Sensível livro de Hermann Hesse

Todas as pessoas idosas pensam de maneira histórica,
mesmo que distantes de terem consciência dessa situação.
Hermann Hesse

À medida que se constata o envelhecimento das populações e o prolongamento da vida devido a fatores múltiplos, mais acentuadamente o tema tem sido debatido. O progressivo aumento da faixa etária provoca, sob outro aspecto, uma série de situações, que vão da aposentadoria prolongada à saúde pública, entendendo-se a preservação essencial da vida, mas a ameaçá-la a série de problemas físicos advindos do envelhecimento. Soluções são propostas e atualizadas constantemente, enquanto a legião dos pertencentes à terceira e quarta idade avança.

Estava no pós-operatório do Hospital Santa Catarina quando recebi a visita de minha dileta amiga Jenny Aisenberg. Gentilmente ofereceu-me “Éloge de la vieillesse”, de Hermann Hesse (Paris, Calmany-Lévy, 2000), livro que li com o maior interesse, graças à escrita transparente do autor, conteúdo tratado de maneira sensível e de tema adequado à minha faixa etária. Recentemente o livro foi lançado no Brasil sob o título “Com a maturidade fica-se mais jovem” (Record, 2018).

Hermann Hesse (1877-1962) foi um dos grandes autores do século XX. Nascido na Alemanha e posteriormente tornando-se cidadão suíço (1923), Hermann Hesse, escritor e pintor, ganhou em 1946 o Prêmio Nobel de literatura. Entre seus livros mais conhecidos temos “Sidarta”, “O lobo das estepes”, “Narciso e Goldmund” e ”Demian”.

“Éloge de la vieillesse” encantou-me desde o início. Hermann Hesse viveu até os 85 anos e textos e poesias escolhidos se intercalam de maneira harmoniosa numa temática que poderia até distanciar o leitor mais jovem. A dualidade texto-poesia realça mais acentuadamente aspectos fulcrais da orientação do livro: a admiração onírica pela natureza em seus mínimos pormenores e a observação permanente das transformações sazonais de plantas e árvores. A periodicidade, que se mostra inflexível, tantas vezes merece comparação com a trajetória do homem em direção à morte. A natureza e o humano têm o mesmo destino. Longe de pensar a morte como uma fatalidade que atormenta, Hermann Hesse a vê como um fenômeno que se aproxima. Sabe-a inexorável, tem por ela até um nostálgico afeto.

Quando recebe a visita de um amigo da infância, Otto, em sua moradia em região alpina, com ele rememora o passado distante na Alemanha e na despedida observa que “Ao nos despedirmos sorrindo, não expressamos o que pensávamos e que poderia assim ser resumido: talvez seja este nosso último encontro”. Esse posicionamento percorre subjetivamente o livro, pois nos muitos capítulos fica, de maneira etérea, uma permanente despedida. Nessa visita de Otto, que morreria dias após a visita ao escritor, Hermann Hesse tinha 75 anos, dez a menos de seu desenlace. Depreende-se desses homogêneos textos e poesias reunidos a constante comparação entre a juventude e a velhice, sem o lamento que seria aceitável. A proximidade insubornável da morte o faz entendê-la e a “melhor maneira para mim de superá-la foi sempre a de não me defender, de me deixar levar por ela como se nos deixássemos levar pela embriaguez ou o sopro da aventura”, afirma o pensador. Se há em seus escritos determinados ceticismos, há também religiosidade e esperança e, no todo, traços característicos da literatura romântica.

“Éloge de la vieillesse” traduz uma série de vivências de Hermann Hesse. O autor, não poucas vezes, realiza prospecção sem mágoas. Não há desvio algum que possa indicar o mínimo simulacro, e essa autenticidade teria, a meu ver, maior empatia com os leitores da terceira ou quarta idades. Pareceu-me o livro transparente, a levar o leitor naturalmente às comparações individuais nessa faixa etária. Muitas décadas vividas resultam no acúmulo de experiências. A assertiva relacionada ao público-alvo dos textos escolhidos sobre a velhice vem, inclusive, de uma posição nítida de Hermann Hesse que realmente – assim transparece – só poderia ser apreendida pelos idosos: “Somos curiosos em descobrir riachos desconhecidos que desaguam nos mares do Sul, polos nas duas extremidades da terra, somos curiosos em entender os ventos, as correntes, os relâmpagos, as avalanches, mas o que infinitamente mais nos fascina é a morte, o evento último mais importante da existência. Estamos persuadidos que, entre todos os conhecimentos e impressões acumulados, só aqueles pelos quais daríamos a vida são meritórios”.

Entender-se em determinados momentos como “um homem entre outros a fazer parte da multidão, em simbiose com ela”, quando visita com a esposa uma festividade carnavalesca, não teria discurso retomado por Jean-Paul Sartre em “La Nausée”, ao mencionar que a melhor maneira de ser individual é ser como todo mundo? Há sempre uma generosidade crítica de Hermann Hesse que perpassa “Éloge de la vieillesse”.

Hesse compreende o fato de um adolescente ignorar a sensibilidade de um idoso. Sob outra égide, estende louvação ao jovem e suas virtudes, mas escreve que a longa projeção de vida pela frente não o habilita a entender a situação de um idoso, motivo para o autor refletir que, apesar da transformação física que surge com a velhice, males como diminuição imperativa de locomoção, dores e outras consequências características do declínio não impedem o idoso de recorrer a um tesouro inestimável, a memória: “O que adviria de nós, idosos, se não tivéssemos um álbum de lembranças, tesouros de experiências? Nossa vida seria lamentável e miserável. Mas somos ricos, não nos contentamos em levar nosso corpo usado diante da morte e do esquecimento, somos detentores desses tesouros que vivem e resplandecem enquanto ainda pudermos respirar”. Esse tema é recorrente inúmeras vezes no livro e Hermann Hesse entende a memória como a grande salvaguarda do idoso. São milhões de imagens guardadas no de profundis que ressurgem quando acionadas, e personagens rememorados, naquele momento hic et nunc da evocação, caminham ao nosso lado. “O efêmero possui um charme maravilhoso, um charme de uma tristeza ardente. Todavia, há ainda mais beleza no passado que não foi revolvido, que não desaparece, perpetuando-se secretamente nos tempos idos que escondem uma eternidade bem eclipsada, ressurgindo na memória através das palavras que devem necessariamente ser evocadas” (tradução: JEM). O culto à memória estimularia e seria um bálsamo para a fase derradeira, não se descartando a continuidade possível de outras atividades às quais o idoso ainda está ligado.

Estou a me lembrar de meu saudoso pai, que adentrara a oitava década. Perguntei-lhe como encarava o acúmulo dos anos. Disse-me à altura que tinha projetos, que se concretizariam a partir dos 84 anos, quando escreveu seu primeiro livro, prefaciado pelo notável Menotti Del Picchia. Outros seis viriam, sendo que o derradeiro, escrito aos 101 anos, não foi lançado, pois após uma queda meu pai entrou em coma, vindo a falecer dias antes dos 102. À minha pergunta, acrescentaria ainda meu pai que ter ultrapassado os 80 e tais anos era uma dádiva e que, chamado, estaria pronto para partir. Teósofo convicto, entendia a morte com a maior naturalidade. Um sábio.

“Éloge de la vieillesse” é um belo livro. A síntese de tantos preceitos encontráveis nos romances de Hermann Hesse estaria concentrada em “Éloge…”. Aprendemos a melhor conviver com o tempo insubornável e o privilégio da observação, tão desprezado na atualidade, mereceria por parte dos que adentraram a fase derradeira um olhar mais afetivo. O autor nos ensina a conviver com o que nos cerca, seja uma planta, uma frondosa árvore, uma singela flor, o ciclo permanente da vida, a renovação e o estiolar natural do que é vivo. Apreendendo esse ciclo das estações, entenderemos melhor nossas fases etárias. Ratifica em mim os preceitos paternos, ao entender a última fase apenas como a derradeira.

Comments on the book “Éloge de la Vieillesse”, by Hermann Hesse, a volume including poems, memories and short essays about old age. A synthesis of ideas found in Hesse’s many works, it teaches us to accept the impermanence of everything and the approach of death with grace.