Temas que segmentos poderosos no Brasil insistem em negligenciar

Que noção de “patrimônio” herdamos secularmente? Não uma noção neutra.
A própria origem etimológica da palavra – do latim: patrimonium
indica a sua carga ideológica: designa o legado do pater.
Consiste no conjunto de bens do patriarca,
sobre o qual este põe e dispõe, transmitindo-o por herança.
Mário Vieira de Carvalho

O notável professor e musicólogo português Mário Vieira de Carvalho, ao abordar em sua conferência mencionada no último blog a destruição dos patrimônios material e imaterial na História, propiciou a uma considerável parcela de leitores reflexões a respeito. Sintetizo mensagens recebidas nas palavras de meu amigo Marcelo – encontro-o quase sempre na feira livre aos sábados – que observou, considerando um exemplo nosso, citadino, que São Paulo fundada em 1554, hoje com mais de 12 milhões de habitantes, praticamente nada mais tem de seu passado. O que nos resta, perguntou Marcelo? Do passado mais remoto, resquícios sem expressão; dos séculos a correr, uns mínimos exemplos. Concordamos plenamente nas prováveis causas: ausência efetiva de uma política educacional pública, incultura a grassar em nossas terras, falta de espírito de civilidade, ganância desmesurada das incorporadoras pelo lucro, corrupção que sempre existiu mas que teve a partir do início do século XXI uma avassaladora e desavergonhada ascensão.

No que se refere à destruição material, assiste-se, mormente a partir da segunda metade do século XX, ao boom imobiliário, a ter na sanha das construtoras de grandes imóveis uma das responsáveis. Diria que, sem considerar conluios que existiram e persistem nas elaborações de planos urbanísticos para a cidade, não tem havido o mínimo respeito para com a preservação das migalhas de nossa história. Ao mercado imobiliário interessa encontrar espaço conveniente e nele construir prédios que, ao longo das últimas décadas, só tendem a ser mais altos. Basicamente não há preocupação com a preservação. A depender do interesse imobiliário por determinada área, investem forte, muitas vezes estranhamente, para que projetos sejam aprovados. Sob outra égide, locais que deveriam ser destinados a parques e praças de lazer são igualmente cobiçados avidamente por incorporadoras sem preocupação com os pósteros e a cidade ressente-se dessa “invasão”. Destruição material de nosso passado arquitetônico e de nossas áreas verdes.

Saudosista, estou a me lembrar da Avenida Paulista nos anos 1954-1955. Os estudos pianísticos tomavam parte considerável de meu tempo e durante o biênio estudei à noite no Liceu Eduardo Prado, na esquina da Rua Pamplona com a mais famosa avenida de São Paulo, sendo que em 1956 retornei ao Liceu Pasteur para finalizar o antigo curso Clássico. As aulas no Eduardo Prado findavam por volta das 23:30 e, após conversas com colegas, caminhava a pé da escola até as alturas do Instituto Pasteur, onde pegava o bonde que me deixava na esquina das Avenidas Domingos de Moraes e Rodrigues Alves, desta descendo até a nossa morada no número 984. Os grandes casarões da Avenida Paulista, a beleza das largas calçadas e das frondosas árvores davam um ar de imponência à via pública, a lembrar avenidas de grandes centros europeus. Muitos desses casarões ou palacetes poderiam ter sido mantidos, sobrando no presente pouquíssimos, perdidos na imensidão de grandes prédios que foram sendo construídos ao longo das décadas, sem padrão de harmonia, cada um a obedecer desiderato individual de cada projetista. Desapareceram as árvores, e as calçadas passaram a abrigar não apenas infortunados sem teto como punguistas e outras mais categorias estranhas, permanecendo quase sempre distantes de quaisquer padrões de limpeza. Presta-se a Avenida Paulista às manifestações de toda ordem. Terra de ninguém, na realidade.

Se menciono a Avenida Paulista, tantos outros exemplos espalhados pela cidade podem ser considerados, casarões com qualidade arquitetônica real destruídos pelo avanço imobiliário. Nada a fazer, pois pouco restou desse passado relativamente recente. São Paulo, com algumas lembranças do passado, é uma cidade com Alzheimer.

Se cidades brasileiras tiveram um maior respeito pelo patrimônio material, louve-se o conjunto de medidas que levou a preservá-lo. Numerosas igrejas, casarios que remontam ao século XVIII e monumentos ainda são conservados. Muito pouco para um imenso país. Geralmente encontráveis em cidades menores.

Mário Vieira de Carvalho afirma com firmeza que a destruição material é fruto da “ação intencional”. A destruição imaterial seria também voluntária. Ao concluir que a destruição sistemática da cultura erudita é irreversível, Mario Vargas Llosa, em “La Civilización del espectáculo”, enfatiza inclusive a deterioração dos níveis culturais como um todo. Menciona Vargas Llosa as artes plásticas nas  Bienais. Deixou de frequentá-las pela absurda ausência da qualidade da “arte” apresentada. Importa, segundo Vargas Llosa, o espectáculo, a presença maciça na mídia, afirmando que estar fora dela é permanecer, mesmo com toda qualidade individual, decididamente ignoto. A mídia não irá em busca da qualidade. Grandes patrocinadores de eventos gigantescos, que alugam espaços na mídia através da publicidade, têm fundamental influência nas matérias divulgadoras desses eventos. É uma enorme engrenagem, não sendo difícil entender que a qualidade artística, no caso, é o que menos importa. Sem precisar nomear integrantes do Rap, do Funk, do Rock, do Pagode e do falso sertanejo, das manifestações “artísticas” apresentadas em Bienais, da literatura precedida pelo marketing imperioso e da novela televisiva como exemplos, o que ocuparia imenso espaço, considere-se que a mídia os divulga ad nauseam. Ao público, seguidor do que lhes é apresentado exaustivamente, inclusive pelas redes sociais previamente inteiradas dessa gigantesca parafernália criada, não resta outra coisa a não ser a vontade imperiosa de deglutir o espectáculo de ocasião. E a preservação da cultura imaterial estruturada no passado? As novas gerações, massacradas pela intensa divulgação da qualidade duvidosa do presente, basicamente perderam contato com as culturas precedentes. A destruição imaterial se consolida impulsionada pelo apetite do lucro desmesurado. Promotores que não têm o menor verniz cultural organizam sistematicamente eventos que possam abranger a maior quantidade de um público que, também vertiginosamente, tem seu nível de conhecimento cultural reduzido a níveis baixíssimos, quando o tem. Louve-se a preservação – com que sacrifícios? – das manifestações tradicionais voltadas à dança e a cantoria de raiz, sem patrocínio, sem divulgação e que envolvem comunidades inteiras por este imenso país. Atravessam os séculos a encantar aqueles que as conhecem.

Realmente não se pode acreditar numa reviravolta. A tendência é a diminuição acentuada da qualidade. Políticos e empresários se entendem muito bem. Assiste-se, numa escala geométrica, ao desprezo desses pela qualidade artística. Os governantes escasseiam as verbas para a Cultura e a pequena parcela a ela destinada é aquinhoada por grupos, sempre os mesmos, que sabem bem o caminho da fonte. As empresas estão praticamente focadas na quantidade dos consumidores e pouquíssimas são aquelas que incentivam a arte da resistência.

A destruição material tem sempre maior impacto do que a imaterial. O aniquilamento imaterial, surdo, urdido sob manto voluntário, tem sido devastador. Não quiseram implementar no governo precedente novos currículos para a História e a Literatura, abolindo períodos referenciais daquela e nomes consagrados das letras ao longo dos séculos, inclusive Camões? O pior, sem o menor rubor. Queimaram-se os cravos, instrumento considerado monárquico na Revolução Francesa, mas as partituras permaneceram, preservando-se a interpretação imaterial. Durante o período da Revolução Cultural Chinesa (1966-1976) instituída pelo líder Mao Tsé-Tung, milhares de partituras e livros foram queimados e professores mortos (vide blog: “La Rivière et son secret” – A pianista Zhu Xiao-Mei e os segredos desvelados”, 06/11/2009). O que entenderia como aniquilamento surdo, sombrio, é o patrimônio imaterial que, tendo sobrevivido às hecatombes em heroico renascimento, pouco a pouco está a ser exterminado, sem revolução, sem gritos, sem massas iradas, sem a voz e o som dos menos aquinhoados, mas sim através da indiferença dos poderosos e da sanha sem limites dos tantos envolvidos com esse espectáculo aceleradamente voltado ao niilismo. Encruzilhada.

On tangible and intangible heritage and on the systematic and deliberate destruction of our national culture as a whole, since nowadays nothing seems to be worthy of preservation for the future.