A acolhida silenciosa


Estar na Bélgica, precisamente em Gent e Mullem, traz-me lembranças de mais de duas décadas de convívio. Acredito terem sido para mim os anos de maior relacionamento voltado à essência musical, mercê prioritariamente das gravações. Registro definitivo pressupõe uma abordagem que escapa à apresentação pública. Mesmo a gravação com vídeo carrega consigo elementos voltados para o gestual do executante. Presentemente esse procedimento tem atingido limites aceitos pelo público ávido da imagem, mas que retiram a concentração do essencial, a música.

No silêncio absoluto da Capela Saint Hilarius, em Mullem, estou a viver meu derradeiro contato visando à edição de um CD. Antes da gravação dei recital na Capela, a apresentar todo o repertório a ser gravado. Faço-o sempre, desde o final dos anos 1990. Inclusive essa prévia com público competente faz com que já penetre nessa atmosfera inefável, solitária e mística da gravação. Três dias, como sempre, ou melhor, três noites, que têm início por volta das 23:00 e se estiolam na aurora. Sem açodamento, sem tensão ou ansiedade. Meu dileto amigo e excepcional engenheiro de som é também psicanalista. Sabe entender-me. Tem a percepção exata de que em determinado momento é necessária a pausa. Nos vinte anos de convívio anual, em datas precisas, jamais se preocupou com o tempo. Johan conhece a mente e o coração do intérprete. Encerramos as sessões num acordo mútuo. Essa atitude, raríssima entre profissionais de seu nível, permite que a transmissão da mensagem musical possa ser passada por inteiro aos microfones, que representam o público do amanhã. Se o recital é o vento que passa, a gravação nessas condições pode ser comparada à permanência, às pegadas deixadas no interior desse arsenal tecnológico que nem o vento ou o mar, em seu eterno fluxo, podem fazer desaparecer.

Escrevi ultimamente sobre legado e as admiráveis frases do filósofo português Eduardo Lourenço ainda estão vivas em minha mente: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso”. Acredito que a única certeza é a realização a mais cuidada possível. Meu dileto amigo Willy Corrêa de Oliveira, pensador e compositor de mérito, escreveu que “Intérprete é só aquele a quem é dado tocar o mistério. Ciência nenhuma leva até onde o mistério está”. Essa busca incessante pelo conteúdo essencial de uma obra escolhida para ser transmitida pode chegar a termo relativo, pois o anseio é sempre o do aprimorar. Em 1915, Debussy escrevia a Molinari que a beleza do som é a essência da Música. Chegar ao limite de uma interpretação pode acontecer em raros momentos. O hic et nunc ou, como diria o poeta, “a chegada das musas a inspirarem o ato criativo”, não acontece sempre, assim como a visão de pássaros migratórios ou da aurora boreal não é cotidiana.

Dificuldades quanto à Internet impedem-me de o alongar o texto.