O acúmulo das décadas
Peu à peu, la mémoire m’est cependant revenue.
Ou plutôt je suis revenue à elle, et j’y ai trouvé le souvenir qui m’attendait.
Albert Camus
Chegar aos 80 anos como observador de uma infinidade de acontecimentos sedimenta conceitos, fazendo-os integrantes de um imenso painel que se presta à comparação. A segunda metade do século XX propiciou, às transformações no mapa mundi, na sociedade, nos costumes, nas artes, na moralidade, uma dimensão jamais sentida na história da humanidade. Não seria difícil entender que a nossa geração dos anos 1930, que se acostumou com os avanços relativamente morosos, embasados numa tradição, sofresse o grande impacto da era da tecnologia. Olhávamos para o céu e o deslumbre era nítido ao saber que o homem aterrara na lua. Estou a me lembrar dos primeiros computadores gigantescos e da trajetória de poucas décadas até a presença das miniaturas abrigando funções muitíssimo mais avançadas do que os admiráveis paquidermes computadorizados do passado recente.
A vertiginosa aceleração de todos os processos relativos à caminhada do homem pela história tem sido mais sentida pela geração do passado. No presente, as mudanças constantes não só da tecnologia, mas dos costumes, têm uma destinação imprevisível. Essa constatação pode ser sentida quase diariamente com o aparecimento de tantas engenhocas eletrônicas que competem entre si, cada uma com uma novidade. O mesmo com a indústria automotiva, essa a inovar certamente, todavia a seguir quase sempre o princípio nada lisonjeiro da imitação das formas, do conteúdo e das cores. Creio que nunca na história os carros se assemelharam tanto nesses itens.
Ao longo das décadas assisti à explosão dos Beatles, que para mim sempre foram supervalorizados quanto à qualidade de suas músicas. Contudo a mídia, sempre ela, teve parcela preponderante nessa divulgação, movida por tantos outros interesses. Uma infinidade de grupos “musicais”, majoritariamente inferiores à já duvidosa qualidade dos Beatles, infestaria o planeta e, hoje, o que se vê é a presença dessas “bandas” em arenas, levando dezenas de milhares de alucinados “ouvintes”.
Como não acrescentar que, simultaneamente à explosão desses grupos “musicais”, observa-se a nítida queda relacionada à cultura erudita. O mercado, a determinar a necessidade imperiosa do lucro desmesurado, não tem o menor interesse em patrocinar manifestações voltadas à música clássica, salvo aquelas promovidas por sociedades de concerto, que agendam para o Brasil nomes internacionais. Quanto às salas de “resistência”, pequenas a abrigar o pulsar de nomes menos divulgados, essas por vezes têm apoios mínimos, mas meritórios. Friso sempre que, se os amantes do gênero erudito tivessem em mente que as maiores salas de concerto abrigam de centenas a alguns poucos milhares de um público geralmente fiel quando da vinda dos nomes mais consagrados, a porcentagem é irrisória comparada a esses grupos – roqueiros, rappers e funkeiros – que atravessam os palcos do mundo vociferando e apresentando verdadeira hecatombe musical. As mentes de uma juventude que frequenta feericamente esses eventos não estariam sendo contaminadas pela inequívoca intenção de promotores visando ao lucro, mas na realidade destruindo a cultura tradicional? A minha geração assistiu e assiste a essa degringolada sem fim previsto.
Sob outra égide, a corrupção que sempre existiu no país, hélas, tomou a dimensão de um Leviatã após 2003, a levar o Brasil para essa situação absurda. Dilapidaram e saquearam o Estado e todo o esforço de uma Lava Jato esbarra em estranhas decisões do nosso Judiciário lento em suas decisões, num país onde a quantidade de recursos talvez não encontre paralelo no planeta. Se a violência permeia e se acentua, toda essa desalentadora situação é filha da corrupção, que impede a aplicação de verbas para áreas fundamentais como Educação, Saúde, Segurança e Meio Ambiente.
Apesar dessas linhas plúmbeas, atinjo meus 80 anos tendo realizado os desejos da criança que, aos nove anos, iniciou seu caminho musical. Os estudos em França sedimentaram a opção. Sem jamais ter feito concessões repertoriais a partir dos trinta e tais anos, quando a realidade sempre mostrou a repetição repertorial ditada pela tradição de escuta e pelos agentes e sociedades de concerto, trilhei minha senda, tantas vezes nesse universo a ser descoberto. Apaixonou-me a criação de tantos autores extraordinários que não era visitada. E assim foi. Sem jamais ter tido um agente, senti-me livre nessa escolha e encontrei, sur le tard, André Posman, Diretor da De Rode Pomp, na Bélgica Flamenga. Após um meu recital em Gent, disse-me que deveria deixar minha herança através das gravações. Deu-me total liberdade de escolha repertorial. Era tudo o que eu almejava. Com o CD que gravarei em 2019 na Bélgica serão 25 ao todo. Sinto-me um low profile e isso me agrada. André também o é.
A família é meu porto seguro. Não sei se sem a sua entourage teria eu a palpitação que leva ao desempenho musical e à vontade de aprofundar-me nas leituras e nos escritos que brotam cotidianamente. Os poucos e fiéis amigos, daqui e da Europa, fecham o círculo amoroso do entendimento.
Finalizando, as corridas de rua, iniciadas em 2008 e hoje fazendo parte de minha respiração. Treinos semanais e participação em 163 corridas, entre as muitas agendadas por organizações especializadas, enchem-me de surda alegria.
Meus parcos conhecimentos tecnológicos não me ajudaram diante das possibilidades do novo computador. Confesso que ainda não sei colocar imagens em meu blog através da nova engenhoca. Tentei, pedi ajuda e não cheguei a termo. Desvendarei o segredo, certamente. Tenciono, fora do prazo, inserir magnífica montagem realizada pelo dileto amigo, compositor e pensador francês François Servenière. Realmente incrível sua ideia.
Cheguei aos 80 anos aos 11 de Junho. Meu saudoso pai nasceu aos 11 de Junho de 1898. Comunicou aos amigos o meu nascimento aos 11 de Junho de 1938, ratificando a alegria quando completou 80 anos, aos 11 de Junho de 1978. Encerro o ciclo iniciado em fins do século XIX. Agradeço aos céus por ter chegado a essa idade sem abdicar de minhas profundas aspirações.
Consegui finalmente inserir a montagem realizada por François Servenière, mercê da ajuda de meu dileto amigo Magnus Bardela. Na imagem, da esquerda para à direita: Gabriel Fauré (1845-1924), Henrique Oswald (1852-1931), Robert Schumann (1810-1856), Modest Moussorgsky (1839-1881), Claude Debussy (1862-1918), Jean-Philippe Rameau (1683-1764), J.S.Bach (1685-1750), Carlos Seixas (1704-1742), jem (1938- ), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Jean Doyen (1907-1982, meu professor em Paris), Francisco de Lacerda (1869-1934) e Alexander Scriabine (1872-1915).
My 80th birthday and the reflections it gives rise to: my career choices, family, friends, road races and also growing social unrest in Brazil. In the end, thank God I’ve been able to reach this milestone without renouncing to my convictions.