A leitura a levar ao debate de ideias

O significado, na música,
estabelece-se para o compositor durante o processo da criação,
para o intérprete e o ouvinte, no curso da execução.
Nos dois casos ele emana do “percurso sendo feito”, ou seja,
de uma obra a  evoluir no tempo.
Vladimir Jankélévitch
(“La Musique et l’innéfable”)

As entrevistas de dois notáveis compositores, Henri Dutilleux e Arthur Honegger, despertaram profundo interesse, mercê de temas fulcrais debatidos. Mensagens curtas, salientando a extrema clareza dos entrevistadores e entrevistados. Creio que a prolixidade do discurso se acentuou a partir da segunda metade do século XX. Frisei o campus universitário como terreno propício, tantas vezes, ao discurso inócuo, a traduzir vaidades não confessas.

Gildo Magalhães, professor titular e Diretor do Centro de História da Ciência da USP, escreve: “o blog da semana e o anterior constituem uma mesma aula magistral. De mestre, porque ensinam e transmitem o saber, mas também porque incitam o recipiente a refletir, longe de tanta aula pedante e rasa. Neste sentido, sempre julguei empobrecedora a aplicação meramente cronológica de estilos e escolas, tanto na música quanto nas artes visuais. Clássico, romântico, etc. são designações acidentais, não essenciais. Bach, Mozart, Beethoven, assim como Schumann e tantos outros, criaram fugas e música que transcendem suas épocas. Há marcas do seu tempo, sem dúvida, mas que empalidecem perto do que têm de intemporal, do verdadeiramente humano. Conhecidos comentadores musicais, inclusive alguns deles músicos, como você sabe, parece que vivem prisioneiros de caixinhas cronológicas, de onde não saem por preguiça de pensar”.

François Servenière, compositor e pensador, emite opiniões contundentes sobre as duas entrevistas. Diverge sensivelmente da epígrafe do primeiro post sobre “Plaisir de la Musique”. Servenière assim entende:

“Quero comentar esses dois últimos blogs concernentes à publicação reencontrada em sua biblioteca, às voltas com a trabalhosa catalogação. Entendo que ‘Plaisir de la Musique’ despertou em você profunda alegria ao relê-lo após 60 anos.

Primeira reação: recuso totalmente o aforismo de Igor Stravinsky (1882-1971) ‘A música não é um fenômeno da natureza. Ela é produzida pelo homem. É uma arte’. A música precede o homem: pássaros, polifonias animais e vegetais, barulhos sonoros e sinfonia dos oceanos… Ao se ler, tem-se a impressão de que Stravinsky jamais saiu de seu apartamento… Não conheço um só compositor respeitado que não tenha sido influenciado em sua escrita pelos sons e as construções sonoras da natureza. Há uma quantidade imensa de vídeos no YouTube de cantos de pássaros, solistas, em duos ou em conjunto. Não poderia ser pretensão acreditar que o homem teria inventado a música? Sim, é verdade, o homem estabeleceu a estrutura sonora extraordinária, muito além de tudo o que era ‘ouvido’ na natureza. Todavia, não é menos verdade, isso só foi possível graças àquilo que a natureza precedentemente produziu. Cada vez que leio esse aforismo ferve-me o cérebro. Diria, um axioma bíblico do tipo ‘Deus criou o mundo em sete dias’. Stravinsky não devia ter ainda digerido Darwin…”. Entendendo o pensamento de Servenière, acredito que possivelmente o aforismo stravinskiano tenha sido pronunciado de maneira informal, sem reflexão maior, uma possível boutade como se diz em França,  pois “O Pássaro de Fogo”, “Sagração da Primavera”, “Rouxinol” e outras obras contrariam parte da frase o que o  isentaria de possível intencionalidade. Sob outra égide, provavelmente o contexto poderia ter sido a música como arte, estruturada e organizada pelo homem. Quantas não são os aforismos pronunciados por luminares das artes e da literatura que beiram a um tipo de gracejo?

Complemento a substanciosa mensagem de Servenière a dizer que, desde tempos imemoriais, o homem, para a caça de pássaros, buscava emitir grunhidos, tentando imitar seus cantos. Na Idade Média e na Renascença são muitos os exemplos de canções e madrigais nessa busca imitativa. Os cravistas franceses – lembremo-nos de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) et Le Rapell des Oiseaux ou La Poule – e, bem mais tarde, Olivier Messiaen (1908-1992), mormente com o monumental Catalogue des Oiseaux. A antítese da frase de Stravinsky estaria no aforismo de Messiaen “transponho todos os cantos dos pássaros para uma escala humana, pois são eles os maiores músicos”.

Servenière continua: “Aprecio as reflexões de Roland-Manuel sobre a sociologia burguesa dos concertos, a impedir que outras criações  revelem-se para o conforto auditivo. É realista a afirmação. O conforto burguês do século XIX foi substituído no século XX por outro, intercontemporâneo. O conforto e a estética dos belos salões do século XIX foram trocados pelos lugares atuais, de acústica deficiente, onde um acorde de tônica ou dominante leva aos gritos os ‘puristas’ de algumas tendências contemporâneas: ‘O que, um acorde justo, que horror!’ ‘Nossa, um belo céu azul, que horror!’

A música nos faz apreender o falso e o verdadeiro. Não por acaso existe a expressão milenar ‘soa falso’. De um discurso político à pintura, de uma obra arquitetônica à música, a expressão não sofreu uma ruga sequer através dos tempos… Os gregos sabiam a diferença instintiva entre o demagogo e aquele que falava a verdade. Os animais percebem o mau som, anúncio da aproximação de um predador.

Henri Dutilleux nos fala da forma fuga. Exercício primordial para a compreensão do desenvolvimento dos temas. Fui um fervente discípulo durante meus estudos preliminares e de meus anos como coralista. Contudo, entendi que a flama criativa não se encontra no estudo das fugas, necessário, mas tantas vezes uma forma a encobrir a falta de talento. A prática faz com que um compositor escreva uma fuga, mas o conhecimento pleno da forma não o torna um gênio. Todavia, é evidente que a Arte da Fuga, de J.S.Bach, é uma obra magistral, sem paralelo na história da música.

A respeito da frase de Roland-Manuel sobre a fuga, ‘o exercício mais indispensável e mais humilhante para a vaidade de um jovem compositor’, diria ser verdadeira, pois, para um jovem criador pleno de recursos e de ideias, o estudo da fuga pode ser melhor ou pior. Uma prisão mental, uma bengala para a criatividade, uma zona de conforto, podendo desestabilizá-lo e dele retirar o fogo sagrado. É necessário beber o necessário (como uma poção mágica) para não perder a linha diretriz criativa, o fio d’Ariadne. Quanto a mim, diria que senti estar a perder meu caminho. Li, escutei, toquei, admirei e, após, coloquei na estante as partituras de Bach. Tinha de compor minha obra”. Acrescentaria às palavras de Servenière que o mesmo se dá com o pianista, no caso. Durante o aprendizado, quantas não foram as horas e mais horas dedicadas ao estudo de métodos de exercícios e estudos preliminares de autores que se consagraram nesse mister: Hanon, Czerny, Cramer, Eggeling, Moscheles, Pozzolli, Löw, Clementi (“Gradus ad Parnasum”), Brahms (“51 Exercícios”) e tantos outros. Indispensáveis para a formação técnico-pianística, mas “humilhantes” em certa medida, mercê das repetições e da ausência, graças à destinação, de um verdadeiro valor musical. Qual não era nosso prazer ao dedicarmos uma outra parcela do tempo às criações específicas, peças para serem executadas em público? Lamentar jamais, pois sem essa ponte necessária, lacunas impossíveis de serem sanadas acompanharão o pianista durante toda sua trajetória. Também tenho todos esses métodos na estante. Como serviram! Aplica-se no caso a afirmação de Servenière, ao observar que o aprendiz pode perder “o fogo sagrado”. Sob outra égide, como desconfio do pintor que passa diretamente para o geométrico ou traços aleatórios, sem nunca ter executado um desenho ou pintado uma natureza morta? O saudoso amigo e imenso artista Luca Vitali me dizia que ao visualizar uma tela “abstrata” metros a sua frente, sabia se o pintor era ou não um artista.

Após mencionar frase de Arthur Honegger, “Beethoven é um clássico que infringe as formas regulares, sem cessar de lhes ser fiel”, e observando a seguir uma sua outra frase sobre o mestre alemão, “a música deixou de ser ciência para se tornar consciência”,  Servenière comenta: “completaria essa fórmula acrescentando que, graças à ciência e à sua importância, a música tornou-se consciência. Animal, instintiva, impulsiva, espontânea, surgida do nada, etc.  Após seus estudos, é evidente que os músicos, aqueles criadores, devem com vitalidade regressar ao seu instinto primitivo e, principalmente, ouvir o seu de profundis. Do contrário, falarão unicamente para os grãos de poeira que enchem suas bibliotecas de partituras e tratados!”

A posição de Servenière, 60 anos após as entrevistas inseridas nos dois blogs anteriores, apresenta aspectos convergentes com os abordados por dois dos mais importantes compositores do século XX. Todavia, o fato de ter nascido justamente na segunda metade do século (1961- ), quando a criação musical sofreu as maiores transformações, fê-lo optar por uma escrita coerente com todas as escolhas por ele feitas durante sua trajetória, compositores eleitos, técnicas professadas. Como intérprete, tendo em meu repertório obras das mais diversas tendências, que incluem criações do barroco à contemporaneidade, acredito poder avaliar as obras que executo. As de François Servenière têm a “eleição” de um acervo do passado, nele incluindo uma inusitada releitura do jazz, mas também uma abordagem pianística extraordinária e criativa, na qual transcendência e lirismo estão presentes harmoniosamente.

Many readers made comments about the post “Plaisir de la Musique”. I selected comments received from Prof. Gildo Magalhães on academic writings, so often incomprehensible just to disguise their voidness of content, and from the French composer François Servenière, who brings fresh ideas to the matters discussed.