O ouvinte da musica erudita e suas variações
Realmente não se tem mais a música erudita
nem sequer
como uma desejável “presença culta” na sociedade
– nem isto mais -…
Willy Corrêa de Oliveira
(5 – cinco – advertências sobre a Voragem)
Ao final do último post mencionei opinião do professor titular de História da Ciência FFLECH-USP), Gildo Magalhães, que tão logo texto publicado comenta sobre o papel do ouvinte. Transcrevo a mensagem integral:
“Mais um texto iluminado e iluminante! Tenho pensado em como na música temos na verdade três momentos ou etapas: o compositor, que fixa as ideias num texto, a partitura, que fica daí para a frente imóvel; o intérprete, quando o texto ganha nuances e possibilidades muito variadas, como sabemos; e finalmente o ouvinte, que processa a mensagem transmitida pelo intérprete e a interioriza com possibilidades praticamente infinitas de apreciação – e até mesmo ouvir uma ‘Pour Elise’ exaustivamente tocada, e até abastardada, no caminhão de gás pode aparecer ao ouvinte de repente com uma graça ‘nova’ e essa renovação depende de seu estado de espírito, de emoções ou razões daquelas que só o coração conhece… Não seria esta, aliás, uma função da arte em geral?”.
Em blogs bem anteriores mencionei o ouvinte como figura fulcral no tripé, pois, transmitida a mensagem composta e executada pelo intérprete, cabe a ele a recepção e a apreciação em incontáveis variantes, a depender de sua capacidade avaliativa. Pairaria a pergunta, qual ouvinte?
Citarei episódio, entre tantos. Chamou-me a atenção um concerto a que assisti no deSingel de Antuérpia. A orquestra da Flandres interpretava a segunda Sinfonia de Mahler e eu estava com o engenheiro de som Johan Kennivé, que acompanha minhas gravações desde 1999 em Mullem, também na região flamenga. Comentávamos que a maioria dos ouvintes que lotou o auditório tinha as cabeças brancas. Kennivé, pleno de longa experiência, observou jocosamente que essa constante mostrava que a neve estava a invadir as salas de concerto. Ao longo da existência, mormente nas últimas décadas, tenho sentido essa certeza, que se alastra nos auditórios que abrigam a música erudita. As cabeças brancas, a seguir a tradição, permanecem atentas, a provar que a afluência deu uma guinada. Nomes consagrados pelo valor e com forte impacto mediático ainda levam às salas de concerto público habitué, mas também o soi disant, figura que vai ao espetáculo devido ao renome do intérprete e para ser visto por seus afins, pois o espetáculo, precedido pela divulgação, corrobora o status social. Diminuiu sensivelmente a presença da esperança, o jovem. Fato.
Estou a me lembrar que, nas fronteiras da metade do século XX, em termos de São Paulo, havia uma juventude que disputava com entusiasmo lugares para ouvir grandes intérpretes que nos visitaram nesse período pós-guerra mundial. Amontoávamo-nos diante do guichê para conseguir ingressos para as galerias do Teatro Municipal. Ouvintes curiosos, fortalecidos por escutas anteriores de quantidade de LPs importados, acetatos que eram lentamente exauridos pelo atrito das agulhas. A nossa escuta determinava a presença constante nas salas de concerto e não éramos minoria no público assíduo. A classe dominante que frequentava os concertos tinha no mínimo um verniz cultural e estava presente, a confrontar intérpretes e a prestigiá-los.
Em sendo uma das pontas do triângulo, o ouvinte diletante majoritariamente se inclina para o repertório superventilado. Faz parte de sua índole ter referências, prender-se a determinados compositores consagrados, apreciar ouvir inúmeras vezes a mesma obra, os mesmos estilos, os mesmos períodos históricos. Décadas atrás conversava com médico respeitado entre seus pares e frequentador das temporadas anuais de concerto. Perguntei-lhe se tinha preferências. Mencionou cerca de 10 nomes de compositores consagrados. Insisti, indagando-lhe qual sua reação ao ouvir incontáveis vezes a 1ª Balada de Chopin ou a Quinta Sinfonia de Beethoven. Disse-me que já ouvira dezenas de vezes a célebre Sinfonia do compositor alemão e tinha esperanças (palavras suas) de que ainda teria o prazer de ouvi-la mais algumas vezes. Ainda perguntei ao médico se ele iria a concerto para ouvir obras para ele desconhecidas, do passado ao presente, mas relevantes. Afirmou que não tinha o menor interesse e que certamente o público seria reduzido. Sua posição fazia e faz eco às centenas de outros aficionados que amam música erudita com desideratos precisos: ouvir obra consagrada e de preferência por intérprete igualmente precedido de boa divulgação.
Igualmente já observei anos antes que as estatísticas são claras quanto ao afluxo às salas de concerto. Mais uma obra é lembrada por melodias cantaroladas extra recinto preciso, mais os intérpretes precedidos de longos currículos meritórios e bafejados intensamente pela mídia, insuflada esta pelos agentes, patrocinadores e sociedades de concerto, maior será a audiência. Saliente-se sempre que os holofotes, a gosto de tantos músicos, podem igualmente ofuscar mentes nos auditórios. Referi-me também aos extraordinários intérpretes espalhados pela Europa, principalmente, e que por falta desses “ingredientes” de divulgação se apresentam em níveis extraordinários nas pequenas salas com público basicamente constituído por amantes reais da Música.
A corroborar considerações, foi amplamente divulgada a atuação do consagrado violinista norte-americano Joshua Bell, que se apresenta com seu Stradivarius, em performance que realizou com disfarce no metrô de Washington em 2007. Tocou durante 45 minutos, as pessoas passavam atarefadas diante dele – mais um músico no metrô? – e pouquíssimos entenderam a mensagem. Seria prova de que os ouvidos do cidadão comum não diferenciam qualidade e que, mesmo a reconhecendo, não avaliam o grau da interpretação. No metrô de Paris é comum ouvirmos estudantes do Conservatório executando com razoável qualidade obras do repertório tradicional.
João Pedro, leitor assíduo, escreve-me a tecer comentários sobre o blog anterior e coincidentemente aborda o ouvinte: “Professor, e o público, qual seu preparo, quais suas preferências? Porque os concertos de música contemporânea têm público acanhado?” Pertinentes as perguntas. A maioria dos que vão às salas de concerto são apreciadores da Música. Ela vai para ouvir o que quer ouvir e de preferência por intérpretes bem ventilados pela mídia. Sua preferência vem de outras escutas, longínquas ou recentes, de obras que passaram a fazer parte de seu arquivo mental. Essa maioria tem o que comentar com parceiros das mesmas escolhas. Essa assertiva tem muito a ver com o “medo” do desconhecido. Uma obra ainda não ouvida perde, para essa maioria, elos fundamentais, a avaliação e a discussão comparativa. Desaparece, nesse caso, a hipotética frase: “Gosto mais daquela composição (também conhecida, obviamente), prefiro tal intérprete”. Essas conversas de melômanos alimentam a repetição e são salutares no sentido que, de uma forma menos exegética, a tradição se perpetua. Contudo, obliteram a oxigenação repertorial. Quanto à música contemporânea das mais diversas tendências, o desconhecido fica estampado. Amantes da contemporaneidade comparecem. São poucos e entre esses há até aqueles que são unicamente curiosos. Sempre na visão dos holofotes, se esse repertório é apresentado por intérprete ou conjunto de nomeada, salas podem ficar lotadas.
Agentes, Sociedades de Concerto e dirigentes de teatros oficiais são os responsáveis pelos repertórios apresentados. Perpetuam o que seus semelhantes do passado fizeram. O público tem sido sempre conduzido, pois recebe programação que se habituou a ouvir para gáudio dos promotores. Não obstante, há nuvens sombrias no horizonte. Mario Vargas Llosa já vaticinava o declínio da cultura erudita como um todo. São tantos os fatores que influenciam esse inexorável declínio e, assim como a quimioterapia destrói tumores malignos, igualmente interferindo no que existe de bom no organismo, assim também a tecnologia, que gerou a profusão internética positiva, tem destruído progressivamente a cultura erudita. Exemplos claros nos provedores Uol, Terra, IG e outros mais exemplificam em suas páginas principais, inversamente à basilar parábola do evangelho, a quantidade de joio não sendo queimada, mas irrigada, enquanto o trigo fenece. Creio que há pouco a fazer. Irreversibilidade.
A discussion on how younger generations became alienated from classical music, while senior audiences – the public that goes to classical concerts today – prefer star performers, getting more of the same since they keep hearing the same repertoire again and again. Profit prevails over culture and legions of excellent musicians remain unknown because financial backers opt for a handful of celebrated performers that capture more public and bring in receipts in ticket sales. Just an additional ingredient in the decline of culture as a whole. In today’s world, as weeds flourish, wheat dies.