencionado.

“Por que amo Botucatu” está disposto em 67 breves crônicas, nas quais Maria Amélia focaliza situações vividas, mormente na infância e na juventude. Perpassa basicamente as situações possíveis de um cotidiano que se perdeu com o tempo, pois os relacionamentos em todos os níveis mostravam-se diretos, sem subterfúgios. Alguns exemplos desse dia a dia repetitivo retirados da coletânea de crônicas, mas ricos em afetos, merecem ser citados: Zula, uma pagem especial, Os doces da Serafina, A Padaria Esmeralda, Tchocolates, Palanque na praça, Procissão do Encontro, Seu Germano pipoqueiro, A Selaria São José, Retiro espiritual no colégio, A estação de trem, Tradição pianística, Aula de pintura, A banda do Salim, Flores de cerejeira, Professoras de piano, O galinho da  Aparecida, Um Conservatório na cidade, Filmes em casa e tantos outros. Vê-se que Maria Amélia exerce o dom da observação, pois contempla a sociedade como um todo, e o olhar pormenorizado leva à lembrança  reveladora do interior da autora. Dedicar-se-ia à pintura, à música e à vida acadêmica.

Entre as crônicas, a leitura de delicado texto O Thesouro da Juventude levou-me à considerações sobre nossa geração, que sorveu a coletânea com avidez. Abordei em blog bem anterior (vide “Thesouro da Juventude”, 17/10/2009) a rica enciclopédia juvenil e meu apego à coleção que meus pais me ofereceram na adolescência, conduzindo-me a tantas “descobertas” durante a leitura integral  dos 18 volumes. Sob outra égide, com  uma sensibilidade plena, Maria Amélia dedica-lhe uma crônica que ratifica o fascínio que o “Thesouro da Juventude” exerceu sobre  gerações. Transcrevo-a na íntegra, após a autorização da autora:

“Havia um programa que meu irmão Francis e eu gostávamos muito de fazer, embora sofrêssemos por isso: era ir à consulta com o Dr. Júlio Lorenzon. Ele era excelente dentista e morava numa casa à Rua Amando, poucos metros acima do Bosque.

Era uma casa mais moderna do que as que a circundavam, e tinha uma fachada bem art-nouveau, embora fosse colada às vizinhas e alinhada com a calçada. Uma das janelas era do gabinete dentário.

Logo à porta de entrada havia um porta-chapéus, com um ou dois do próprio Dr. Júlio pendurados, que era costume só se sair à rua com paletó de terno, gravata e chapéu. A família dele era composta da esposa, dona Clotilde, e três filhas: Martha, Nazareth e Juilde.

Lá todos gostavam muito de ler, e justamente numa sala anexa havia uma estante cheia de livros, que sempre olhávamos gulosamente de longe, até que dona Clotilde teve a ideia de nos dizer para ler alguns deles, enquanto aguardávamos nossa vez de ser tratados.

Foi assim que passamos pelos contos de fadas russos, alemães, franceses, e quantos mais  estavam lá. Até que um dia pegamos um daqueles volumes encadernados em azul escuro-acinzentado, com o título em dourado: ‘O Thesouro da Juventude’. Sim. thesouro, com h, que a reforma ortográfica era pois recente, e muita gente tinha os livros na ortografia antiga. O livro correspondia a uma enciclopédia de variedades, com informações, curiosidades, jogos, reportagens sobre a vida natural do planeta, extravagâncias de outros povos, contos, lendas de vários países e muito mais. Foi como uma janela, levando-nos do mundo de ficção para outro em que a realidade era a existência de pessoas inteligentes em todas as partes do globo (Quando poderíamos imaginar?).

Quando o Dr. Júlio disse que o tratamento havia acabado, ficamos muito sem jeito, sem coragem de lhe dizer que ainda não conhecíamos nem metade dos volumes da Coleção. Mas aí o Francis apontou a estante e perguntou: podemos voltar para ler? O dentista achou a maior graça, chamou dona Clotilde e combinamos que ela emprestaria um volume por semana para nós, que levaríamos outro quando o primeiro fosse devolvido. Foi a maior festa. A Juilde era minha coleguinha no Santa Marcelina, e também excelente leitora, bem como suas irmãs Martha e Nazareth, que víamos sempre no Colégio. Por isso aquela estante era mesmo uma tentação.

Por muito tempo fizemos essas visitas regulares à estante do Dr. Júlio, até que lemos todinha a coleção. Meu pai procurou em vários lugares de São Paulo, mas a coleção estava esgotada. Alguns anos depois, um viajante da Editora José Olympio passou em casa e mamãe nos fez a surpresa de apresentar uma caixa enorme com a coleção do ‘Tesouro da Juventude’. Pronto, já não tinha o ‘h’, nem a graça que lhe conferia o privilégio de sermos atendidos com tanto carinho pelos dois, o Dr. Júlio e dona Clotilde, abrindo a janela da sala para termos mais luz e escolhermos à vontade o que queríamos ler…”.

Foram várias os livros de crônicas que apresentei ao leitor desde Março de 2007. O gênero é um dos mais agradáveis da literatura, pois apreende a síntese da observação, descrevendo-a, compartilhando-a com o leitor, tornando-o cúmplice. O instante do acontecido desfila no texto, atravessa o tempo e se instala nas poucas páginas que o abriga. Maria Amélia consegue a magia da comunicação e o leitor, brindado, desfruta das décadas vividas pela autora, tendo em acréscimo o privilégio de penetrar no âmago de uma cidade do interior paulista tão rica em tradições. “Por que amo Botucatu” é um pequeno volume, uma joia rara.

My comments after reading the book “Por que amo Botucatu” (Why I love Botucatu), written by the retired university teacher Maria Amélia Blasi de Toledo Pisa. In a series of short narratives, the author recollects events — occurring mostly in her childhood and youth — of her life in the city of Botucatu. I transcribe in full the story entitled “Thesouro da Juventude” (The Treasure of Youth), in which Maria Amélia confirms the appeal this encyclopedia has had to readers of my generation (I’ve already addressed this subject in my blog), allowing us to learn and imagine beyond our immediate and factual environment. On the whole, a delightful book, reminding us that “other times, other manners”.

 


Recepção acima da média

Muita coisa na vida não sabemos se parece
ou se é na realidade.
Agostinho da Silva

O post anterior teve forte guarida. Chamou-me a atenção a possibilidade que se abriu para a colocação de outras manifestações a envolver a música de maneira mais ou menos acentuada. Ficaria evidente, por parte das gerações anteriores, o desalento frente ao que ouvimos como música de entretenimento. Algumas tendências atuais possibilitam, por vezes, se considerada for parcela significativa dos mais jovens, chegar-se ao estado de anestesia ou mesmo de transe.

A empresária Maria Izabel Ramos e o arquiteto Marcos Leite rememoram o passado, a primeira a considerar com emoção eventos não esquecidos: “Que saudades eu tenho da aurora da minha vida, quando podíamos apreciar e viver tão lindos momentos, embalados por orquestras divinas e harmoniosas. Maravilhas!!! Ficaram indelevelmente registrados em nossa memória”. Marcos relembra, ao registrar locais definidos: “Desde meus tempos de faculdade sempre procurei bares e restaurantes em que a música predominante fosse jazz, com a óbvia concessão e mistura com bossa-nova. Um desses lugares que primava pela qualidade era A Baiúca, inicialmente na Praça Roosevelt e, depois, na Faria Lima, onde o seu saudoso amigo Farnésio Dutra, ou Dick Farney, como se tornou conhecido, se apresentava com uma simpatia e uma elegância que cativavam a todos. A última vez que o vi foi numa manhã ensolarada atravessando a avenida São Luiz, num terno de linho branco, sem gravata e com sapatos bicolores, chique na exata medida de sua displicência. Viria a falecer alguns meses depois. E acho que big band remanescente, que me lembre em passado mais ou menos remoto em casa noturna, foi a do Gallery, que enchia a pista de dança quando assumia ao vivo no lugar das gravações eletrônicas, e trazia nomes como Hector Costita e Bolão. Para encerrar e sem querer me alongar muito, restava a Opus 2004, na Consolação, com várias formações convidadas pelo Tito Martino, normalmente reduzidas no tamanho  pela limitação da casa, mas sempre primorosas”.

Esses posicionamentos saudosistas ratificam que essas manifestações musicais eram abrigadas pela classe média ou acima. As apresentações, mencionadas no excelente livro de José Ildefonso Martins e José Pedro Soares Martins, “Big Bands paulistas”, davam-se preferencialmente em salões de clubes ou associações das cidades estudadas.

O professor titular de História da Ciência da FFLCH-USP, Gildo Magalhães, sugere a expansão do tema ao abordar a educação musical na formação básica e outras manifestações musicais alienígenas como o rap e o funk, que tiveram guarida no Brasil, adaptando-se ao meio em solo tropical. Presentemente esses gêneros já vazaram para a sociedade como um todo. No seu longo e inteligente comentário, o professor afirma:

“Ao ler com bastante proveito sua resenha sobre o livro ‘Big Bands paulistas’, não pude deixar de pensar no declínio da música, decadência que acomete nossa civilização contemporânea. O fenômeno é internacional, mas em nosso país atinge extremos assustadores. Esse agravamento tem origem em nosso conhecido descaso público com a educação – aliás, você lembra do papel formativo que tinha a matéria do Canto Orfeônico em nosso antigo Ginásio, ainda uma herança de Villa-Lobos e sua cruzada em prol dos corais e grandes espetáculos musicais ao ar livre. Havia críticas também contra esse modelo, de forte cunho nacionalista, mas o fato é que a juventude saía da escola com alguma ideia de leitura musical e do entrelaçamento da melodia com o ritmo. E, sabemos, nas cidades do interior as bandas e coretos agregavam amadores de música e eram um atrativo de lazer para o público, a que se agregavam de vez em quando as aparições das big bands, em que músicas então populares ganhavam arranjos atraentes com instrumentos de orquestra.

O que hoje substitui essas atrações ganha contornos perversos na periferia das cidades, eufemismo que designa as regiões mais pobres e carentes de serviços públicos. Ao contrário das periferias de países desenvolvidos, que concentram famílias de maior poder aquisitivo e trocam os centros barulhentos por uma aproximação do modelo de ‘casas de campo’, nossas periferias de países atrasados são as casas de tijolos sem revestimento, esgotos lançados nos córregos sem tratamento e as populações mal assistidas de serviços de saúde, escola e transporte, centros de atividades ilegais.

Foi este o terreno em que grassou a música contemporânea, epitomizada pelo ‘baile funk’. Musicalmente privilegiando o ritmo de forma paupérrima e repetitiva, a que se acresce a imitação (mais uma vez) de modelos estrangeiros, como o minimalíssimo rap, eis que o fenômeno se difunde para outras camadas sociais. Num ambiente urbano que desobedece as lei do silêncio, somos atormentados pelos ‘pancadões’, que por vezes varam a noite com sons percussivos monótonos, muitos decibéis acima do que os ouvidos conseguem suportar, entremeados por versos totalmente banais e até obscenos.

Não é difícil encontrar em escolas superiores de maior tradição, como a Universidade de São Paulo, quem seja adepto e praticante do funk e do rap. Em minha função de educador, fico pasmo ao verificar que jovens universitários, que venceram os rigores de vestibulares disputados, nada conhecem da música que representa a grande tradição cultural ocidental e, na verdade, têm preconceitos contra a mesma por simples ignorância. Uma ideologia populista totalmente equivocada justifica esse comportamento porque seria uma ‘aproximação’ com o povo. Felizmente existe alguma reação contra isso e iniciativas como a Orquestra Heliópolis, fundada na favela de mesmo nome em São Paulo, demonstram a façanha que é levar às camadas mais desassistidas a informação musical de maior qualidade, e a resposta dessas comunidades é o desejo de aprender instrumentos da música orquestral e tocar em conjunto, para explorar a rica sinergia melódica e rítmica dessa tradição. É também conhecida a contribuição que traz esse crescimento intelectual ao aprendizado e prática da ciência, pois não é por acaso que muitos cientistas são músicos amadores.

O desafio é conseguir essa formação num ambiente de hostilidade e pouca formação escolar. Quem vencerá: o baile funk ou a orquestra? É este um lado de outra contenda maior: quem vencerá, o analfabetismo funcional ou a educação plena?”.

Concordo plenamente com o professor Gildo Magalhães. Quando abordei, no blog anterior, a visita constante desses grupos vindos de países acima do Equador e que visitam o Brasil assiduamente, comentei que a parafernália luminosa em constante mutação eclipsa a mediocridade da música apresentada e dos pseudo cantores, que vociferam em alto volume enquanto atravessam o palco montado em arenas. Os ingressos são bem caros e os que adoram esses espetáculos acampam durante dias ou semanas, a fim de obter lugares próximos aos “ídolos”. Majoritariamente pertencem à classe média ou acima. É difícil aferir o que lhes vai à cabeça.

Corroborando o fato, que evidencia uma outra etapa na direção de uma outra escuta, manifestações tendo a música, ou a absoluta ausência dela em termos qualitativos, vingaram. O professor Gildo aborda rap e funk, dois  gêneros que penetraram nossas fronteiras geográficas.

Conversando sobre o presente Ecos com meu ex-aluno da década de 1980 na USP, doutor em música pela mesma universidade e hoje consciente pianista e professor, Helder Araújo, dele recebo informe que poderá interessar ao leitor:

Rap é um modo de dizer, de falar, de contar, de ‘bater’ no ouvido a estória, o conto, a ideia. ‘To rap’ seria algo como ‘raptar o ouvinte com a retórica das ruas’. No século XX, década de 60, já era o modo usual dos comícios políticos da Jamaica, logo vira uma forma de protesto, de ativismo político, transplantado para Nova Iorque. Os rappers falavam da violência, da opressão, de amores dolorosos, de ser vítima do sistema excludente, de reagir, de fazer acontecer a revolução. No período subsequente ao ‘maio de 68’ foi ‘música do gueto’, canto de guerra, protesto, música engajada, da ‘justiça social’, dos ‘direitos civis’ dos negros norte-americanos. Gangues tinham seus menestréis e cantaram raptos, rapinas, contaram as guerras das facções, entoaram os feitos da ‘guerrilha urbana’. O rap, política, cultural e sociologicamente considerado, foi parte da ‘crítica de tudo o que existe’ (expressão ligada à famosa Escola de Frankfurt, verdadeira moda dentro das universidades mais chiques e caras dos EUA). O rap foi logo domesticado pela cultura (ou contracultura) industrial de massa, ganhando um contorno mais ‘consciente’, aburguesado, comercial. Rap é ‘um dos cinco pilares do HIP-HOP’, movimento em boa parte promovido por Quincy Jones. Virou ‘rhime and poetry’ (rima e poesia) e se espalhou pelo mundo. No Brasil, o rap foi comido pelo funk ostentação”. Rappers e funqueiros tornaram-se amplamente conhecidos no meio propício e, com eles, os DJs. A mídia tem dado cobertura acentuada a determinados grupos.

O funk oriundo dos Estados Unidos desenvolveu-se por volta de 1950. Tem-se a miscigenação de vários gêneros musicais ritmados e propícios à dança, como o jazz e o soul, entre outros, e praticados inicialmente por afro-norte-americanos. A figura de James Brown (1933-2006) fixar-se-ia como o nome maior. Por volta dos anos 1980, a característica dançante do gênero ganharia força no Brasil e o funk, amplamente baseado numa rítmica repetitiva, atrairia multidões, principalmente nas periferias das grandes cidades. Igualmente ampliou seu leque de recepção, hoje a atingir outras camadas sociais. O denominado funk carioca exploraria em suas letras os problemas das comunidades carentes, assim como o cotidiano, a política, a violência e as drogas.

Festejos tipicamente brasileiros que levam ao gestual da dança, mas de forma livre e por vezes desconexa, podem ser verificados em períodos como Carnaval , Micareta e outras datas, tendo o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, principalmente, como cidades que se caracterizam pela diferenciação das abordagens. Multidões acompanham esses conjuntos montados em trios elétricos ou os aplaudem em arenas especiais. Numa outra direção, a música sertaneja, inicialmente autêntica e simples e a ter como intérpretes genuínas figuras do campo ou do imenso interior do país, que ao som do violão e da viola cantavam textos a louvar o amor, a natureza e as coisas simples da roça, massificou-se com o passar das décadas e presentemente dezenas de duos percorrem o Brasil, descaracterizando totalmente o sentido original do gênero, mas aplaudidos por milhões de seguidores. Para multidões de adeptos interessa apenas o espetáculo.

Considere-se que muitas pequenas cidades espalhadas pelo país cultuam ainda em seus folguedos dançantes a música de raiz, praticada por músicos que, à maneira dos artesãos de antanho, receberam a prática instrumental e a cantoria dos ascendentes, e perpetuam com dedicação o gestual purista da dança típica.

Para as gerações que conheceram o som das big bands e orquestras de entretenimento norte-americanas, constituídas por músicos realmente profissionais de formação sólida, mormente os integrantes dos naipes das cordas, pois muitos instrumentistas dos naipes dos metais e das madeiras tiveram o aprendizado a partir do convívio e da prática constante com ascendentes de talento, entende-se a confessa admiração pelas big bands paulistas, constituídas por músicos sem a mesma formação, mas dedicados às apresentações condignas. Se “Big Bands paulistas”, insisto, livro referencial, menciona bons instrumentistas solistas  dos nossos conjuntos, sugeriria ao leitor a incursão no YouTube para a audição de alguns excepcionais intérpretes dos naipes dos metais e das madeiras dos Estados Unidos: Bobby Hackett, Harry James e Dizzi Gillespie (trompete), Tommy Dorsey (trombone e trompete), Louis Armstrong (trompete e saxofone), Glenn Miller (clarineta), e tantos outros músicos, entre eles inúmeros pianistas excepcionais, principalmente no campo do jazz. Se a existência de magistrais big bands norte-americanas influenciou positivamente a qualidade de nossos conjuntos, a fama, nas últimas décadas, de tantos grupos musicais do hemisfério norte, sem formação sólida e apelando para elementos extramusicais, com a parafernália de luzes e o excesso de decibéis, afetaria ainda mais negativamente as manifestações de hoje em nosso país, como o rap e o funk.

“La civilización del espectáculo”, tão apregoada por Mario Vargas Llosa, é realidade plena, a comprovar a decadência das Culturas, principalmente a Cultura denominada erudita. De minha parte, sinto saudades das big bands, da música dançante praticada no ritmo, diga-se, e não de maneira desconexa e arbitrária, da qualidade interpretativa apresentada, do respeito que havia para com as manifestações musicais de um passado que remonta aos meados do século XX. No que tange à música, o que mais me faz pensar é a progressiva desvirtualização de seus elementos essenciais como melodia, harmonia e estrutura, que faziam parte fulcral dos gêneros existentes voltados ao entretenimento. Presentemente o empobrecimento audível da estrutura musical como um todo, a quase inexistência de modulações e da valorização melódica são a evidência de que algo bem estranho ainda está por vir. Veremos.

The post addressing the book “Big Bands paulistas” received much feedback. I transcribe today excerpts from messages received from readers. Some remind with nostalgia the ballrooms, bars and nightclubs of the past with good music and dancing, while others comment on the downward slide of some genres of today’s popular music.

 

 

 


“História de orquestras de baile do interior de São Paulo”

Violinos, violas e violoncelos foram abolidos
e os instrumentos de sopro foram aumentados,
compondo seções que dialogavam entre si.
Estabeleceu-se um naipe de três ou quatro trompetistas sentados na última fileira,
e outro à sua frente, de dois ou três trombonistas,
permitindo-se certa autonomia entre ambos.
De outra parte o número de saxofones saltou para três,
possibilitando a emissão de três notas diferentes,
o que, teoricamente, é o mínimo necessário para formar um acorde.
Zuza Homem de Mello

A massificação da cultura musical de entretenimento tem aceleradamente descaracterizado princípios vigentes até décadas atrás, relegando o conteúdo da música – no presente, multidirecionado -, tantas vezes, a um pormenor, pois  lampejos do que possa assim ser entendido configuram-se apenas como aparência. A mitificação de ídolos efêmeros, que mais parecem fantoches incandescidos, saudados e imitados por dezenas e dezenas de milhares de jovens com gestuais braçais bem próximos ao que se viu perpetrado pela juventude hitlerista, seria a evidência do culto sem revisão, fanatizado e bestificado. Decibéis altíssimos encobrem a pobreza musical absoluta, camuflada pela parafernália luminosa, estonteante e hipnótica. “Ídolos”, que vociferam acreditando cantar, percorrem a cena como desvairados, semi- desnudos e fartamente tatuados, “músicos” em gestuais desconexos estimulam a malta que, quão mais excitada, mais incentiva a escalada dos decibéis manipulada por técnicos. Essa juventude, que está a ser moldada nessa aberração musical, sequer sabe que o Brasil viveu um período extraordinário em que a música de entretenimento era realmente música, professada por profissionais instrumentistas que, durante décadas, formaram conjuntos que se apresentavam no interior do Estado de São Paulo alegrando gerações, as big bands paulistas.

Um fato evidencia que o contexto a envolver passado e presente, acima mencionado, pode ser constatado durante as 24 horas do dia em várias emissoras FM. A música que se ouve nessas rádios, no que tange à grande divulgação, privilegia a música norte-americana. A minha geração ouvia canções consagradas pelas vozes de Frank Sinatra (1915-1998), Bing Crosby (1903-1977), Sarah Vaughan (1924-1990), Louis Armstrong (1901-1971), Ella Fittsgerald (1917-1996), Nat King Cole (1919-1965), assim como as extraordinárias big bands dos Estados Unidos. As rádios que divulgam o repertório de alto consumo privilegiam hoje, majoritariamente, a música advinda dos grupos norte-americanos e alguns europeus e seus líderes, que apresentam aquilo que as multidões ouvirão nas arenas espalhadas pelo Brasil, apenas, obviamente, sem a parafernália das luzes, o que acentua ainda mais a pobreza dessas manifestações “musicais” envolvendo letras de baixa qualidade. E só de pensar que uma juventude não pensante permanece dias, semanas ou meses a espera desses conjuntos!!! Se as big bands paulistas sofreram influência das norte-americanas, os grupos roqueiros brasileiros, nas várias configurações, tentam apreender o que de mais estupefaciente emana desses grupos acima do Rio Grande, resultando espetáculos quase sempre caricatos.

“Big Bands paulistas – História de orquestras de baile do interior de São Paulo” é livro referencial  (São Paulo, Edições Sesc, 2017). Seus autores, José Ildefonso Martins (pesquisador, professor e advogado)  e José Pedro Soares Martins  (jornalista e escritor) realizaram um trabalho sério no intuito de resgatar, no interior do Estado de São Paulo, um período musical que estava basicamente mergulhado no ostracismo.

Li com grande interesse, pois habituei-me na mocidade, onde imperavam os bailes para jovens e adultos, apesar de minha formação voltada à música clássica, erudita ou de concerto, a admirar a destreza e o empenho de orquestras dirigidas por Sílvio Mazzuca (1919-2003), Georges Henry (1919-2003) e Erlon Chaves (1933-1974), como exemplos.

“Big Bands paulistas” não tem o ranço acadêmico. O texto flui com a maior naturalidade, não dando a perceber a pesquisa profunda em torno do tema. Tem-se o prazer da leitura à medida que as big bands do interior vão desfilando, nas penas dos autores, caracterizações peculiares como elegância dos trajes, respeito aos ambientes, escolha do repertório, confraternização, liderança do maestro e o puro prazer do público que frequentava salões e clubes. Na apresentação do livro, no auditório do SESC-Vila Mariana, os autores explanaram o projeto que levou à edição e passaram vídeos da época das big bands paulistas. Apesar de antigas filmagens, percebe-se o profissionalismo dos músicos e a vontade da apresentação condigna.

Será lógico entender que, para as gerações de antanho, o livro “Big Bands paulistas” apenas ratifica e sedimenta conceitos que delas tinham. Basicamente perduraram durante trinta anos, de 1940 a 1970, sendo que pouquíssimas ainda persistem nesse apego à tradição e voltadas para público que não as conheceu nas origens, mas que sofreu influência transmitida por ascendentes. Os autores salientam uma das causas dessa desativação progressiva das big bands: “O advento dos instrumentos eletrônicos é apontado como um dos elementos responsáveis pelo declínio das orquestras do interior de São Paulo, já que o modelo de música baseado em um número reduzido de músicos mostrou ser economicamente imbatível. Não era possível, para as orquestras de grande contingente e logística complicada, competir com aqueles grupos mínimos de jovens que espelhavam o espírito da época”. E a acrescentar, a existência tardia dos DJs, alguns deles “ídolos” de uma juventude com valores bem diferenciados.

Saliente-se que as big bands paulistas não são autógenas e surgiram sob a aura estabelecida pelos conjuntos que grassaram nos Estados Unidos, mormente em torno dos anos 1930. Para os menos jovens, ficaria a lembrança dessas fantásticas big bands norte-americanas dirigidas por músicos de primeira categoria, hábeis em um ou mais instrumentos, como piano, saxofone, trompete e trombone, preferencialmente. Citemos as big bands de Glenn Miller (1904-1944), Harry James (1916-1983), Tommy Dorsey (1905-1956), Count Basie (1904-1984), Duke Ellington (1899-1974), Dizzy Gillespie (1917-1993), Benny Goodman (1909-1986), Les Elgart (1917-1995) e outros igualmente relevantes. Dois músicos, saudosos amigos, atuando em áreas distintas, eram fascinados pelas big bands americanas. Dick Farney (1921-1987), cantor e pianista, intérprete dos grandes sucessos da música norte-americana, e Gilberto Mendes (1922-2016), um dos mais importantes compositores de nossa história. Mendes, em várias composições e em segmentos de seus livros, testemunha sua incontida admiração.

José Ildefonso Martins e José Pedro Soares Martins historiam de maneira clara e didática a aparição das big bands no interior do Estado de São Paulo a partir dos anos 1940, num período em que a ideologia voltada ao nacional era cultivada e a “matriz” do gênero estava absolutamente sedimentada nos Estados Unidos. Guardando-se as devidas proporções qualitativas, graças à formação dos músicos nos dois países, as big bands de São Paulo mantiveram – algumas ainda continuam a atividade – nível bem satisfatório. Os autores de “Big Bands paulistas” salientam a formação condigna dos integrantes das nossas big bands mercê “…da importância que o movimento de canto orfeônico assumiu em território paulista. Muitos dos componentes de orquestras de São Paulo no período tiveram seu primeiro contato com a música por meio do canto orfeônico nas escolas”. Aliada a essa formação condigna, a influência benfazeja dos conjuntos norte- americanos estendia-se também a aspectos como o elegante trajar, o gestual, quando naipes “solistas” tocavam determinado segmento de uma melodia e os músicos se levantavam e direcionavam seus instrumentos para a direita, para a esquerda ou para cima, e a presença de um crooner que encantava o público com suas canções de caráter preferencialmente romântico. Contudo, as big bands do Estado de São Paulo mantinham em seu repertório as músicas mais divulgadas norte-americanas, assim como sucessos latino-americanos – boleros, de preferência – e  brasileiros, em particular.

Os autores de “Big-Bands paulistas” apresentam as “entranhas” desses conjuntos. Contam suas origens, constituição e particularidades de cada cidade que as abrigava. Não descartam, inclusive, o meio de transporte, pois geralmente cada big band possuía micro-ônibus ou peruas para apresentações fora de seu município. Algumas chegavam a apresentar-se cerca de uma centena de vezes em um ano e aqueles veículos de transporte eram saudados ao chegar em determinada cidade. Destacam a amizade e confraternização existente entre os membros do conjunto, o que permitia um entrosamento mais homogêneo entre os músicos. Pormenorizam a fixação de tantos deles durante muito tempo em um grupo, assim como a passagem de outros para big bands de cidades paulistas que cultuavam o gênero. Desfilam pelo livro, pormenorizadamente, as big bands de Catanduva, Espírito Santo do Pinhal, Franca, Guararapes, Jaboticabal, Jaú, Rio Claro, São José do Rio Preto, Tupã e outras mais.

“Big Bands paulistas” tem como posfácio “As orquestras de baile e sua época”, assinado pelo professor Sérgio Estephan. Dá relevo à Era do Rádio no período estudado e evidencia a importância do Rio de Janeiro nesse mister e do Cassino da Urca, que em determinado momento chegou a contar com três orquestras.

Considere-se que as big bands destinavam sua atividade musical preferencialmente para o baile, que permanecia como um dos grandes eventos sociais das cidades mencionadas. Todas as transformações de uma “música”, hoje massificada e destinada a público de dezenas de milhares de frequentadores, obscureceram um passado de encantamento. Como afirmam os autores: “Resgatar a época de ouro das big bands paulistas constitui o objetivo principal deste livro”. Parte de nossa história musical de entretenimento é vivificada e causa a mais profunda admiração. Entendo “Big Bands paulistas” como obra indispensável e que merece a maior acolhida. Recomendo-o vivamente.

Recovering a musical era that has been forgotten, the book “Bing Bands paulistas” tells us detailed stories of dance orchestras that influenced by American big bands flourished between 1940 and 1970 in the state of São Paulo, particularly in inland towns. In their golden age, bands with skillful musicians toured the State with carefully chosen repertoire and grueling performances in ballrooms, shows and on TV, only to decline in popularity as times and tastes changed. Written by José Ildefonso Martins and José Pedro Soares Martins after a serious research, the book is a must-read for any music lover.