Três Participações Referenciais

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Adágio Popular Açoriano

Tardiamente comento três participações relevantes durante o “Guimaramus 2018”, Simpósio Musical de Guimarães, realizado em Maio último. Outras igualmente importantes, ocorridas durante o “Guimaramus 2018”, não as abordo pelo fato de não as ter presenciado, pois estive na lendária cidade durante turnê em Portugal a fim de realizar recital de piano no Simpósio – tema de um dos blogs de Maio -, seguindo após para outras apresentações. Conferência e duas palestras versaram sobre temas contrastantes e foram oferecidas pelos professores musicólogos Mário Vieira de Carvalho, José Maria Pedrosa Cardoso e pelo pianista e professor Luís Pipa, figuras de relevo na cultura musical de Portugal. Os contributos dos três especialistas, comentados neste espaço, foram publicados em livro aos cuidados da Sociedade Musical de Guimarães e da Universidade do Minho, juntamente com os textos de outras palestras proferidas por ilustres professores portugueses da área. A organização do volume esteve sob a responsabilidade dos professores M. Helena Vieira e Armindo Cachada, igualmente palestrantes.

De grande interesse a conferência de abertura do Simpósio proferida por Mário Vieira de Carvalho, “Patrimônio Musical: da legitimação ideológica à problematização crítica”. O autor aborda tema atualíssimo, apesar das origens ancestrais: patrimônio material e patrimônio imaterial. Do primeiro, inteira-nos a exemplificar desde a época clássica da civilização ateniense (século V a. C.), observando vários episódios em que se deu a destruição do patrimônio material, fato que perdurou através dos séculos, a culminar ultimamente com a destruição, pelos integrantes do Estado Islâmico, de tantos monumentos criados pela civilização em tempos idos. A constante destruição material mereceu do autor sutil observação quanto à origem do ato: “Não por desconhecimento ou subvalorização da noção de preservação de patrimônio cultural, nem apenas por mero efeito colateral de guerras e catástrofes. Mas sim, antes de mais, e sobretudo, por ação intencional”. Considera que “o que nos separa hoje do fundamentalismo islâmico, na sua sanha destruidora do que consideramos ser patrimônio da humanidade, separa-nos não menos radicalmente da cristandade medieval, que sancionava práticas semelhantes”.

No plano da “destruição” de um patrimônio musical material e imaterial, Vieira de Carvalho, embasado em textos de estudiosos de passado recente, ratifica e acrescenta dados novos. Considera a “ação de grupos e autoridades hostis a práticas musicais, um pouco por todo o mundo: desde países como o Afeganistão, Irã, Líbano, Turquia, onde é inspirada pela teologia mais conservadora do Islão, até o Rap na França, passando pela África do Sul na época do apartheid, o Zimbawe, os Estados Unidos e vários países da Ásia e da América Latina, em que a censura musical assume diferentes matizes e motivações político-ideológicas”. Nas reflexões que se seguem, Mário Vieira de Carvalho coloca em pauta a notação musical – representação gráfica dos sons -, que impulsionaria a evolução da música europeia, a consubstanciar a preservação de acervos preciosos, mas que originalmente veio para cercear a liberdade musical perpetrada pela oralidade. Cita a notação neumática, que nasce nas fronteiras dos séculos VIII-IX, como fundamento teológico decorrente da “política centralista de Carlos Magno”.

Em uma segunda parte de sua conferência, Mário Vieira de Carvalho, que bem anteriormente já escrevera livro relevante, “O Teatro de São Carlos – na mudança de sistemas sócio comunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias” (Maia, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993), aborda um problema vital para a cultura musical em Portugal, o Teatro de São Carlos, destinado essencialmente à ópera. Ao longo dos séculos XIX e XX, o Teatro de São Carlos privilegiou basicamente a ópera de além-fronteiras portuguesas, mormente a italiana ou traduzida para essa língua, raras vezes voltando-se à criação genuína feita em Portugal. Escreve o autor: “Isto coloca-nos perante a questão: quando celebramos o Teatro de São Carlos como patrimônio estamos a celebrar o quê? Uma tradição brilhante de importação da ópera e dos seus grandes intérpretes internacionais como mercadoria de prestígio? Uma tradição faustosa de galas reais e presidenciais que lhe valeu a função de ‘sala de visitas’ de Portugal? Ou simplesmente o edifício que lhes serve de cenário – o que este vale como patrimônio arquitetônico (tardo-barroco no seu interior e neoclássico na fachada)?” Vieira de Carvalho mencionou várias citações de Eça de Queiroz (1845-1900), cáusticas quanto à programação e à frequência aristocrática. Em termos brasileiros, o Theatro Municipal de São Paulo não apresentou durante longas décadas óperas exaustivamente repetidas criadas na península itálica? Tanto em Portugal como no Brasil, a produção nativa nesses teatros é minimamente considerada, como para aliviar consciências comprometidas.

José Maria Pedrosa Cardoso direcionou seu olhar, paralelamente às significativas pesquisas que tem realizado sobre a música em Portugal ao longo dos séculos (vide blogs: 19/04/2008, 31/07/2010, 17/08/2013 e 23/11/2013), igualmente às composições de Fernando Lopes-Graça. Sua rica comunicação abordou obras já referidas em vários blogs anteriores. O tema “A Alma da Portugalidade nas Viagens na Minha Terra e em Cantos Sefardins de Fernando Lopes-Graça” possibilitou a Pedrosa Cardoso embasar seu contributo com citações bibliográficas precisas, a salientar como premissa o fato de ser Portugal “o mais velho país europeu pelo fato de as suas fronteiras serem idênticas desde 1297, com a assinatura do Tratado de Alcañides celebrada entre o Rei D. Dinis e o Rei de Castela, e ainda possuir uma língua comum unificadora de projetos, decisões e sentimentos da sua população ao longo de quase novecentos anos”. A seguir, evidenciou a imensa importância de Fernando Lopes-Graça nessa árdua missão de preservar, estudar, recriar de maneira rigorosamente pessoal e, por que não dizer, genial, o que de mais intrínseco existe na alma portuguesa. Expande pesquisas anteriores sobre duas obras basilares de Lopes-Graça, fazendo-o argutamente. Das Viagens na Minha Terra escreve: “Lopes-Graça não presta atenção ao material folclórico como tema e desenvolvimento mas assume-o fragmentariamente como pretexto para criar miniaturas, nas quais a citação do tema popular é apenas indicativo de um estado de alma tanto quanto possível identificador do evento invocado por aquele tema”. Quanto aos “Cantos Sefardins”, escreve Pedrosa Cardoso: “Na realidade, Lopes-Graça trata aquelas melodias com o maior cuidado: sem tocar no seu melodismo, ele consegue transformar as melodias tradicionais sefardins em verdadeiras joias com marca individual, através de um acompanhamento virtuosístico, por vezes quase acrobático…”. Os 12 Cantos Sefardins tiveram a primeira audição mundial em São Paulo (Rita Mourão Tavares – soprano, JEM – piano). Quanto às Viagens na Minha Terra, o leitor poderá ouvir as 19 peças que compõem a coletânea através do YouTube, com as imagens de cada aldeia percorrida pelo compositor e preparadas por Pedrosa Cardoso e sua esposa Maria Manuela:

YouTube Fernando Lopes-Graça Viagens na Minha Terra José Eduardo Martins piano.

A terceira comunicação a que assisti foi proferida pelo pianista e professor da Universidade do Minho, Luís Pipa: “Contextos de Expressividade na Interpretação Pianística”. Plena de interesse, Luís Pipa inicialmente expõe a existência do recital solo, que surgiu em meados do século XIX com Franz Liszt (1811-1886) e pouco a pouco passou a figurar como definição que perdura até hoje. Apesar dessa realidade, durante mais de um século persistiu o recital com a presença de vários intérpretes executando obras de média duração. Se o piano instrumento permanece basicamente inalterável desde as primeiras décadas do século XX, se o recital de piano continua a ter sensível acolhida, consideremos as observações de Luís Pipa: “Como é que, com a música produzida por esses meios aparentemente tão rudimentares, se consegue que o público continue a comparecer em massa a recitais, esperando que o pianista toque as obras que, não infrequentemente, já ouviu dezenas de vezes? O que esperará esse público? O fascínio poderá residir precisamente na resposta a esta questão: o público quer sentir-se ‘desassossegado’ de alguma maneira. Não deseja ficar indiferente aos sons emanados daquele instrumento; pelo contrário, deseja sentir que quem está a tocar o faz de uma maneira que se assume como própria, ainda que interpretando algo que ficou, por vezes desde há vários séculos, registrado de uma forma perene num pedaço de papel. A verdade é que, por muito que se advogue em alguns meios mais conservadores que o papel do músico é o de ser apenas um fiel transmissor da vontade do compositor, devendo abdicar de qualquer ingerência de índole mais pessoalizada durante esse processo, o público, o que verdadeiramente quer ouvir, é o que o pianista ‘x’ ou ‘y’ poderá trazer de único às peças que vai executar”.

Desde 2007 tenho salientado em muitos blogs dois aspectos fulcrais bem expressos por Luís Pipa, o repertório e a individualidade do intérprete. Quanto ao repertório, sou defensor da revelação de obras basicamente desconhecidas do passado à contemporaneidade, mas, por inúmeros motivos, não apresentadas pela grande maioria dos pianistas. A interpretação deve ter como objetivo essencial a qualidade do som, a busca incessante da condução equilibrada dos elementos que constituem a trama musical, o esmero para que o conjunto interpretativo seja perfeitamente homogêneo, mercê da escuta apurada do pianista. Luís Pipa observa que “a questão da individualidade sonora é na verdade um dos fatores essenciais que diferencia a identidade dos diversos pianistas perante o seu público”.

Não poucas vezes tratei nesse espaço a respeito da gestualidade, do gesto natural à “necessidade imperiosa” de determinados pianistas, preocupados na essência com a imagem que será captada por câmeras ou vista ao vivo pelo público. Luís Pipa aborda a gestualidade e entende que “o gesto pianístico deverá ter a capacidade de influenciar decisivamente o resultado musical pretendido, independentemente do aspecto comunicacional que poderá, por acréscimo, representar”. Sempre é bom salientar o exagero desmesurado de determinados pianistas quanto à gestualidade, por vezes caricata. Finaliza Luís Pipa: “Independentemente de todos os considerandos objectivos sobre qualidade e equilíbrio do som, articulação, fraseado, ou sobre o gesto expressivo esclarecedor do sentido musical, existirá sempre um elemento insondável que ultrapassa o universo do concreto e que se traduz no fascínio da empatia por vezes avassaladora que se cria entre público e artista: e esse não é explicável”.

Luís Pipa ofereceu-me dois de seus CDs unicamente com obras de Mozart, muitas delas pouco visitadas pelos intérpretes. Têm-se as Fantasias em dó menor, K. 396 e K.475, em ré menor, K.397, o Adagio em si menor, K.540, o Rondó em ré maior, K.485, as Doze Variações em dó maior sobre o tema Ah, vous dirai-je maman, K. 265, assim como as Nove Variações em ré maior sobre um tema de Duport, K. 573. Nesse álbum duplo, um CD com as tonalidades menores e um segundo com as maiores. Luís Pipa tem concepção sensível e pessoal das obras interpretadas. O músico reflexivo da palestra acima mencionada mostra-se sereno e absolutamente à vontade nesse aparentemente menos complexo universo mozartiano. Andamentos, fraseado, articulações, dinâmica, agógica, pedalização, todos os elementos realizados com estilo, competência e naturalidade. Bela interpretação.

Parabenizo os organizadores do Simpósio “Guimaramus 2018” pela criteriosa seleção das comunicações e pela publicação a tempo de todos os textos em livro referencial.

In this post I comment on three talks presented by eminent specialists during the Simpósio Musical de Guimarães (GuimaraMus 2018), held last month at the Portuguese city. The three works, written by musicologists Mário Vieira de Carvalho and José Maria Pedrosa Cardoso and by the pianist and teacher Luís Pipa, are part of the book “Pensar a Música”, which brings together all the papers presented at the symposium.