Uma visão interpretativa
É quase sempre a mesma história
desde a noite dos tempos:
são seus pares que o reconhecem,
admitindo-o entre eles, que o elegem,
bem mais que os comentaristas amantes da música
(denominados pela palavra “crítico”) que escrevem nos jornais.
Philippe Cassard
Não poucas vezes escrevi neste espaço sobre interpretação. Acredito sempre que a apreciação que se pode ter de uma composição a ser executada é prerrogativa do intérprete consciente. Por mais que um analista, não músico na prática, tente dissecar sob múltiplos ângulos uma criação, opinando até sobre interpretação, faltar-lhe-á essa “vivência física” musical que apreende as entranhas sonoras de uma obra, o desenrolar do discurso musical com todas as suas flexibilizações, e mais aspectos como agógica, articulação, dinâmica, timbre… O convívio atuante diário propicia ao músico discorrer sobre qualidades subjetivas da interpretação.
A literatura sobre Claude Debussy é vastíssima e se estende por mais de um século, a abordar preferencialmente levantamento biográfico que se foi enriquecendo com quantidade de documentação, mormente cartas, recolhidas, reunidas e publicadas periodicamente durante longo tempo de maneira criteriosa pelo saudoso amigo e ilustre musicólogo François Lesure (1923-2001), missivas essas na sua “totalidade” publicadas em 2005 (“Correspondance”, Paris, Gallimard, 2.330 pgs) sob a supervisão final de seu discípulo Denis Herlin. Se livros analíticos têm sido publicados, essas abordagens, todavia, ficam mais reservadas às revistas acadêmicas ou ligadas às instituições especializadas.
A respeito da interpretação preferencialmente pianística, também a literatura sobre Debussy aponta para debruçamentos diferenciados e de interesse, que se tem estendido durante décadas, obedecendo, frise-se, tendências vigentes.
O pianista Philippe Cassard (1962- ), um dos mais respeitados intérpretes franceses da atualidade, traz contributo valioso com seu livro “Claude Debussy” (France, ACTES SUD, 2018). O fato de interpretar periodicamente toda a criação para piano de Debussy, assim como as obras de câmara com piano e os ciclos de melodias para canto e piano, credencia-o a emitir opiniões a partir da longa experiência, pormenorizando-se naquelas por ele escolhidas para olhar mais aprofundado. Percebe-se seu conhecimento analítico abrangente, que fica ao largo nas suas explanações, o que entendo salutar para um livro de divulgação que de fato o é. Transmite em várias oportunidades posições originais de como interpretar Debussy ao piano, não negligenciando outros gêneros praticados pelo compositor, como as melodias para canto e piano e, evidentemente, a ópera Pelléas et Mélisande.
“Claude Debussy” está estruturado em muitos curtos capítulos nos quais música, poesia e arte por vezes interagem, sobretudo ao comentar as melodias nas quais Debussy teve intuição e perspicácia ao escolher os mais importantes poetas franceses do período como Baudelaire, Mallarmé, Verlaine…
Quanto à obra para piano, comungo com sua posição, a acreditar, segundo as palavras de Cassard, que “a Suíte Bergamasque e Pour le Piano, apesar de bem agradáveis para serem tocadas e artisticamente compostas, representam o passado, o antes de Pelléas e, em suma, uma maneira bem convencional de tratar o piano”. Duas das obras que menos interesse me despertam, apesar do valor intrínseco nelas contido. Desta fase, que se estenderia de 1888 a 1902, data da estreia de Pelléas, excluiria a Ballade para piano de 1890, que contém elementos essenciais da timbrística e de processos lembrados no futuro pelo compositor.
O pianista tece comentários de interesse sobre alguns Préludes de Debussy, mormente a considerar o universo dos timbres. Sob outro aspecto, rasga elogios à extraordinária L’Isle Joyeuse (1904), segundo Cassard “uma das peças fetiches de meu repertório”. Naquele turbulento 1904, recém separado de Lilier Texier, que tentara o suicídio com arma de fogo, e envolvido com Emma Bardac, que seria sua segunda mulher, igualmente surge Masques, antítese da feérica L’Isle... Cassard comenta: “Masques, com seu ranger, seu curso noturno a perder fôlego, seus gritos, sua histeria, suas ascensões fulminantes de cólera, fazem lembrar Golaud no quarto ato de Pelléas (‘Absalon! Absalon!’)”. Marcel Dietschy, em “La Passion de Claude Debussy” (1962), já descrevia “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce a destruir consciência alarmada”. Por sua vez, Cassard capta a essência de L’Isle Joyeuse: “… a alegria sem disfarce, a celebração do ato amoroso, a exaltação dos corpos”. Estudava eu com o grande mestre e pianista francês Jean Doyen no início dos anos 1960 e, após tocar L’Isle Joyeuse, dele ouvi que deveria estudar também Masques, para ele uma obra inefável, tão importante quanto L’Isle… e que só não era visitada pelos intérpretes por ser hermética e enigmática. Em recitais apresentei inúmeras vezes D’un cahier d’esquisses (1903), Masques e L’Isle…, que formam um trio contundente.
Após reiterar-se como intérprete de basicamente toda a obra de Debussy em que o piano interfere, inclusive a demonstrar encantamento pela parte do piano de Pelléas et Mélisande, admitindo que “paradoxalmente, a partitura de piano, tocada cena após cena por Debussy no salão de seus amigos parisienses durante oito anos, não é jamais sem interesse, não representando um empobrecimento, como acontece com a maioria das reduções de óperas, precisamente pelo fato de que ela foi amadurecida conjuntamente com os personagens, a ação e as partes de orquestra.” Nesse viés das transcrições visitadas a duas e quatro mãos, menciona La Mer, “transcrição puramente utilitária sem dúvida”, mas que, continuando o escrito, “tem o mérito de fazer compreender a fenomenal polifonia das três partes constituintes de La Mer”. Sob outro aspecto, os ballets Khamma (1911-12) e Jeux, (1912-13) têm reduções para piano “impraticáveis”, tendo contudo eficácia como guias para o estudioso.
Curiosamente, não há menção alguma no instigante livro de Philippe Cassard à La Boîte à Joujoux escrita em 1913, tantas vezes considerada como versão para piano. Trata-se, na realidade, de obra original para piano, como comprovei em seminário na École Pratique des Hautes Études em Paris, em Janeiro de 1992, a convite de François Lesure, tendo entre os ouvintes o pianista Noel Lee (gravou a integral para piano de Debussy), a musicóloga e escritora Myriam Chimènes e Denis Herlin. Meus aprofundamentos sobre La Boîte à Joujoux foram publicados nos Cahiers Debussy do Centre de Documentation Claude Debussy em Paris e na Revista Música da USP. Quanto à gravação desse ballet para crianças de Debussy e dos Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, realizei-a em 2003 na Bélgica para o selo De Rode Pomp (os Quadros… estão no Youtube e La Boîte… entrará no aplicativo em 2020). Gravei o CD por entender que La Boîte à Joujoux teria sofrido forte influência dos Quadros de uma Exposição. Seria possível que o entendimento de La Boîte… tenha adquirido força após a orquestração de André Caplet (1919) do precioso ballet para crianças.
Num outro contexto, Cassard afirma que o tríptico En blanc et noir para dois pianos de 1915 “é a suprema e sombria obra-prima dos últimos anos, a peça para dois pianos a melhor resolvida nessa configuração, superior à La Valse de Ravel e à segunda Suíte de Rachmaninov”.
Apregoou-se, desde meados do século XX, que Debussy teria herdado de Chopin muitos procedimentos, enquanto Ravel, de Liszt. Cassard apreende alguns aspectos do técnico-pianístico decorrentes da herança chopiniana, dentre os quais: “posição ligeiramente oblíqua das mãos para favorecer um legato profundamente ancorado nas teclas; aversão à técnica digital puramente mecânica; relaxamento de braços e dos punhos; ciência do som timbrado que permite fraseio vocal; utilização refinada dos dois pedais, guiados pelo ouvido em permanente vigilância; arte do rubato, essa flexibilidade sutil do tempo, que Liszt resumia maravilhosamente comparando-a ao carvalho, cujo tronco fica imutável quando só os galhos mais extremos reagem à brisa”. Curiosamente, ao citar notáveis pianistas chopinianos, esquece-se de Arthur Rubinstein, emblemático intérprete de suas criações.
Cassard menciona pensamento de Debussy sobre o Prêmio de Roma, do qual foi vencedor em 1884: “O Estado instituiu concursos por todos os lados, em todas as profissões. Formamos cada vez mais acentuadamente animais de concursos {…} No domínio da arte, acredito que o concurso é algo absolutamente nocivo. Digo-lhes que sou hostil à famosa tradição do prêmio de Roma. Endereça-se nesse caso à parte menos interessante do homem, a vaidade. E, na realidade, o prêmio de Roma não serve absolutamente para nada”.
Philippes Cassard por fim debruça-se sobre a magnífica “Correspondance” de Debussy acima mencionada, pormenorizando aspectos fulcrais que apenas nas missivas são revelados.
Incontáveis vezes, ao longo de mais de doze anos, teço elogios a tantos livros escritos por verdadeiros especialistas das matérias por eles escolhidas. Sente-se em “Claude Debussy” essa empatia, não desprovida de raras críticas ao compositor, mas que, no todo, traduz testemunho relevante a ser considerado. A se destacar a observação final de Cassard sobre o homenageado: “Reteremos o Homem Música, aquele que conjuga o som com a cor, capta o instante sobre o papel pautado, cria uma atmosfera palpável e desenha delicadamente os contornos de um sonho”.
My comments on the book “Claude Debussy”, by Philippe Cassard. In very short chapters, the author, himself a distinguished pianist and interpreter of Debussy’s works for solo piano, gives an authoritative account — part biography, part analysis — of life and works of one of the most revered composers of the twentieth century, with original views on the performance of his piano pieces. A great addition to the extensive literature about Debussy.
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