Físico avantajado frente à interpretação plena de contrastes sonoros
Na Idade Média,
eis um homem que teriam queimado vivo por feitiçaria.
Gieseking a tocar Debussy é Gulliver em Lilliput,
mas também Monet em Giverny.
Bernard Gavoty
(“Walter Gieseking – Les Grands Interprètes”)
Tem-me causado surpresa a recepção aos posts dedicados aos grandes mestres do teclado de antanho. Adultos das várias faixas etárias estimulam esse caminho e nomeiam pianistas notáveis e basicamente desconhecidos pelas novas gerações. Sob outro ângulo, alguns jovens estão bem interessados nesses “monstros sagrados” e, surpresos, apreendem que a interpretação sofreu modificações em direção aos preceitos da nossa civilização do espetáculo.
Walter Gieseking, ilustre pianista franco-alemão, notabilizou-se pela interpretação personalíssima, memória inusitadamente utilizada na apreensão das obras e pela surpreendente interpretação das integrais de Mozart, Debussy, Ravel, assim como das 32 Sonatas de Beethoven, dos dois livros do Cravo bem Temperado de J.S.Bach e de criações relevantes da música contemporânea.
Ouvi-o em São Paulo em recital memorável. Foi nas fronteiras das décadas de 1940-1950. Estou a me lembrar daquele pianista forte, com corpo de atleta de arremesso de peso, que dimensionava as sonoridades em seus limites extremos. Poeticamente, o crítico Bernard Gavoty comenta: “sob os dedos de Gieseking, o piano não é mais um instrumento de percussão onde os martelos são acionados, mas um cofre mágico de onde saem a voar, graças a toques misteriosos, as sonoridades adormecidas” (“Les Grands Intérprètes, Genève-Monaco, Renè Kister, 1954).
Clique para ouvir, na interpretação de Walter Gieseking, Claire de Lune, de Claude Debussy:
https://www.youtube.com/watch?v=MhadMhkFnnQ
A sua interpretação da integral para piano de Claude Debussy – conhecida até então – foi, durante um bom tempo, entendida como modelo. Estudos aprofundados da obra do compositor francês, tendo-se em conta aspectos entendidos fulcrais, como dinâmica, agógica e acentuação, assim como o respeito absoluto às intenções de Debussy, certamente o primeiro músico a tudo notar para que dúvidas não pairassem – lembremos sua frase: “quatro semicolcheias são quatro semicolcheias” -, fizeram com que a interpretação concebida por Gieseking sofresse contestação devido a determinadas liberdades. Contudo, sua leitura do conjunto da criação de Debussy ainda é referência. Por extensão, Maurice Ravel recebeu de Gieseking execuções memoráveis, mormente da Sonatina, Gaspard de la Nuit et Miroirs. Dessa última, ouçamos Alborada del Gracioso:
https://www.youtube.com/watch?v=7Ifp5KStkv4
Estou também a me lembrar de meu pai chegando em casa com um grande álbum azul a conter a integral para piano de Mozart em LPs. Foram dias não esquecidos a ouvir Walter Gieseking.
Clique para ouvir a Sonata em Lá Maior K. 331 de Mozart (Sonata da Marcha Turca)
https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=NHlJ1oP2Kq8
Duas curiosidades sobre Gieseking que me foram transmitidas pelo saudoso amigo e ilustre pianista Arnaldo Estrella (1908-1980). Gieseking esteve mais de uma vez no Brasil dando inúmeros recitais sequenciais, mormente no Rio de Janeiro. Quando na cidade, invariavelmente se deslocava para a região serrana a fim de caçar as famosas borboletas e, para tanto, trazia o material de coleta necessário. Contou-me também sobre fato largamente conhecido. Gieseking aprendera a memorizar muitas obras apenas através da leitura visual fora do teclado. Certamente uma das razões de seu repertório gigantesco. Comunicado pelos agentes do Rio para que tocasse obra do nosso Villa-Lobos bem conhecida do público brasileiro, o pianista recebeu a partitura antes da viagem, memorizou-a durante a travessia e à noite apresentou-a memorizada no recital . Nas viagens subsequentes, apresentava não apenas Villa-Lobos, como também a emblemática Il Neige!, de Henrique Oswald.
Bernard Gavoty enfatiza, ao entrevistar Gieseking antes de um recital: “Uma circunspecção emana desse colosso tão mestre de seus dedos que vos olha sem pestanejar, como se houvesse contemplado somente paisagens campestres”.
Para o estudante de piano, Gieseking tem considerações que levam à reflexão: “Nunca realizo exercícios técnicos. Entendo-os quase como supérfluos. Após aprender arpejos, escalas e outras noções fundamentais da técnica do piano, ele as sabe! Para que fatigá-lo e inutilmente aborrecer os dedos? Creio que, quando as mãos aprendem a tocar com igual força, o que pode parecer pouco natural, mercê do fato de que a força dos dedos não ser a mesma, e de que os ouvidos habituaram-se a controlá-los, a técnica lá está, disponível em qualquer momento”. Tem-se de compreender a extraordinária facilidade pianística demonstrada desde a infância a corroborar o pensamento incisivo de Gieseking.
Nas gerações do passado, a interpretação de Gieseking, ainda hoje referencial, era considerada icônica. Ele mesmo sentia-se “feliz e orgulhoso” pelo fato de seu nome estar sempre associado à obra de Debussy. Os estudos musicológicos que se acentuaram na segunda metade do século XX, passaram a entender a obra do compositor francês de maneira mais “hermética”, poder-se-ia afirmar. Há muita intuição, por parte de Gieseking na interpretação das criações de Debussy (Clair de Lune é um exemplo de diáfana concepção da peça), e esse frescor, até pioneiro, ainda desperta vivo prazer ao ouvirmos suas gravações.
Clique para ouvir Reflets dans l’eau, primeira do 1º tríptico de Images para piano de Claude Debussy:
https://www.youtube.com/watch?v=fPpIJB-0Nzk
O acúmulo de mensagens estimulando-me nessa vertente provisória que dei ao blog tem sido benfazejo. Perpetuar esse passado “remoto” é o caminho preciso para entendermos que a interpretação, a desconsiderar a essência essencial de uma partitura, não é razoável. A partitura possibilita liberdade, em termos, ao intérprete, liberdade contudo acentuadamente entendida por tantos como liberalidade de toda ordem. E essa deveria ser combatida, mas, nessa civilização do espetáculo, que visa preferencialmente o “choque”, lentamente nos distanciamos da tradição. Pouco a fazer.
The French-born German pianist Walter Gieseking (1895-1956), considered one of the most extraordinary musicians of the last century, is particularly remembered by his recordings of the complete piano works of Mozart, Debussy, Ravel, Beethoven’s sonatas, the two books of Bach’s ‘The Well-Tempered Clavier‘ and significant pieces by more modern composers. His photographic memory allowed him to memorize unfamiliar repertoire with ease and then perform it flawlessly. Though more rigorous music critics complain his rendition of Debusssy’s works is not totally faithful to the composer’s intentions, to date his Debussy recordings are regarded as benchmarks by many fellow musicians and music-lovers. I’ve seen him play once in São Paulo. A huge athletic figure with a sensitive touch, capable of exploring the limits of sonority of which the piano seemed capable.
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