Debate profícuo sobre o tema

Há mil maneiras de interpretar Debussy respeitando-o.
Uma só é equivocada: é a de trair seu estilo.
Jacques Février.

O compositor francês François Servenière teceu comentários de muito interesse a respeito do blog anterior, o que me levou a uma resposta. Novamente escreveu-me a substanciar sua argumentação, o que me levou a responder-lhe novamente. Transmito ao leitor segmentos dessa troca de opiniões sobre um tema relevante e agradeço a François Servenière por ter-se debruçado tão a fundo, emitindo considerações abalizadas. O debate de ideias serve para o amadurecimento do ser humano.

Escreve Servenière:

“Seu texto compara duas civilizações de músicos intérpretes, a europeia e a asiática, da qual a expressão particular é a chinesa contemporânea. Não é possível comparar dois períodos tentando analisá-los com os mesmos critérios. Na realidade, não se está a comparar duas escolas, dois períodos históricos, pois estamos confrontando duas escolas, a romântica moderna europeia do início do século XX, no caso específico a francesa, que se expande com Marguerite Long e seus epígonos, com a chinesa, que chega com impacto quase um século depois, nas fronteiras dos séculos XX e XXI.  Obras que pareceriam impossíveis de serem executadas por intérpretes do passado – salvo exceções – são julgadas normais na interpretação de nossos dias. Assim como a música popular influenciou compositores ascendentes, tendências recentes do jazz, rock, música para as massas e fluxos rápidos retilíneos influenciam a interpretação hodierna.

Claro, evidencia-se que uma geração de intérpretes da vasta escola europeia clássica, aquela que teve como referência a obra de autores consagrados, pode julgar os pianistas chineses da última geração como robots que não compreendem a música e seus fundamentos por pensá-la em tempi mais rápidos nos segmentos expressos. Podemos admitir tal fato – interpretação robótica -sobretudo se considerarmos a excessiva rapidez em determinadas interpretações de criações românticas e impressionistas. Nesses casos, a execução rapidíssima poderá estar completamente deslocada.

Sob outra égide, recomendo muitas vezes a escuta das músicas barrocas, de Bach ou de Couperin, que não podemos jamais interpretar sem o perigo do excesso de rubato. Constato que a irregularidade do rubato prejudica certas músicas de nosso tempo, mesmo quando assinaladas. A música, quando bem escrita, não tem necessidade de flutuar em torno de um ponto central de tempo. Sim, ela tem necessidade de respirar, mas não de uma super-respiração. Não se pode considerar a interpretação do século XX como uma certeza linguística forjada para os séculos seguintes. É um ponto de vista de uma época, devemos aceitá-lo como tal. Não aceitamos como ultrapassados os critérios do quattrocento ou das Lumières?

Hoje há repertório contemporâneo moderno – não o estilo ‘contemporâneo’ (já datado), mas a época,  – baseado sobre o ritmo e a velocidade, espaços esses nos quais os intérpretes da Ásia fazem maravilhas.  O tempo e a moda passam e é necessário se adaptar. Houve um período maravilhoso antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), chamado Belle Époque, centrado em Paris, destinado à languidez e ao rubato, cujo desiderato preciso era a expressão íntima dos sentimentos. Obras primas foram criadas. É esse período único? Não. Em sequência, a história trágica viu a derrocada de todos os critérios de beleza e de sentimentos, exacerbados nas grandes convulsões do século XX. Se é fabulosamente importante e necessário conservá-los como testemunhos absolutos de uma época, sob outra égide, qual a razão de conservatórios, bibliotecas, fundos artísticos e museus pensarem ainda hoje como naquela época? Estamos num período da rapidez, que busca encontrar na música a expressão de seu tempo. Essa percepção ressente-se na música criada, pois a juventude não mais aceita, para a música, critérios como o rubato musical, pois os considera datados. Essa juventude vive o tempo da mecânica e do mecanismo.

O humano mudou completamente a percepção do tempo que lhe resta. Há um século, na época da lentidão de barcos, comboios e veículos, pensava-se que era necessário dar ‘tempo ao tempo’. A vida se desenrolava ao ritmo do escargot, ritmado pelas estações. Eram considerados antisociais aqueles cidadãos apressados e excitados. Segundo os critérios daquele período, todos seríamos considerados loucos!

Hoje, a percepção do tempo a viver, mercê da aceleração dos meios de transportes, dos ritmos de vida e da comunicação eletrônica, tornou-se fonte de stress permanente e quase obrigatório, que nos devora a partir de nosso interior. Doravante consideramos que o tempo de vida é curto para apreciar todos os prazeres oferecidos pela época moderna: viagens obrigatórias, superconsumo, atividades múltiplas da megalópole. Afigura-se imperativa a adaptação ao fluxo da torrente impetuosa para sobreviver. A comunicação audiovisual, mundializada e totalizante, amplifica essa percepção até à neurose individual e coletiva.

Ao ouvirmos hoje Petrouska ou O pássaro de fogo de Stravinsky, La Mer de Debussy, na percepção hodierna as sentimos, até certo ponto, lentas, se bem que a dinâmica e a escritura sejam extraordinárias. Obras-primas para sempre. Quando ouvimos as últimas músicas criadas/interpretadas hoje na música contemporânea, mesmo para orquestra, a pulsação rápida e linear tornou-se o eixo central da obra. Abaixo desses tempos, considera-se a música como datada, enfadonha… Diz-se comumente ‘Você não se aborrece de compor música para as velhinhas!’, pois é possível improvisar languidamente, modulando à maneira de Fauré…

O que entendemos primeiramente como injúria ou incultura de massa não o é realmente… É justo o reflexo ou a defasagem da percepção diferencial do tempo entre a música mais tocada nos concertos clássicos – aquela anterior aos anos 1940 – com essa criada posteriormente, ouvida majoritariamente nos dias de hoje. A música de nossa época, mesmo na criação elitista, é uma música pulsada, ritmada, ávida da velocidade que, se for executada lentamente e com rubato, não responde ao objetivo daquilo escrito na partitura. Os músicos formados atualmente seguem sem dificuldade essa nova norma, apesar de subsistirem reações. E nessa  concepção musical, plena de intenso jorrar e de velocidade, mesmo considerando-se a época da criação, é evidente que os chineses performáticos são os melhores. Não nas obras de Debussy, Ravel ou do romantismo, pois a agógica desse período pede o charme, a virtuosidade controlada e uma profundidade que merece reflexões musicais. Não teriam as obras novas perdido esse lampejo de eternidade lenta, característico no pensamento filosófico e bíblico tão presente nos clássicos e nos românticos e até nos impressionistas? Talvez.

Não coloquemos em questão a escola europeia de música, atrelada à da filosofia continental, que certamente permanecerá como um farol indomável face à tempestade provável do mundo futuro… Brevemente entenderemos que não são os chineses que se adaptam à escola europeia, mesmo que eles frequentem suas classes, mas que serão os intérpretes europeus, seguros de seu magistério superior, talvez equivocadamente, que se adaptarão doravante, parcial e lentamente, à oferta chinesa, pois o público está a aceitá-la. Publico ávido do espetáculo, dos efeitos especiais e dos fogos de artifício. É nossa época. Uma Roma decadente, talvez…

Concluindo, após essa breve análise, não há somente um cisma artístico entre duas escolas. Há sobretudo uma ruptura de época, como a pertinente entre a tecnologia de 1950 e a atual. Situação boa ou má? Ninguém pode saber. Contudo, não precisaríamos colocar em questão se aquilo que se praticou nos anos 1930 e que perdurou nos Conservatórios será o futuro. Ou, então, considerar que a escola chinesa que avança sobre o Ocidente, impondo seu estilo audacioso, seja sinal dos nossos tempos. Não colocaria minha mão no fogo quanto à superioridade da interpretação dos períodos passados.

Eis minhas observações após seu texto enriquecedor” (tradução: JEM).

A preceder minha resposta ao ilustre compositor François Servenière, colocaria para o leitor, não conhecedor de determinadas palavras do vasto léxico musical, a palavra italiana rubato (roubado). Das definições, uma parece-me bem plausível: “Modo de execução em que, sobretudo em passagens expressivas, se adopta uma grande liberdade de movimento sem que, porém, se destrua o essencial do ritmo” (Tomás Borba – Fernando Lopes-Graça. Dicionário de Música. Lisboa, Cosmos, 1958).

Respondi-lhe:

“A sua mensagem está muito bem articulada e atende em parte à nossa realidade atual. O amigo demonstrou que essa invasão chinesa chegou a utilizar princípios de nossa atualidade vertiginosa e alucinante. Todavia, malgrado essa realidade, preocupa-me a mudança abrupta de mentalidade, que não corresponde àquilo que está depositado nas partituras do passado e que resultou na interpretação que, ao longo de quase dois séculos, preservou valores culturais não pertencentes ao cotidiano da mentalidade chinesa. Um amigo português, excelente pianista, aliás, dizia-me há alguns anos que conversara com pianista chinês durante Festival de música europeu. O artista asiático havia tocado Sonatas de Beethoven. ‘Você conhece bem a Cultura alemã dos séculos XVIII-XIX para bem entender as mentalidades de Beethoven, Schumann, Brahms?’, perguntou meu amigo. Recebeu resposta que o deixou atônito. ‘Teria eu de conhecer a Cultura dos países europeus para tocar bem? Estudei muitíssimo para ser pianista, não um expert em literatura e outras artes’. A pianista chinesa Yuja Wang, de imensa notoriedade, declararia em entrevista que o público adora ouvi-la tocar ‘O voo do besouro’ de Rimsky-Korsakov na transcrição de György Cziffra, esperando possivelmente que recordes de velocidade possam ser batidos. Se de um lado o público adora essa legião de supervirtuoses que, à maneira de acrobatas, épatent les bourgeois, se na mesma direção a fala do Diretor do Conservatório de Shangai (vide blog anterior) precisou a velocidade como meta para os pianistas chineses sem mencionar a palavra expressão, pode-se verificar que, apesar de toda a evolução tecnológica e da ‘velocidade’ cotidiana, há algo a se pensar relacionado ao estilo de um compositor do passado.

Sobre o rubato, trata-se de elemento expressivo natural na música, pertencente à plasticidade da frase, tão compreendida desde a Idade Média através do Canto Gregoriano. Minha saudosa amiga, a notável gregorianista Júlia d’Almendra (1904-1992), que sustentou tese no Institut Grégorien de Paris em 1948 sob o título ‘Les Modes Grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy’, dizia-me sempre que a música gregoriana e a que a sucedeu em tantas ramificações outras não existem sem essa flexibilização agógica. François Couperin (1668-1733) escrevia no prefácio da edição de 1713 do primeiro livro das ‘Ordres pour Clavecin’: ‘Amo muito mais o que me emociona àquilo que me surpreende’. Disse tudo. Sob outra égide, o grande músico, pianista e regente Daniel Barenboim, em seu livro ‘La Musique est en tout’, escreveria que o ouvido humano não consegue seguir a velocidade extrema de certos intérpretes atuais.

Sobre a velocidade, não me oponho a essa peculiaridade, essencial à boa execução em obras específicas, desde que dominada a serviço da ideia do compositor. Logicamente, um compositor contemporâneo, sem o pleno domínio dos instrumentos acústicos, pode indicar velocidades absurdas, que ele ouve ‘eletronicamente’ através de aplicativos super avançados. Acredito que a origem original na cabeça de inúmeros intérpretes – mormente oriundos do Extremo Oriente – é o desconhecimento da ampla Cultura Ocidental. Suas leituras frenéticas, vertiginosas, habilíssimas das partituras dos compositores europeus dos séculos passados podem ter a ausência dessa anima imprescindível à interpretação.

Apesar dessa velocidade extrema de certos pianistas chineses, raramente os ouço via Youtube, pois sei o resultado. Mencionaria, como rara exceção, a pianista chinesa Zhu Xiao-Mei (1949- ), hoje radicada na França, cuja interpretação das ‘Variações Goldberg’, de J.S.Bach, é simplesmente extraordinária e está no YouTube. Seu livro (vide blog: “La Rivière et son secret”, 06/11/2009) narra suas absurdas vicissitudes vividas durante o período maoísta.  Contrariamente, estou sempre a visitar as gravações de Vladimir Horowitz, Wilhelm Kempff, Alfred Cortot, Arthur Rubinstein, Wilhem Backhaus, Guiomar Novaes, Samson François, Jean Doyen, Marcelle Meyer, Vladimir Sofronitzki, Emil Guilels, Claudio Arrau, Edwin Fischer… Choque de gerações? Talvez. Aos 81 anos, posso me permitir escolhas. E elas foram feitas”.

In this post I publish email messages exchanged between the French composer François Servenière and me, stating our different views on the quality of East Asian pianists’ performances, the Chinese in particular. While I believe most of them play with the clear intention of beating world records, Servenière appreciates their approach to piano playing, considering it an expression of our time, the era of speed and technology. In his opinion, Chinese performers are a huge success because they give what today’s audiences want: a dazzling display of technique, extreme speed, flamboyant behavior, fireworks.