Quando temas que se mantinham silenciosos afloram

“Um livro atirado ao público
equivale a um filho atirado à roda.
Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte.
Que seja feliz é o que eu lhe desejo;
mas se o não for, também não verterei uma lágrima”.
Guerra Junqueiro
(Prefácio à segunda edição de “A velhice do Padre Eterno”)

Encontrar Marcelo é sempre a expectativa de ouvir perguntas ou sugestões que aguçam a mente. Das poucas vezes que o encontro na feira-livre de minha cidade bairro, Brooklin Campo Belo, as conversas se prolongam horas mais tarde em um café das cercanias. Prazerosamente fixamos encontro à tarde e as perguntas que ouvira pela manhã ganharam ênfase.

Marcelo é fiel leitor e, atento aos meus retornos à temática sobre interpretação e repertório, questionou-me sobre a tradição na composição e na literatura, assim como o tempo do intérprete musical ou do leitor de um livro frente à decifração (palavra sua) da partitura ou texto poético-literário, respectivamente. Pareceu-me mais uma proposta para aula do que um trocar opiniões enquanto estávamos degustando um curto e mais um.

O questionamento surgiu após a leitura de versos de Catherine Lechner-Reydellet publicados no blog anterior. Entendeu-os difíceis e, apesar de distantes de tendências poéticas tantas nesse bem mais de meio século, sabia-os ainda presos à tradição, mas difíceis de entendimento. Disse-lhe que também os achara difíceis e, como apontei em meu post, tive de lê-los mais de uma vez e tempo maior ainda dediquei a traduzi-los. Não obstante, em nenhum momento deixei de admirar a trama do pensar da autora nessa busca por apreender sua mensagem.

Inicialmente disse ao Marcelo que na literatura a transformação se daria no conteúdo e menos na organização das palavras. Dos meios de que dispõe o escritor, o léxico existente é fulcral e a organização do texto flui a obedecer, preferencialmente, ao que reza o preceito gramatical e ao “significado” dos vocábulos. Não obstante, a partir desse material há incontáveis maneiras de verter o que vai à mente. Tem-se o estilo, impressão digital que caracteriza o escritor de talento. Quanto à poesia, há muitas variações e quantas tendências não surgiram, estiolaram-se e ressurgiram sob outras vertentes nessas últimas décadas. Sem nomear poetas, quando uma tendência se instaura, seus “fundadores” se tornam, não poucas vezes, arautos de futuro inglório, pois processos são abandonados com o passar dos anos e a eles retornar não seria palatável para novéis vates em busca de novas diretrizes. A proliferação delas na poesia, nas artes visuais e na música nestes últimos decênios tem certa semelhança com o que se passou na bíblica Torre de Babel. No caso de Catherine Lechner-Reydellet, temos o poema a fluir em forma de texto literário e a separação que a autora faz das “linhas”, a separar conceitos que devem ser salientados, corresponde à respiração da leitura. Certamente a música deve ter influenciado, e muito, a autora, pois a respiração é imprescindível na nossa área musical e na poesia.

Ao me questionar sobre a composição e a interpretação, Marcelo aborda tema que foi objeto de blog anos atrás. Em sendo a Música a única arte a precisar do intérprete, mercê da notação musical – o texto teatral é acessível a qualquer leitor que se disponha a conhecê-lo -, ao executante cabe a tarefa do debruçamento exegético sobre a partitura. “Música, minha companheira desde os anos da infância”, frase do poeta português José Gomes Ferreira, sintetiza a escuta que acumula sons, formas, estilos e interpretações do repertório sacralizado. Tornar-se-ia evidente que esse acúmulo facilita o aprendizado nas várias fases da vida, pois obras estão armazenadas em nosso interior e mesmo a interpretação individual rarissimamente corresponderá a uma ruptura, pois há anos ou décadas está lacrada no cérebro, mercê de outras escutas. Seria mais complexo, certamente, quando a obra é contemporânea ou de um passado não redescoberto ou, ainda mais, parcialmente desvelada. Nesses casos o intérprete, ao ser o primeiro a desvendar a partitura, terá de criar a sua execução, que poderá ser guia para outras que virão, estudadas por outros músicos. Qual o seu ferramental? O legado do aprendizado e os novos aprendizados. Estou a me lembrar de dedicatória de nosso mais importante regente, Eleazar de Carvalho, na minha partitura de bolso da Sinfonia Júpiter (nº 41) de Mozart, da qual eu sempre gostei e que ele acabara de reger: “De um estudante para outro estudante. Eu, Eleazar de Carvalho, ele, José Eduardo” (segundo lustro dos anos 1950). Uma lição.

Tempo sacralizado para o criador e para o intérprete. Ao primeiro ele advém através da ideia – uns nomeiam inspiração – e o acervo adquirido na área musical determinará o fluxo para o papel pautado, hoje basicamente internético, e a composição vem à luz. Haendel, J.S. Bach, Mozart, Schubert, Liszt, Moussorgsky, entre muitos, eram rápidos na escritura. Ravel a cinzelava, retocando-a até que a composição estivesse do seu intento. Outros, como Pierre Boulez, buscavam numa versão outra ou outras a concretização de seu intento. E quanto ao intérprete, mormente o voltado à imensa produção tradicional? Ele é o eterno intermediário e sem ele a música estaria fixada apenas nas partituras. Ele a estuda preferencialmente desde tenros anos e, a continuar a trilha de uma carreira, sempre que repete determinada obra tem de reestudá-la, com menor intensidade, mas estudá-la. Se contarmos o tempo do compositor e de um intérprete, tranquilamente a este é destinado um maior debruçamento temporal sobre a obra criada. Contudo, frise-se, obra estudada desde a juventude já pode estar precedida pela escuta originária na infância. Permanece, pois. Esse pressuposto resulta numa maior familiaridade quando, pela primeira vez, a criação que perdurou pelas décadas ou séculos penetra no âmago do executante pelo olhar, pelo complexo processo mental, pelo digitar e pelo ouvir. Não obstante, ter sempre de retornar à partitura requer tempo e seria plausível entender que, ao longo de uma carreira, largamente o intérprete terá muito maior tempo de contato com a obra criada do que o compositor. Este, ao entregá-la a outrem, não mais terá controle sobre sua sorte, como reza a epígrafe do presente post.

Disse a Marcelo que, assim como com navegadores do passado, alpinistas ousados e aventureiros como Sylvain Tesson, que teve tantos livros resenhados neste espaço, o sentido da descoberta de criações coetâneas ou da redescoberta de partituras esquecidas, metaforicamente, pode ter passado pelo mesmo processo mental que leva à imperiosa necessidade de ousar. Se a imensa maioria dos intérpretes se repete, e isso é louvável, pois a permanência só subsiste através das centenárias escutas, também é de crucial importância o desbravar.

Marcelo ainda quis saber mais sobre tradição e escuta que vem da infância. Insistiu. Como se processaria esse amálgama? Comentei que a criança ou jovem que nasceu em berço propício à escuta da música erudita já teria ouvido parte essencial do repertório sacralizado. Acentuando os estudos, e sendo esse o repertório perpassado pela extensa maioria dos intérpretes – colegas ou consagrados executantes -, a escuta se sedimenta e essas obras entram automaticamente em sua mente. Estudá-las já tem a precedê-las essa escuta sedimentada e conservada. Diria que parte essencial do estudo de uma obra já está resolvida, pois a memória do que foi ouvido será ativada e até a interpretação fundamental – tradicional – já estabelece uma facilidade maior para o intérprete.

Fico sempre grato a Marcelo. É um questionador. Perguntas inteligentes são uma das mais importantes fórmulas para ativar mentes. Marcelo sabe como fazê-las.

Horas após a publicação deste post, o Professor Titular da FFLECH-USP Gildo Magalhães escreve-me sobre o tripé compositor-intérprete-ouvinte. Em blogs bem anteriores mencionei a importância da recepção da criação musical transmitida pelo executante e avaliada pelo ouvinte. Certamente teremos Ecos no próximo blog.

A chat with a friend was the starting point of this post, a reflection upon some aspects of music, such as tradition and rupture in musical writing; the relation between composer and his intermediary, the performer; the role of musical memory preceding the study of a new piece of music.