Pianista de grande mérito

O ma vieille compagne, ma musique,
tu es meilleure que moi.
Je ne t’ai jamais trahie,
tu ne m’as jamais trahie,
nous sommes sûrs l’un de l’autre.
Nous partirons ensemble, mon amie.
Reste avec moi, jusqu’à la fin !
Romain Rolland
(“Jean Christophe”)

Neste espaço destacamos o notável pianista Sequeira Costa (1929-2019) por ocasião de sua morte aos 21 de Fevereiro último. No dia 8 de Março desapareceria Fernando Lopes, pianista nascido no Rio de Janeiro. Foi um dos grandes mestres brasileiros do teclado.

Realizou seus estudos com os professores Arnaldo Estrella, Magdalena Tagliaferro e Bruno Seidlhofer. Entre seus vários prêmios em Concursos, destaque-se o importante Grande Prêmio Schelling no certame de Genebra. Como recitalista apresentou-se nos Estados Unidos, Áustria, França, Espanha, Itália, Portugal, Romênia, Alemanha e Suíça e nas principais cidades do Brasil. Professor, Fernando Lopes lecionou na Universidade Federal da Bahia, dirigindo paralelamente a Escola de Música e Artes Cênicas. Sua dedicação à docência também seria relevante na Unicamp, onde dirigiria o Instituto de Artes entre 1975 e 1991. Tornou-se Professor Titular nessa Instituição.

É de se louvar sua dedicação à música brasileira, pois em sua discografia constam os Cinco Concertos para piano e orquestra de Villa-Lobos, com a Orquestra Sinfônica de Campinas sob a regência de Benito Juarez; as Cartas Celestes de Almeida Prado; a integral das criações para piano de Carlos Gomes, segmento expressivo da obra camerística de Henrique Oswald e composições contemporâneas brasileiras. Gravaria também a integral das Sonatas de Mozart, a Sonata em Si Menor de Liszt e a Fantasia de Schumann.

No final da década de 1970 estava a passar férias de verão, com Regina e filhas, na chácara de Anita Guarnieri (segunda esposa do compositor Camargo Guarnieri) e nesse período lá estavam o pianista Arnaldo Estrella e sua esposa, a violinista Mariuccia Iacovino. Em uma das conversas com o ilustre pianista, disse-me ele que Fernando Lopes foi, entre todos os seus alunos, aquele que apresentou a mais extraordinária capacidade técnico-pianística. Realmente, no convívio que mantive com Fernando Lopes era notória sua absoluta naturalidade no que concerne à abrangência plena do complexo universo pianístico. Em nossos encontros, sempre demonstrava segurança, bom humor e afabilidade.

A excelente maestrina Ligia Amadio, que desenvolve bela carreira internacional, tendo já conduzido algumas das orquestras mais renomadas do Exterior, escreveu-me a apresentar belo testemunho sobre Fernando Lopes: “Conheci o lendário pianista Fernando Lopes durante o período de meu curso de regência na Faculdade de Música da UNICAMP, onde ele era professor titular. Eu assisti a concertos seus diversas vezes, como solista da Sinfônica de Campinas e de outras orquestras. Sua técnica sólida, seu pianismo absolutamente natural eram impressionantes. Qualquer um que visse Fernando Lopes ao piano pensaria que tocar este instrumento era muito fácil. Ele era um gigante como pianista, e, como ser humano, um tipo simpático, afável e tranquilo. Quando me tornei profissional, tive o privilégio de dividir o cenário com ele em três ocasiões: a primeira, em 1999, num concerto com a Orquestra Sinfônica Nacional – UFF, no dia 25 de abril, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, quando ele interpretou o Concerto em lá menor, op.16, de Grieg; a segunda, desta vez em Niterói, no Cine Arte UFF, ainda como regente titular da OSN-UFF, no dia 11 de março de 2001, no concerto de abertura da temporada oficial, com um extraordinário Concerto para piano e orquestra n.2, em si bemol maior, op.83, de Johannes Brahms, obra sob medida para o insigne pianista; e a terceira vez, em 2009, nos dias 18 e 19 de abril, quando fui regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, tendo o prazer de acompanhá-lo no Concerto n.1 de Liszt, no Centro de Convivência Cultural da cidade de Campinas. Fernando Lopes foi um destes pianistas raros e majestosos, completamente soberanos em face a um instrumento tão exigente. Fernando Lopes era um pianista genial e demasiadamente simples. Simples como todo grande artista”.

Fernando Lopes e eu concorremos no 1º Concurso Nacional de Piano em Salvador, na Bahia, em 1958. Obteria com Arthur Moreira Lima o segundo prêmio e eu, o quarto lugar. Curiosamente, os dois receberam bolsas do Governo Brasileiro e só puderam desfrutá-las na Europa cerca de um ano depois, enquanto estava reservada bolsa do Governo Francês para o quarto colocado e, menos de dez dias após a concessão, já estava em Paris. Burocracia brasileira a prejudicar talentos.

Após apresentações que meu irmão João Carlos e Arthur Moreira Lima fizeram, exibindo 24 Prelúdios do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach (João Carlos) e os 24 Prelúdios op. 28 de Chopin (Arthur), nas interpretações alternadas obedecendo a tonalidades, Fernando Lopes e eu realizamos uma “maratona” com os 24 Estudos opus 10 (12) e 25 (12) mais os três Estudos póstumos de Chopin e os 27 de Scriabine espalhados em vários opus, ele a interpretar a integral dos compostos pelo músico polonês e eu, as do autor russo. Realizamos de maneira bem harmoniosa, pois a seguir processos técnico-pianísticos que serviram de base para a construção dos Estudos. Como exemplos, após Fernando apresentar o Estudo op. 10 nº 12 “Revolucionário”, de Chopin, tocava eu o de Scriabine op.8 nº 12 “Patético”, o de terças de Chopin vinha a seguir o de terças de Scriabine e nessa organização, buscando sempre identidades de processos utilizados pelos dois geniais compositores, prosseguíamos a “maratona” de mais de duas horas de duração. As apresentações foram realizadas em 1984 em São Paulo e no Festival de Inverno de Campos de Jordão, recital este aos 12 de Julho. Os dois pianos eram colocados sem as tampas, de maneira a haver equalização sonora. Extraordinário o absoluto domínio que Fernando demonstraria em suas apresentações, mormente em se tratando dos Estudos de Chopin, um dos grandes desafios para poucos pianistas. Essas récitas ficaram em minha memória não apenas pelas mensagens musicais transmitidas, mas também pelo prazer de apresentarmos configuração de programa inédito no Brasil, quiçá no mundo, e que resultou em grande alegria interior para ambos.

A ser considerada a falta de ao menos um verniz cultural por parte da mídia de grande divulgação no país. Glorificam banalidades que apenas entorpecem as mentes, mormente as da juventude. A quantidade de besteirol visualizado na TV aberta, que se estende do BBB, programas de auditório de baixíssima qualidade, novelas ad nauseam, faz com que tantos tentem se refugiar nos provedores internéticos. Nesses casos caem em outra armadilha, pois a futilidade e o paupérrimo mundo mental das famigeradas “celebridades” são embrutecedores. Esses provedores misturam o que realmente interessa ao cidadão como política, segurança, educação, saúde, artes com essa avalanche de lama do cotidiano idiotizado desses “famosos”. Amálgama indigesto.

A grande mídia nas várias áreas de abrangência lembrou-se de Fernando Lopes? Ela apenas não percebe, por necessidade imperiosa e vexatória do imediatismo, que essas “celebridades”, tão logo sintam o passar dos anos, serão descartadas e que o legado de um compositor erudito e das gravações qualitativas dos intérpretes, esse permanecerá. Contudo, pobre em cultura humanística, a grande mídia apenas pensa no produto ou personagem que trará lucro. Esquecendo valores como o notável pianista Fernando Lopes, que tantas glórias trouxe ao país, ela se apequena, evidencia sua fragilidade cultural. Nada a fazer com a estrutura tão equivocada de nosso Sistema como um todo. O silêncio sobre o pianista Fernando Lopes é um desrespeito à Cultura. Tudo a indicar que silêncios ainda bem mais profundos estão por vir, pois a decadência cultural e dos costumes processa-se vertiginosamente.

Today’s post is a tribute to the Brazilian pianist Fernando Lopes, who passed away last  March 8. An immense talent, he was one of the most prestigious pianists of his generation and an active promoter of Brazilian classical music. We played together back in the eighties and I can testify to his phenomenal technique. I also transcribe a message from the Brazilian conductor Ligia Amadio — who has known Fernando Lopes since the time she was a student at UNICAMP-Universidade de Campinas — stating that he was not only a genius of the piano, but also a man of exemplary character. His death has gone largely unnoticed by the mainstream press. Our print and electronic media prefer covering more sensational themes, such as celebrities, entertainment, scandals…, underlining their non-commitment to intellectual refinement, but our memory of Fernando Lopes will live on through the legacy of his recordings.