Duas manifestações que mereceram especial atenção

Deve-se estar atento às ideias novas que vêm dos outros.
Nunca julgar que aquilo em que se acredita
é efetivamente a verdade.
Fujo da verdade como tudo,
porque acho que quem tem a verdade num bolso
tem sempre uma inquisição do outro lado
pronta para atacar alguém;
então livro-me de toda a espécie de poder – isso sobretudo.
Agostinho da Silva
(Entrevista)

Apesar do desconhecimento que se tem no Brasil da criação musical portuguesa de cariz erudito, tiveram invulgar recepção os dois blogs focalizando o compositor Francisco de Lacerda (1869-1934), neste ano em que se comemora o sesquicentenário do músico nascido nos Açores. Gostariam de conhecê-lo mais. Observei no post precedente que brevemente sua produção maior, as “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, estará no Youtube a partir de minha gravação para o selo belga De Rode Pomp em 1999, com power point preparado pelo ilustre musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso e a montagem do vídeo pelo devotado amigo Elson Otake, responsável pelas inserções de minhas interpretações no popular aplicativo.

Também, em parte, foi em torno de Francisco de Lacerda que o compositor e pensador Willy Corrêa de Oliveira e eu estreitamos laços de amizade, tênues e sujeitos aos nossos humores no intramuros universitário durante décadas. Dez anos de silêncio após nossas aposentadorias e reencontramo-nos, primeiramente em torno de sua preciosa obra “Recife, Infância, Espelhos…”, 16 peças que estreei em 1989 e que foram gravadas em Maio último na mágica capela de Saint-Hilarius em Mullem, na Bélgica flamenga, para CD a ser lançado em França pelo selo ESOLEM em 2020, junto a obras de François Servenière, Eurico Carrapatoso e Maury Buchala. Nos nossos 81 anos, Willy e eu podemos manter conversas unicamente sobre temas que nos são caros, como música, literatura diversa, poesia…, distantes de quaisquer assuntos da tumultuada vida universitária. Esse tête à tête sem interferências burocráticas ou acadêmicas alegrou nossos corações. Insaciavelmente, a buscar resgatar tempos perdidos, trocamos livros, CDs e filmes, avidamente copiados. Octogenários, ainda encontramos tempo para recuperações e avanços. Já mencionei em posts anteriores o desenrolar dessa nossa “tertúlia” dual.

Duas mensagens recebidas, com teores absolutamente diferenciados, despertaram minha atenção em particular. Regina Porto, musicista, jornalista e promotora cultural de mérito, escreveu-me e-mail que me calou muito. Há longos anos não entrávamos em contato, nem saberia precisar a distância temporal. Parece eternidade. Em torno de Willy em longínqua apresentação e de Francisco de Lacerda a ser interpretado, Regina Porto rememora e capta o instante do acontecido presente. A reminiscência, nessa fase da vida, pode representar tantas outras memórias. A mensagem de Regina Porto faz-me lembrar dos símbolos que, passados 30 anos, não dimensionara à altura. Percebo, através da escrita da amiga, que eram marcos de resistência. Diminuto e fiel público, a ouvir a primeira audição de criações do Willy Corrêa de Oliveira num período em que nossos laços amistosos não eram constantes.

Regina Porto, dotada de fina observação, apreendeu essencialidades de um relacionamento entre dois músicos. No dizer de Stravinsky, na entidade musical há somente duas espécies de músicos, o criador e o intérprete. Mas há mais, acredito, a depender de voos para outras áreas do pensar que dimensionam as duas categorias de músicos. Sem esses acervos reflexivos, por vezes fruto do acaso, lacunas insanáveis estiolam possibilidades. Ausência de amarras, sempre. Escreve Regina Porto, após meu pedido para estar presente ao recital do dia 26 de Outubro no Ateneu Paulistano em São Paulo:

“Você nem imagina os pulos que meu coração deu com a sua mensagem e o seu convite. É uma memória inteira que voltou, de tantas vivências musicais que partilhamos.

E uma dessas vivências primeiras e mais fortes é justamente a lembrança de você tocando Willy no Conservatório do Brooklin em 1988. Aquele foi um momento histórico que me marcou muitíssimo. Está no centro de toda a aproximação que vim a ter com o Willy tantos anos depois. E de tudo o que eu viria a entender dele a partir daí.

Então, vê-los juntos no palco novamente, em um recital, 30 anos depois (!), é coroar um capítulo de vida, se posso dizer assim. No sentido de entender que a vida ajusta as coisas, todos os desvios, todos os desencontros – ou simplesmente que põe todas as coisas nos seus devidos lugares, num gesto maior de compreensão. E no caso seu e do Willy é um ciclo de anos que se completa: as duas pontas se encontrando de novo. É muito lindo. Muito. Fico mesmo comovida.

Isso tudo para dizer o quanto estou encantada. E o quanto quero poder estar lá para, mais uma vez, ser testemunha de um momento histórico e extraordinário.

A última vez em que estive na casa do Willy (semestre passado), a primeira coisa que ele tocou ao piano para mim foi justamente esse Lacerda que você deu a ele. Significou muito para ele, o seu presente, você nem imagina. Você sabe, o Willy é todo ritualístico, me fez ouvir sem dizer o que era, sem que eu pudesse olhar a partitura, nada, aquelas coisas dele. E fui ouvindo aquela peça e me afundando na poltrona até ficar paralisada, sem reação, de tão profunda e imensa é essa miniatura. Agora só posso ansiar pelo que seja a intensidade de resposta do Willy. E posso intuir o que ela já representa para vocês dois.

Então, muito obrigada por convocar minha presença.

E aqui volto ao chão.

… Não queria perder por nada esse recital. E caso, em último caso, se isso não for possível, deixo desde já um pedido: gostaria de vê-los juntos uma vez, você e Willy, tocando e falando música. Seria uma honra viver isso”.

A miniatura de Lacerda tem título e subtítulo: “Zara – Epitáfio para uma criança” e, a anteceder os 23 compassos da peça, estrofes de um poema de Antero de Quental (1842-1891), igualmente açoriano:

Feliz de quem passou por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente como passa a rosa,
E leve como a sombra sobre a água

Era-te a vida um sonho, indefinido
E tênue, mas suave e transparente,
Acordaste – sorriste… e vagamente
Continuaste o sonho interrompido

Willy captou a essência essencial de “Zara” em sua “In memoriam Francisco de Lacerda”, miniatura atemporal.

Ao leitor José Alberto, autor da segunda mensagem, respondo através de artigo com o título “Francisco de Lacerda e Claude Debussy por José Eduardo Martins”, publicado aos 12 de Janeiro de 1992 em ‘O Telégrafo’, Horta, capital da Ilha Faial, uma das nove do arquipélago dos Açores e assinado pelo redescobridor de Francisco de Lacerda, o musicólogo, também açoriano, José Manuel Bettencourt da Câmara. Anunciava a digressão que realizei àquela altura por três ilhas, Faial, Terceira e São Miguel.

“Encontrámo-nos pela primeira vez vai para três anos, na tarde acalorada duma Lisboa de Junho. José Eduardo Martins havia dado aqui o recital que o trouxera a Portugal, e eu falhara. Telefonara-me um crítico musical seu amigo, propondo o encontro, e a razão, para mim, já então com notícia, se bem que imprecisa, do percurso do pianista brasileiro, adivinhava-se facilmente: ao intérprete de Debussy, ao músico formado na velha França, interessavam naturalmente os traços que na música portuguesa encontrasse do chamado impressionismo musical, interessaria, concretamente, Francisco de Lacerda. Se algumas responsabilidades me já cabiam na matéria, havia, pois, que arcar com elas…

Para um segundo encontro, dias depois, em casa da minha velha professora, sua amiga igualmente, D. Júlia d’Almendra, apareci munido, como assentáramos, da cópia de trechos inéditos de Francisco de Lacerda, que previamente selecionara (das ‘Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste’ obtivera já José Eduardo Martins um exemplar da minha edição, incluída na coleção ‘Portugaliae Música’ da Fundação Calouste Gulbenkian).

Escutei-lhe então a leitura, à primeira vista, de algumas peças que, se não são de dificuldade transcendente, apelam, contudo, a outras qualidades de que não pode o pianista prescindir. Lembro ainda o esvoaçar leve de ‘Papillons’, sem hesitações, o elaborado modalismo de ‘Feuilles mortes’, o contraponto de ‘Danse funèbre’ – tudo, o que é sem dúvida mais importante, já na boa opção interpretativa, na melhor configuração estilística. Era a primeira vez que aqueles sons – que, tanto quanto sei, não tinham ainda conhecido outros dedos além daqueles que os haviam criado (e dos meus, que décadas passadas sobre a morte do compositor, os procuraram recuperar) – passavam a um outro plano de existência, objeto de diferente exigência interpretativa”.

Fica-me indelével esse sesquicentenário. Propiciou-me a introspecção sonora nessa fase crepuscular. Sondar o som puro que se desprende das harmonias para vibrar com as consequentes ressonâncias que lhe dão permanência, mesmo que efêmera. Mas, não seria a ressonância a alma inefável do som ou dos sons? Francisco de Lacerda, legado.

In this post I publish a message that touched me deeply, in which the journalist and musician Regina Porto whom I’ve known for a long time , recollects with affection the roundabout course of my relationship with composer Willy Corrêa de Oliveira through time. Next, in reply to a reader, I transcribe an article appeared in 1992 in the newspaper “O Telégrafo” (from Faial Island, Azores), entitled “Francisco de Lacerda and Claude Debussy by José Eduardo Martins”, signed by musicologist José Maria Bettencourt da Câmara. This article, so I think, well explains the genesis of my admiration for the work of the Portuguese composer Francisco de Lacerda.