Uma releitura em tempos de catalogação

Nenhuma nuvem tempestuosa e carregada de baixa pressão
nem qualquer mau tempo oferecia maior ameaça para nós do que o perigo
sempre possível, de uma súbita bátega psicológica entre seis homens
encerrados juntos durante meses numa jangada a vogar.
Em tais circunstâncias,
uma boa pilhéria era muitas vezes tão prestadia quanto um salva-vidas.
Thor Heyerdahl

A primeira leitura de “A Expedição Kon-Tiki”, de Thor Heyerdahl (São Paulo, Melhoramentos, 1952), deu-se durante a adolescência. O livro publicado em 1948 e traduzido para aproximadamente 70 idiomas tornou-se um best seller mundial. Desse período, algumas preferências concernentes à leitura prolongar-se-iam ao longo da existência. O piano já era praticado desde os nove anos, mas a consciência voltada à leitura, tenho-a presente desde os 12-13 anos. Sem contar obras literárias de autores referenciais indicadas por nosso pai aos quatro filhos, escolhas foram feitas paralelamente à leitura “imposta”, mas acatada prazerosamente. Aventuras, biografias de figuras relevantes da música, literatura e artes já faziam parte de minhas opções. Ao receber “A Expedição Kon-Tiki”, li-o com avidez e meu pai mandou encaderná-lo, gravando meu nome na parte inferior da lombada. Assim procedeu com os livros preferidos de meus irmãos. Ao pensar, só posso reverenciá-lo por ter tido sempre uma visão cultural humanística sólida para seus quatro filhos. “A expedição Kon-Tiki” permaneceu na estante até semanas atrás e, ao folheá-lo durante catalogação que realizo de meus livros, veio-me a vontade de percorrê-lo novamente, pois basicamente toda a história permanecia retida em minha memória. Esse regresso  aos anos de formação literária, sempre tão caro, reveste-se de dupla alegria, revisitar temas que me entusiasmaram e verificar que o passar das décadas imprime à memória apenas uma nova percepção dos fatos, mas não altera a essência essencial do que foi apreendido.

Ao reler o livro do norueguês Thor Heyerdahl (1914-2002), 66 anos após a primeira leitura, descortinei nitidamente a narrativa a cada virada de página. Uma diferença transparente se apresenta: o conhecimento dos navegadores aventureiros da Kon-Tiki em 1947 e a imensa diferença tecnológica atual relacionada a todos os aspectos da navegação. Se naquela época meu encantamento foi pleno, mais ainda após a releitura atual. Realmente foi uma epopeia, uma das mais significativas do século XX.

Em 2012 uma empreitada reeditando a expedição Kon-Tiki e a aventura, tendo entre os tripulantes um neto de Heyerdahl, chegou a termo em menor tempo. A evolução de assistência à navegação foi extraordinária entre as duas travessias. Internet, satélite, precisão das correntes marítimas. Mais do que o fato em si, o documentário da Tangaroa Expedition (2012), assim batizada, focaliza a  preparação da viagem, as imensas balsas (madeira utilizada em 1947) sendo cortadas nas florestas do Equador, as imagens da réplica da embarcação em mar por vezes bravio e o convívio a bordo, estabelecendo em medida menor, diga-se, a dimensão dos percalços a que os navegantes em 1947 foram submetidos. Se Thor Heyerdahl buscou ser o mais fiel às navegações dos povos que habitaram as terras do Peru e que, saindo do litoral, buscaram descortinar novos horizontes a oeste em travessia pelo Oceano Pacífico, a  Tangaroa Expedition certamente foi muito bem assistida tecnologicamente. Inclusive, tal era a certeza da concretização que familiares aguardavam os novos navegantes na Polinésia, diversamente da incerteza absoluta de sucesso da Expedição Kon-Tiki. O leitor poderá acessar o documentário de 2012 através do link:

https://www.youtube.com/watch?v=29waAjmbO2w

Thor Heyerdahl e seus cinco companheiros na intrépida aventura tiveram  como desiderato primordial provar que a colonização da Polinésia foi feita por povos que saíram da costa oeste da América do Sul. Totens existentes nessa vasta região, na Ilha de Páscoa e na Polinésia com características bem similares, o perfil físico dos habitantes das regiões andinas e dos polinésios, entre outras razões, motivaram a concretização de viagem pouco viável, principalmente por se tratar de uma jangada a navegar milhares de quilômetros por uma das rotas mais perigosas do planeta. Uma longa tramitação, que contou com o apoio fundamental de instituições norte-americanas, norueguesas, e aconselhamento de especialistas de várias nações possibilitaram aos aventureiros a realização do arriscado projeto. O nome escolhido para a jangada foi Kon-Tiki, tributo à divindade inca Viracocha, em quíchua Apu Kun Tiqsi Wiraqutra. Os habitantes da Polinésia também tinham conhecimento do nome Tiki. Se a “expedição Tangaroa”  de 2012 contou com orientações ditadas pela modernidade internética, satélites e outros mais avanços, a Expedição Kon-Tiki teve como instrumental de auxílio rádio que nem sempre funcionava nesses contatos do denominado rádioamador, assim como mapas, sextantes e relógios. Não obstante o auxílio do instrumental de 1947, outros fatores poderiam ter paralelismo com conhecimentos que a civilização inca possuía, como a vela e os movimentos das correntes marítimas. Detém-se Heyerdahl em longa exposição sobre a Ilha de Páscoa, que não foi visitada, mas cujos totens serviram de argumento à causa. Descreve bonança, tempestades e os diversos peixes que seguiam esporadicamente a precária embarcação, cuja forma plana, possibilitava a visitação constante dos menores, como pilotos, aos maiores como dourados, bonitos e até polvos e caranguejos. Devido à “colheita” espontânea, a alimentação dos navegantes foi sempre farta. O autor comenta encontros com tubarões e até de um possível tubarão gigante, mas também menciona uma baleia que os acompanhou por momentos.

A narrativa de Heyerdahl é envolvente. Paradoxalmente, a travessia de 4.300 milhas em 101 dias, que transcorreu sem problemas intransponíveis, teria seu fim justamente em uma barreira de coral em ilha deserta do arquipélago de Tuamotu, na Polinésia, por não ter a jangada condições maiores de manobras. Dias após, o encalhe no recife de Raroia possibilitaria o contato com habitantes do atol de forma ovalada com 43 km de extensão e 14 de largura e que, à altura, contava com 127 habitantes. Heyerdahl pormenoriza-se na acolhida calorosa dos polinésios e entende-se a plena euforia após três meses e meio em pleno Pacífico nas condições apontadas.

A releitura traz-me esse prazer de percorrer as aventuras de intrépidos viajantes, navegadores ou alpinistas. Já passei por uma fase  voltada às escaladas no Himalaia. Entusiasmavam-me todas as empreitadas, que remontam a 1924 com Mallory e Irvine, que morreram em circunstâncias até hoje desconhecidas na escalada ao Everest, até o extraordinário alpinista português João Garcia, que conquistou os 14 picos acima dos 8.000m. Contudo, meu entusiasmo pelos relatos atuais esvaneceu-se, não pela magia do Himalaia, mas desde que “multidões” despreparadas estão a tentar chegar ao topo da montanha guiadas por ávidos agenciadores. A mística perdeu-se e o Everest tornou-se troféu sem glória ou túmulo eterno para os que se arriscam. Sob outra égide, estou sempre atento aos livros de Sylvain Tesson, esse incansável andarilho francês que já atravessou quase todo o planeta e que comunica ao leitor o que vê e o que sente, geralmente com uma visão cáustica do mundo atual. Já foram quatorze os livros de Tesson resenhados neste espaço.

“A Expedição Kon-Tiki” levou-me à reflexão voltada às nossas escolhas. Tantas delas abandonamos ao sair da adolescência ou juventude. Outras permanecem. Se marcaram nossa formação, dificilmente fugirão de nosso pensar. Transfiguram-se na apreensão, mas a elas regressamos, pois integram o nosso de profundis.

In 1947, the Norwegian adventurer Thor Heyerdahl and a crew of five men left Callao (Peru) to Polynesia in a hand-built raft made from balsa wood in an attempt to prove that South Pacific islands may have been populated also by indigenous migrants from South America sailing by balsa rafts across the Pacific. The evidence of interconnections could be found in legends and archeological indications. The expedition was a success and resulted in Heyerdahl’s best-selling book “Kon-Tiki: Across the Pacific by Raft”, translated into seventy languages. Re-reading the book today as an adult has proved it is a real gem, as exciting and intense as it was when I first read it sixty-six years ago. This post is about the Kon-Tiki expedition, the record of an astonishing journey, an epic voyage rightly considered one of the greatest adventures of the 20th century.