Navegando Posts publicados em abril, 2020

Saber entender tempos trágicos

Trancar o nômade entre paredes
é o mesmo que enlatar o vento.
Sylvain Tesson

Sabia-se que o COVID-19 chegaria em nossas plagas. Era questão de dias ou semanas. Geograficamente o vírus fez uma grande curva, surgiu na China, atravessou a Ásia, chegou ao Oriente Médio, à Rússia, está a devastar parte da Europa, a seguir penetrou na África, atingiu a América do Norte e desliza pela América Latina sem perder a eficácia. Não é um tsunami que, após a passagem devastadora, traz calmaria ao oceano. Esse vírus tem proporções de pragas bíblicas. O COVID-19 invade, não esmorece, eventualmente toma outras configurações, sem perder seus efeitos que, infelizmente, têm contabilizado incontáveis vítimas fatais pelo planeta.

Nossos políticos, completamente despreparados, estão em permanentes disputas mesquinhas, enquanto o vírus avança. O âncora de “São Paulo Gente” da Rádio Bandeirantes, José Paulo de Andrade, define bem a classe que “conduz” este país: “Falta grandeza ao nosso homem público”.
O COVID-19 está entre nós. Timidamente penetrou em nossas terras sem insumos necessários para combater sua ferocidade maligna. Estamos apenas no início dessa pandemia que deverá ser, segundo alguns especialistas mais enfáticos, apocalíptica a partir deste outono que, paradoxalmente, prepara-se para exibir em São Paulo – epicentro da pandemia no Brasil – os manacás da serra inteiramente floridos. Bálsamo? Talvez.

O leitor Arlindo, de Belo Horizonte, escreveu-me a sinalar: “Como um pianista vive durante o confinamento?” Fiquei a pensar e respondo através deste post.

Primeiramente, menciono dois outros, dedicados ao promissor compositor português António Fragoso, que, a estudar em Lisboa, parte para Pocariça, hoje a fazer parte da União das Freguesias de Cantanhede e Pocariça, com sede em Cantanhede. Num espaço de poucos dias, o jovem António, seus três irmãos e duas outras pessoas que habitavam sua morada morreriam vitimados pela pneumônica ou gripe espanhola. Causou-me forte impressão a leitura dos relatos da tragédia (vide blogs: “António Fragoso 1897-1918”, 01/12/2018 e “António Fragoso diante da História”, 08/12/2018). Em 1918 sucumbiria em Ribeirão Preto, vítima da pneumônica, uma de minhas tias, Jupira, a caçula de meus avós maternos, aos 10 anos. Narrativas de minha saudosa mãe não deixavam de nos assustar quando meninos. Cifras contrastantes elevam de 50 a 100 milhões as vítimas de uma das estirpes do vírus Influenza A, do subtipo H1N1, pois estatísticas asiáticas não teriam sido contabilizadas. Os avanços da medicina fizeram com que jamais pensássemos na magnitude de um outro vírus de estirpe derivante daquela de 1918.

Minha mulher Regina e eu acatamos as recomendações da OMS. Recolhemo-nos desde meados de Março e saímos uma vez apenas para a vacinação contra a gripe influenza. Nossas queridas filhas nos trazem o necessário e aguardaremos intramuros o desfecho dessa calamidade.

Nessa rotina diária a lembrar, mutatis mutandis, o filme “O dia da marmota”, o calendário deixou de existir, apenas a ser lembrado nos momentos de pagamentos por aplicativo. Os dias da semana perderam significado e refletimos sobre privilégio e tragédia: o primeiro ao sabermos estar “protegidos”; em seguida, conscientes da avalanche de mortos quando de fato as periferias das cidades forem atingidas. Saúde e Saneamento Básico nunca foram preocupação essencial para figuras das várias esferas do governo. Obras abaixo do solo não rendem votos. Contudo, as dezenas de milhares de cadáveres que estarão proximamente nesse subsolo, ignotos pelos políticos, serão o libelo dos sepultos pelo descaso.

Desde o primeiro dia da quarentena sabíamos que a trajetória do COVID-19 promulgaria sentenças, tantas delas de morte. Nada a fazer, a não ser seguirmos pragmáticos nessa reclusão voluntária. Regina e eu dividimos tarefas, pois permanecemos isolados em nossa morada.

Ao acordar, fico sentado incontáveis minutos. Voluntariado, como gostaria de praticá-lo nesse período, mas a faixa etária impede-me de participar. Durante as horas penso nesses desfavorecidos fadados à morte sem assistência. Chegaremos ao caos. Lição aprendida? Passada a crise avassaladora, nossos homens públicos, sejam eles da direita ou da esquerda, continuarão a desprezar os mais pobres. A hecatombe seria muitíssimo maior, não tivéssemos o SUS, tão veementemente criticado e a ser desidratado, perdendo verbas preciosas a cada gestão, mas que, apesar de sucateado, ainda tem uma eficiência considerável para os menos favorecidos sem um plano de saúde privado.

Quanto ao nosso isolamento, a prática pianística prossegue com interesse invulgar. Compromissos para apresentações foram adiados sine die, mas estou a ter prazer muito grande ao revisitar obras que não frequentava há décadas. Causa-me vivo interesse o observar partituras com tantas anotações que inseri. Algumas dessas observações hoje seriam outras, a mostrar que o velho Camões tinha razão ao escrever que “todo mundo é composto de mudanças”. Essas partituras outrora estudadas comportam repertório bem substancioso. Sob outra égide, a curiosidade nesses tempos estáticos faz-me voltar a partituras que compromissos ao longo do tempo, impediram-me de estudar.

Clique para ouvir de J.S.Bach-Kempff, Awake the Voice is Sounding na interpretação de J.E.M., a pedido da dileta amiga e leitora Jenny Aisenberg:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s

De sua parte, Regina estuda seu repertório com agenda já para Setembro, se o ciclo do COVID-19 passar. Sob outro aspecto, revela-se inventiva na arte culinária.

O COVID-19 acentuou leituras. Há mais tempo para esse fundamental mister. Tenho manancial para um bom período a passar retraído. As palavras de meu bom amigo, ilustre arquiteto português António Menéres – “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” – precisam com nitidez o momento que estamos a viver (vide resenha do livro de Menéres no blog “Crónicas contra o esquecimento”, 29/07/2007).

Há décadas não mais leio os dois principais jornais de São Paulo com nítidas tendências ideológicas opostas, tornando enfadonho frequentá-los. Jornais televisivos da Band News ou da agora CNN e documentários espalhados nos inúmeros canais a cabo são vistos por Regina e por mim durante as refeições. A minha visão do mundo é atualizada através da leitura diária de dois jornais online franceses e um inglês.

Comunico-me com filhas e netas quase diariamente e com amigos fidelíssimos. Essas ligações são de imensa valia, substituem o presencial sem perder a intensidade.

Por fim, não mais treino nas ruas de minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, para as corridas oficiais, hoje suspensas. Nas fronteiras dos 82 anos, dá para treinar nos espaços de nossa morada. Apesar das distâncias exíguas, duas ou três vezes por semana treino durante 60 minutos, 150 voltas no térreo e 50 no terraço. Faz-bem bem e ajuda-me a manter físico e alma.

Creio ter respondido ao Arlindo. Acrescentaria que meu querido irmão, o notável jurista Ives Gandra Martins, após cirurgia de um divertículo de Zenker – o mesmo procedimento a que fui submetido em 2018 – teve complicações que o levaram à isquemia, à septicemia, à disfunção digestiva e, para agravar, à contaminação pelo COVID-19. Ficou internado durante 38 dias. Tememos por seu desenlace. Aos 85 anos, milagrosamente safou-se dos males e recupera-se em seu apartamento. Ângela, sua filha, doutora em Filosofia do Direito, contraiu o vírus, contaminada durante visitas ao pai, e recupera-se lentamente após deixar o hospital.

A tudo nos adaptamos. O COVID-19 um dia deixará o Brasil. O que nos espera a seguir mal podemos antever.

In this post I give an account of my routine in quarantine days. Following the advice of the World Health Organization, my wife and I adopted a stay-at-home procedure intended to protect ourselves and, indirectly, lower the number of infections by Covid-19 by promoting social distance. Totally isolated at home since 15 March, our daughters take turns in bringing us what we need. I divide household chores with my wife, study piano, read a lot, run one hour without a break in my backyard twice a week, talk by phone with family and friends and reflect about the tragedy that has befallen the world. We adjust to everything. COVID-19 will one day leave Brazil. What awaits us next can hardly be predicted.

 


Suas lembranças tardias de três compositores fundamentais

C’est la musique souveraine
qui nous fait entrevoir les vrais dimensions de l’homme.
Georges Duhamel (1884-1966)

Após comentários resumidos no blog anterior sobre a notável pianista Marguerite Long ao longo de sua carreira de intérprete, no que concerne a colaboração da artista não apenas como intérprete essencial dos maiores compositores do período como na divulgação de suas obras, abordarei sua contribuição literária.

Tardiamente Marguerite Long legaria suas recordações do convívio musical e amistoso com três dos principais compositores franceses desde a segunda metade do século XIX: Gabriel Fauré (1845-1924), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). Seria possível entender que, após tantas décadas passadas, a memória privilegiada de Mme Long pudesse, por vezes, fantasiar alguns episódios. Um eminente musicólogo francês apontou-me determinadas alterações na narrativa da pianista que, sem falsear a essência essencial do pensamento, teriam sido inseridas com o propósito de evitar a aridez do texto. Assim sendo, a escrita tem sempre um caráter agradável, até em segmentos que denotariam a presença de situações conflitantes. Poder-se-ia acrescentar que essas “alterações” ficariam mais evidentes nos diálogos travados entre a pianista e interlocutores. Sob aspas, muitas décadas após, o instante do acontecido pode ter sido “romanceado”, sem contudo  modificar o essencial.

Primeiramente debruça-se sobre Claude Debussy (“Au Piano avec Claude Debussy”, Paris, René Julliard, 1960). Desfilam em suas páginas, quantidade de testemunhos de músicos relevantes, sendo que se pormenoriza nos encontros com Debussy no segundo semestre de 1917, poucos meses antes da morte do compositor, aos 25 de Março de 1918. Debussy se encontrava em Saint-Jean-de-Luz, no “chalet Habas”, já em pleno declínio físico. Para a cidade se locomoveram três pianistas célebres: Ricardo Viñez, Joaquin Nin e Marguerite Long. Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand em Setembro: “… entretanto, tenho a chance de estar num lugar distante onde não os ouço”. O eminente François Lesure comenta: “Lendo-se ‘Au piano avec Debussy’, de Marguerite Long, tem-se a impressão de que, durante sua estadia no chalet Habas, Debussy se ocupou prioritariamente em trabalhar com ela. Nas 169 páginas de seu livro insere tantos outros testemunhos entre as raras sessões que o músico lhe dispensou” (Claude Debussy. France, Klincksieck, 1994). Seria possível entender que décadas acumuladas tenham superdimensionado esses encontros, que na realidade existiram, mas não na dimensão apregoada, e dos quais Mme Long extrairia certamente dados preciosos que sedimentaram suas interpretações das criações de Debussy. Acredito que a contribuição maior de “Au piano avec Claude Debussy” decorra das observações interpretativas da autora sobre obras fundamentais do compositor.

Anteriormente a Debussy, Marguerite Long entrara em contato com a criação de Gabriel Fauré sem ao menos tocar até 1902 qualquer de suas composições. Revelado, Fauré e a admiração pela sua obra permanecerão por toda a existência. Como relata em seu livro, foi um dos mestres franceses do período, Antonin Marmontel, que a fez entrar em contato com as criações de Fauré e, no primeiro encontro com o compositor, interpreta a 3ª Valse-Caprice. Comenta: “Toquei a 3ª Valse-Caprice. Gabriel Fauré me escuta, atento, inquieto sem dúvida por ouvir pela primeira vez a jovem intérprete. Compreenderia ele desde o início o fervor que me animava? A alma-irmã que palpitava sob os dedos da jovem musicista? Sentiria ele que um ser, apreendendo de instinto o sentido secreto de sua música, dispunha-se a aprofundar sua obra e fazê-la ser conhecida e compreendida? Ao acabar a execução, ele parecia de tal maneira contente que  me senti recompensada e feliz”.

Em 1907, Marguerite Long estreia a Ballade de Fauré para piano e orquestra – versão da original para piano, op. 19 -, que será a obra a encerrar a bela carreira de Mme Long aos 3 de Fevereiro de 1959. Marguerite Long traça em seu livro uma síntese biográfica tardia de Fauré, de interesse para os estudiosos, certamente tendo colhido informações ao longo do convívio musical com o compositor. Relevantes os seus testemunhos sobre o círculo de amizades de Fauré. Convidada pelo músico, torna-se professora do Conservatório Nacional. Sob outro aspecto, não se furta de narrar os esforços acadêmicos, apesar de várias promessas, para que não fosse nomeada professora titular do Conservatório. Muitos anos se passaram para que enfim obtivesse o cargo. Houve desavenças com Gabriel Fauré dirimidas nos estertores da existência do compositor.

“Au piano avec Gabriel Fauré” tem capítulos preciosos nos quais a autora se debruça sobre a obra do mestre, a orientar a interpretação. Pormenoriza-se em algumas peças, exemplificando. Técnica, estilo, interpretação, memória e outros quesitos também são abordados.
Clique para ouvir o 6º Nocturne de Gabriel Fauré op.63 na interpretação de Marguerite Long:

https://www.youtube.com/watch?v=_PVNtMQ5THY

Insiro o 4º andamento da gravação histórica do Quarteto nº 2 em sol menor op. 45 de Gabriel Fauré. Os outros três instrumentistas foram luminares no período: Jacques Thibaud (violino), Maurice Vieux (viola) e Pierre Fournier (violoncelo). A gravação é plena de uma intensidade emotiva singular. Marguerite Long encerra seu comentário no libreto que acompanha o LP, lançado inicialmente em 78 rotações: “Uma palavra ainda sobre o Quarteto em sol menor. Foi ele gravado no dia 10 de Junho de 1940. Pela manhã, os alemães invadiram a Holanda. Partimos para o estúdio angustiados. Sentia a plena aflição de Thibaud: seu filho Roger combatia na linha de frente. Durante a gravação nossa emoção estava no limite e creio que essa gravação oferece uma imagem fiel. Na manhã seguinte Roger Thibaud morria heroicamente”.

Clique para ouvir o quarto andamento do Quarteto em sol menor op. 45Allegro molto,  de Gabriel Fauré

https://www.youtube.com/watch?v=B9X7ms040Tk

“Au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) encerra o tríptico consagrado aos três maiores compositores franceses desde meados do século XIX, que se juntam ao extraordinário Camile Saint-Saëns, músico que Marguerite Long conheceu bem, interpretando suas obras, mas que não teve uma relação tão próxima como a estabelecida com Fauré, Debussy e Ravel. Tem-se, nessa homenagem a Ravel, a imensa colaboração do Professor Laumonier, que, admirador confesso do compositor, após a morte da pianista e sabedor de seu grande interesse em completar o tríplice tributo, recolheu os textos já escritos por Mme Long e terminou o livro, não sem a colaboração de músicos e aficionados pelo compositor e pela intérprete. O livro tem interesse. Há vários episódios pormenorizados e conhecidos, mas considere-se a apreciação das principais obras para piano do compositor a servir de orientação aos intérpretes.

Ao escrever “Le Piano” (Paris, Salabert, 1959), Marguerite Long lega aos estudantes, professores e pianistas uma obra de síntese. Conhecedora de basicamente todos os métodos relativos à técnica pianística, a autora não apenas apresenta exercícios novos, como realiza uma súmula de procedimentos de tantos que se dedicaram ao mister:  Charles-Louis Hanon, Louis Benoit, Beringer e outros mais. Nesse “resumo”, em poucas páginas, métodos precedentes, alguns caudalosos, são reduzidos a formulações práticas. No longo e substancioso prefácio, escreve: “Essas páginas destinam-se em princípio aos pianistas já com certo desenvolvimento ou mesmo àqueles que buscam a alta virtuosidade. Que estes não se sintam indignos de seus talentos diante dos conselhos por vezes elementares que se seguem”. Uma outra frase relevante: “O estudo de piano necessita longos esforços. Todavia, esses não consistem em lutar contra a natureza. Uma mão normal é feita para tocar piano e todo pianista que não compartilha dessa convicção é indigno de sua arte”. Tem-se pois uma “enciclopédia” de exercícios a facilitar o aprendizado, bem mais prático do que o realizado por Alfred Cortot, “Principes Rationelles de la Técnique Pianistique”, método de grande mérito, mas complexo. Marguerite Long perpassa em “Le Piano” parte essencial da técnica pianística tradicional.

Relembrar os grandes mestres do passado é imperativo. Foram eles que legaram aos pósteros as diretrizes da arte do piano. Cultuá-los enriquece nosso conhecimento musical. Saber as origens.

In this post I comment on books written by the outstanding French pianist Marguerite Long. Later in life, after her working and personal association with three of the great French composers of all times, she wrote “At the piano with Debussy”, “At the piano with Fauré” and “At the piano with Ravel”, books of reminiscences with musical examples to discuss the interpretation of their works. She also wrote “Le Piano”, an exercise book with a synthesis of techniques sampled from many sources, along with new exercises by the author herself, a master of the French style piano playing.

 

 

Permanecerá na história

A vida é muito curta para ser pequena.
É para os outros,
pelo esforço contínuo incansável que podemos engrandecê-la.
Disraeli

Nesse trágico período, confinado com minha mulher Regina desde meados de Março, fiquei a pensar se temas culturais devem continuar seu fluxo. Tão desprestigiada tem sido a cultura erudita que nela fixar-se não poderia soar elitismo, mormente escrevendo “protegido” do mal que aflige a humanidade? A quase absoluta atenção da mídia para com o COVID-19 e o espaço restante por ela reservado aos despropósitos das correntes políticas antagônicas – prioritariamente a tomar partido – fazem-me crer que os cerca de 5.000 acessos semanais aos meus escritos – migalhas frente a blogs de entretenimento de toda espécie – encorajam-me a prosseguir.

Tendo abordado uma série de grandes pianistas do passado, após recepção entusiasta por parte de leitores prosseguirei a fazê-lo. Essas excelsas figuras continuarão a desfilar neste espaço como um bálsamo para tantos confinados como nós.

Fixar-me-ei em Marguerite Long, pianista e professora francesa, hoje tratada como lendária por legião de intérpretes e outros músicos. Quando esteve em São Paulo, no segundo lustro da década de 1950, tocou, sob a regência do notável pianista e maestro João de Souza Lima (1898-1982), o Concerto para piano e orquestra  em sol maior de Ravel. No dizer do maestro em seu livro “Moto Perpétuo – a visão poética da vida através da música” (São Paulo, Ibrasa, 1982), “naquela noitada a grande artista executou de maneira incomparável o ‘Concerto em sol maior’ de Ravel, que aliás lhe é dedicado”. Mme Long ofereceu na oportunidade curso sobre técnica e interpretação pianística, tendo eu participado. Após a obtenção de prêmio no 1º Concurso Nacional da Bahia, em 1958, recebi bolsa do governo francês e, tão logo ciente da bolsa, meu saudoso Prof. José Kliass entrou em contato com Souza Lima, mercê de seu amplo trânsito com a pianista francesa. O maestro Souza Lima, ex-aluno de Mme Long, comenta no livro citado: “… José Eduardo Martins, para o qual levei o convite para desfrutar de uma bolsa de estudos na Europa, vindo da grande Marguerite Long e que faz uma arte séria, digna e autêntica”.  Em Paris, foram inúmeras as aulas em sua morada na Avenue de la Grande Armée, nº 16, e outras tantas apresentações nos cursos públicos, às terças-feiras, na Académie Marguerite Long.

Da legião enorme de pianistas que atravessaram basicamente dois séculos, número restrito de excelsos pianistas permaneceram, sobretudo após o invento da gravação no início do século XX. O ilustre compositor e saudoso amigo Francisco Mignone (1897-1986) já observava que “há algo de interessante no concertista; quando ele desaparece, automaticamente desaparece o trabalho que ele fez neste efêmero período de tempo. O concertista muito raramente é lembrado, ao passo que o compositor é diferente na medida em que ele deixa uma obra. É um patrimônio eterno que ele deixa para a Pátria” (São Paulo, Revista Interview, Maio, 1982). Razões tem Mignone e o YouTube, como exemplo, traz a evidência de diferenças claras de acessos aos luminares de antanho se comparados com alguns intérpretes bem mediáticos, estes, por vezes, com quantidade de acessos próxima aos da música pop.

Dos pianistas que são lembrados na história da interpretação, alguns desenvolveram atividades afins, como composição, edições comentadas, livros de conteúdo musical ou autobiográfico. Ferrucio Busoni, Arthur Schnabel, Arthur Rubinstein, Alfred Cortot, Georgy Cziffra, Andór Foldes e outros mais são exemplos.

O caso Marguerite Long é singular. Como pianista, seu nome já estaria entre os notáveis intérpretes franceses do século XX, muitos deles eméritos professores.

Clique para ouvir a Arabesque nº 1 de Debussy na interpretação de Marguerite Long. Gravação de 1930:

https://www.youtube.com/watch?v=VzhaPbVlZGQ

 

A singularidade de Marguerite Long vem dos contatos intensos com os maiores compositores franceses do último século e meio, Saint-Saens, Gabriel Fauré, Claude Debussy e Maurice Ravel, mormente com os três últimos. Ter privado em alto nível da amizade desses luminares da música e ter sido dedicatária do 4º Impromptu de Fauré, do Concerto em sol maior de Ravel — apresentou-o em primeira audição mundial aos 14 de Janeiro de 1932 sob a regência do autor —, de Études de Roger Ducasse -, de Navarra, do compositor espanhol Isaac Albéniz, colocam-na em posição especial no panteão dos grandes intérpretes. Em primeira audição, entre outras obras de Debussy que, em carta a seu editor Jacques Durand, escrevia “…Madame Long qui joue si bien du piano” (1917), apresentaria os Études pour les cinc doigts e pour les arpèges composés, 1º e 11º, respectivamente. Quanto à Fantaisie para piano e orquestra, esta foi apresentada pela pianista 18 dias após a première oferecida por Alfred Cortot em 1919, pouco mais de um ano após a morte do compositor. Em 1917, no Chalet Habas em ST-Jean-de-Luz, durante dois meses teve aconselhamentos esparsos de Debussy relacionados aos seus 12 Études e aos dois cadernos de Images. Estrearia Le Tombeau de Couperin para piano solo de Ravel, coletânea constituída por seis peças, sendo a última, Toccata, dedicada ao marido de Marguerite Long de Marliave, capitão Joseph de Marliave, abatido na batalha de Spincourt em 1914, início da 1ª Grande Guerra. Faria a estreia da Ballade de Fauré em 1907 — versão para piano e orquestra – com D.H. Inghelbrecht na regência. Tive o privilégio de assistir à última apresentação pública da Marguerite Long, que se deu aos 3 de Fevereiro de 1959, tendo como regente o próprio Inghelbrecht. Ao findar a execução da Ballade de Fauré, milhares de pétalas de rosas foram jogadas no palco vindas das galerias do Théatre des Champs-Elysées.

Clique para ouvir o Impromptu nº 2 op. 31 de Fauré na interpretação de Marguerite Long:

https://www.youtube.com/watch?v=bz7TREqNiFs

Neste espaço, há anos comento a respeito da tradição. É ela o fio condutor que norteia diretrizes interpretativas através dos tempos. Ter estudado com Marguerite Long algumas obras essenciais de seu acervo pianístico, com anotações da mestra em minhas partituras, serviu-me de guia seguro do repertório francês a que se dedicou, mercê de ter ela presenciado o day after da criação dos três nomes maiores da composição da França no período, assim como de outros compositores do período. Seria lógico supor que, mesmo já idosa, o que teria certamente alterado determinadas recordações, a estrutura básica dessa apreensão das 0bras de Fauré, Debussy e Ravel manteve-se eficaz.

No próximo post abordarei os três livros de Marguerite Long consagrados à tríade de compositores, assim como seu método “Le Piano”.

In this post I write about Marguerite Long, French pianist and teacher, a legend in her own time. She was one of the most important pianists in France in the first half of the 20th century, but her rather unique position comes from intense contacts with gigantic French composers like Saint-Saens, Fauré, Debussy and Ravel. Fauré, Ravel, Albéniz and Ducasse dedicated works to her. Thanks to a scholarship granted by the French government, I have been lucky to study during three years with her, a sure guide to learn and respect the French classical piano tradition.