Sesquicentenário de um grande músico português

Forçado a optar,
Francisco de Lacerda escolhera a direção de orquestra.
É que ele dispunha de outras possibilidades.
E se incorro na grave indiscrição de mencionar
ainda as suas composições,
que muito poucos conhecem,
é porque creio que só o conhecimento delas
revelará completamente a sua personalidade artística.
Ernest Ansermet  (1883-1969)

Serão dois posts a homenagear Francisco de Lacerda, um dos nomes referenciais da música portuguesa nas décadas fronteiriças dos séculos XIX e XX. Em um primeiro focalizarei sucintos dados biográficos, sua ação como regente de orquestra e a relação musical com Claude Debussy, que o marcaria definitivamente ao longo de sua atividade composicional, pois mesmo pequena, multum in mínimo, tem relevância transparente. Conteúdo expandido dos dois posts fará parte da conferência que darei no dia 19 de Outubro no Consulado Geral de Portugal, em São Paulo. Num segundo, abordarei obras para piano, que interpretarei no dia 26 de Outubro no Ateneu Paulistano.

Se em 1973 a Fundação Calouste Gulbenkian publicava, na coleção “Portugaliae Musica”, Trovas para canto e piano de Francisco de Lacerda aos cuidados do compositor Filipe de Sousa (revisão e prefácio), devem-se ao musicólogo José Manuel Bettencourt da Câmara, açoriano como o homenageado, os estudos aprofundados não apenas da vida e da obra de seu conterrâneo ilhéu, como das edições da correspondência do pai do músico, João Caetano de Sousa e Lacerda, ao filho Francisco, assim como das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste para piano (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, col. “Portugaliae Musica”, 1986), criação a ser interpretada na íntegra no dia 26 do corrente.

Nascido na Ilha de São Jorge, uma das nove do arquipélago dos Açores, ainda adolescente parte para Portugal continental, onde realizou seus estudos mais aprofundados em Lisboa, junto ao Conservatório Nacional. Após os anos de aprendizado leciona no mesmo Estabelecimento de Ensino até 1895, quando uma bolsa de estudos fez com que pudesse se aperfeiçoar em Paris, onde teria entre seus professores Charles-Marie Widor (contraponto e órgão). Após a passagem pelo Conservatório de Paris, ingressa na Schola Cantorum, a ter como mestres Felix Alexandre Guilmant (órgão) e o compositor Vincent d’Indy. Seria este o responsável pela primeira apresentação de Francisco de Lacerda como regente (1900), atividade que o notabilizaria ao longo da carreira. Sempre em ascensão, vemo-lo como Diretor artístico da orquestra do Cassino Municipal de La Baule (Loire Atlantique – 1904) e de Nantes (Concertos Históricos de Nantes). A direção da orquestra do Kursaal de Montreux (1908-1912) fá-lo deparar-se com outra realidade.  Sob sua batuta, alguns dos principais nomes da interpretação europeia se apresentaram, tendo sido o responsável pela execução de obras referencias do período, destacando-se, entre aquelas consagradas do repertório tradicional, criações coetâneas francesas representativas e dos compositores russos de cunho nacionalista. O grande regente Ernest Ansermet (1883-1969), que o sucederia na direção do Kursaal e que se tornaria um dos maiores regentes do século XX, confessaria sua admiração por Lacerda: “a cada vez que me via com tempo disponível em Lausanne, corria até Montreux para assistir a seus ensaios e ele foi meu mestre na direção de uma orquestra, pois regente de primeira categoria”. Em outro escrito louva as qualidades do mestre Lacerda: “Na direção de Francisco de Lacerda deparamos com aquilo que constitui as duas faces de sua personalidade: riqueza e proeminência do instinto musical, que é seu traço pessoal e marca da sua raça; uma cultura profunda e vasta, que é resultado dos seus anos em Paris”. Insiste Ansermet nessa apreensão cultural: “Ela explica a consistência admirável de seus programas, a compreensão que ele demonstra em relação a obras aparentemente alheias ao seu espírito, como as de Strauss ou de Brahms”. Louva a seguir a ato de reger de Lacerda: “ausência completa de truques, de imprecisão, de trompe-l’oreille, simplicidade, clareza, rigor de expressão, franqueza e precisão na dinâmica, no movimento, no acento, no ritmo”. Entre 1912-1913, sob contrato, Lacerda dirigiu em Marselha os Grandes Concertos Clássicos da cidade.

Após esse período glorioso, Francisco de Lacerda permanece durante longos anos nos Açores, período em que intensifica suas pesquisas relacionadas à música de raiz. Em 1921, a demonstrar seu espírito empreendedor, idealiza e funda não apenas a Pró-Arte como a Filarmônica de Lisboa, realizações que tiveram pouco fôlego, mercê de antagonismos que surgiram à sua ação em prol da melhoria da música em seu país. Retorna à França, a fim de desenvolver atividades temporárias como regente em Paris, Marselha, Nantes…

Debilitado fisicamente, retorna a Lisboa, quando continuaria suas pesquisas relacionadas ao folclore português. Parte desse aprofundamento teria progressiva publicação póstuma, o Cancioneiro Musical Português, harmonizações de música de cariz popular. Seu biógrafo, José Manuel Bettencout da Câmara, escreve: “Afirmando-se o seu nome de novo por terra alheia, a Pátria continuará a ignorá-lo, malgrado a homenagem de que, com Viana da Mota, é alvo no Teatro Nacional de S. Carlos a 30 de Abril de 1925″. Prossegue o biógrafo: “Lacerda continua a esperar até o fim da sua vida o reconhecimento que não virá”.  Faleceria em 1934, vítima de doença prolongada, a tuberculose pulmonar.

Francisco de Lacerda guardaria indelevelmente admiração plena por Claude Debussy. Dataria a aproximação entre os dois ao ano de 1904, quando de um concurso de composição organizado pela “Revue Musicale”, no qual Lacerda obteve o primeiro prêmio com sua Danse sacrée – danse du voile. A respeito desse concurso, escreve Ernest Ansermet: “…a sua obra foi premiada e publicada, tendo no júri deixado impressão suficiente para que um dos seus membros, M. Claude Debussy, lhe prestasse homenagem pública, dela retirando, com toda a franqueza, um tema a partir do qual escreveu uma outra dança para harpa cromática e orquestra”. Trata-se das célebres Danses – Danse Sacrée et Danse Profane (1904), em que tema da Dança de Lacerda, assim como o título, testemunham admiração pelo músico açoriano. Se as Danças dos dois compositores serviram para uma aproximação maior em 1904, seria contudo o distanciamento, que se dá devido à atividade de Lacerda como regente fixado temporariamente em tantos centros geográficos fora de Paris, que progressivamente sedimentaria no músico açoriano a irrestrita e perene admiração pelas criações de Debussy.

Tem-se quatro cartas conhecidas do mestre francês para Lacerda (1906-1908), assim como citações de seu nome em missivas endereçadas a músicos, enaltecendo as qualidades de Lacerda. Nas cartas de 22 de Janeiro e 9 de Março de 1906, Debussy faz referência à ópera Fêtes de Polymnie, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), pois encarregado da revisão, pedira a ajuda de Lacerda para esse mister. Debussy reiteradas vezes tece elogios à regência competente do músico açoriano e ao seu trabalho de investigação musicológica: “Lacerda é um músico sólido e experiente, que poderá prestar relevantes serviços em tudo o que se refere aos coros e à orquestra. Tem, em acréscimo, o gosto e o conhecimento profundo dos velhos mestres, o que é raro em nossa época…” (carta a Albert Carré, 08/06/1906); “Aconselhei Lacerda a publicar os Chants et Danses d’un petit peuple oublié… escreverei prazerosamente o prefácio” (carta a Louis Laloy, 11/06/1906); “Permita-me recomendá-lo com ênfase, pois ele é um excelente músico, acreditando mesmo que existam poucos regentes de orquestra que poderiam prestar melhores e mais seguros serviços” (carta a sugerir Lacerda a Alexandre Émery como regente no Kursaal de Montreux, 25/08/1908). Nomeado para o posto, Lacerda recebe de Debussy a carta bem significativa quanto à escolha: “… não lhe parece preferível respirar os ares de Montreux ao invés do perfume de sacristia da Schola?” ( carta a Francisco de Lacerda, 05/09/1908).

Entende-se a ironia de Debussy, pois conhecedor da formação de Lacerda na Schola Cantorum, estabelecimento no qual Lacerda esteve a estudar a partir de 1897. Entre os fundadores da Schola estava Vincent d’Indy, que, com seus colegas, tinha como um dos postulados a restauração da música antiga. Debussy não nutria a menor simpatia pela Schola Cantorum. Se princípios indeléveis da Schola podem ser detectados na composição de Lacerda, preponderam as inovações propostas por Debussy, mormente na qualidade sonora, na essência essencial a visar ao timbre, às ressonâncias, às baixas intensidades, que ficariam indelevelmente na mente do músico português. Imitação estilística? Absolutamente não, pois essas apreensões de tendências até antagônicas possibilitaram a Lacerda o amálgama. Se o aprendizado da Schola Cantorum permaneceu como “captações formais”, poder-se-ia dizer que a influência de Debussy é patente em vários procedimentos, a preponderar o culto às sonoridades inusitadas, ao timbre seletivo.

Considere-se que a dedicação à regência em alto nível foi um dos motivos da criação restrita, mas reveladora das qualidades escriturais de um grande mestre. Composições para piano, canto e piano, orquestra, orquestra e canto, câmara, coro, órgão…, geralmente de curta duração, constituem um legado significativo para a música portuguesa.

No próximo post abordarei a obra para piano de Francisco de Lacerda e determinadas características estilísticas de suas esmeradas miniaturas, presença de um estilo personalíssimo.

This is the first of two posts addressing Francisco de Lacerda (1869-1934), one of the most prominent figures of the Portuguese classical music in the late 19th and early 20tth centuries, with a brief biography, his role as composer and conductor, his relationship with Claude Debussy, who would be an indelible influence in his works as a composer. The contents of the two posts are part of a talk on Lacerda I will give at the Consulate-General of Portugal in São Paulo on October 19, followed by a recital with Lacerda’s music for piano in the Ateneu Paulistano concert hall on October 26.