Navegando Posts publicados em março, 2020

Um diário de Sylvain Tesson


Um diário íntimo é uma operação de luta contra a desordem.

Ganha-se ao se confessar pessimista,
É uma maneira ser profético.

Sylvain Tesson

Foram 16 livros de Sylvain Tesson resenhados ou comentados neste espaço, desde 2011. Na grande maioria, admirava a intrepidez de Sylvain Tesson, suas andanças e travessias majoritariamente solitárias, assim como sua visão personalíssima dos locais e seus costumes, levando-o a deduções tantas vezes de muito interesse.

Após o acidente sofrido aos 20 de Agosto de 2014, ao cair de uma altura de dez metros na tentativa de “escalar” uma casa em Chamonix, sofrendo trauma craniano e várias fraturas – acidente que o levaria ao coma induzido durante oito dias -, marcas inalienáveis permaneceram em sua face.

Sylvain Tesson já granjeara ampla repercussão antes da queda. Tive o prazer, por mero acaso, de estar presente no lançamento de um de seus livros em livraria parisiense (S’abandonner à vivre. Paris, Gallimard, 2014), sete meses antes do acidente.

Restabelecendo-se, a notoriedade foi acrescida. Entrevistas, palestras e mais livros surgiram. Seria possível entender que a etapa das grandes e perigosas aventuras, quase sempre só pela imensidão deste planeta, propiciou ao aventureiro hiper inteligente, a descrição dos locais percorridos com o olhar do observador atento, para quem o mínimo pormenor interessava. O solilóquio teria possibilitado o afloramento da narrativa criadora. Confessaria que foi longo o período de grandes riscos. Em L’Axe du Loup (blog 28/05/2011), Éloge de l’Énergie Vagabond (blog 16/03/2013) e Dans de Forêts de Sibérie (blog 01/03/2014), Tesson revelar-se-ia por inteiro, mormente nesse último livro. O isolamento em cabana às margens do lago Baikal em pleno inverno fez aflorar o de profundis em tantas passagens. Após o acidente houve transformações. Em Berezina – en side-car avec Napoléon (blog 10/06/2017), vemo-lo em extraordinária aventura não solitária, mais como um narrador que presencialmente, durante o longo percurso, conta a trágica retirada de Napoleão de Moscou em direção a Paris. Em outra aventura, atravessou transversalmente a França do sudeste ao noroeste, por vezes acompanhado por amigos. Se sob um aspecto essa narrativa tem interesse em Sur les Chemins Noirs (blog 03/02/2018), sob outro há a insistência na revisita ao trauma sofrido. O lançamento de Notre-Dame de Paris – Ô Reine de Douleur (blog 06/07/2019) atenderia a nítido interesse editorial, logo após o lamentável incêndio. Mas há uma revelação: Sylvain Tesson se converte, ele que incontáveis vezes subiu até as torres da catedral, certamente seu local emblemático. Calaram-lhe fundo as chamas destruidoras. Un été avec Homère (07/09/2019), após estadia no Mar Egeu, é reverência in loco, àquele que Tesson considera como o maior poeta da História.

Une très légère oscillation (France, Équateurs, 2017) é escrito em forma de diário, que se estende de Janeiro 2014 à primavera de 2017. Diário arguto que perpassa as observações do autor que, nesse período, escreve sobre política francesa, Estado Islâmico, incontáveis viagens pela Europa e Extremo Oriente, percursos “mais responsáveis”, quase todos por via aérea, naturalmente. O Diário tem a riqueza de não ser monotemático. O multidirecionamento do pensar leva Tesson, por vezes, a se fixar em aforismos, muitos deles tendentes à reflexão.

Observação sarcástica em um de seus apontamentos: “Devido ao emburrecimento ao qual é levado aquele que mergulha nos programas televisivos, é saudável saber que a invenção da telinha veio após as conquistas da agulha de costura ou da imprensa, cujas respectivas descobertas não teriam sido possíveis se a televisão tivesse preexistido”. Não poupa a internet: “Os propagandistas da internet me deixam atordoado. Que talento! Eles chamam de ‘novas tecnologias desmaterializadas’ esses aparelhos que nos deixam encoleirados, nos domesticam, nos hipnotizam”. A crítica à tecnologia levada ao excesso, estende-se à observação que tira da legião de turistas a fotografar a Torre Eiffel: “Não mais haverá narrativas de viagem, ninguém recebe o espetáculo diretamente. O que farão com todas essas imagens que roubam a possibilidade de uma emoção orgânica? Pode-se lá meditar acionando as teclas dessas engenhocas? Que mal o mundo fez para que seja fotografado dessa maneira? Só as crianças, os velhos e os pássaros olham com seus próprios olhos. São os únicos que guardarão recordações”. Estou a me lembrar de minha primeira visita ao Louvre no final de 1958. Determinado momento estava em frente à Monalisa. Fiquei a olhar meio decepcionado, mercê de tamanha divulgação que a obra de Leonardo da Vinci granjeou e granjeia. De repente assustei-me com um barulho de passadas rápidas e barulhentas. Eram turistas japoneses que ficaram em frente ao quadro, tiraram fotos em segundos e retiraram-se como haviam chegado, ruidosamente. Tesson ainda afirmaria: “O que é o progresso tecnológico? É o progresso, em nós, da certeza de que temos necessidade crucial de coisas inúteis”. Apesar de posições por vezes radicais, aos 47 anos Tesson, apreenderia a realidade, a entender que a essência da absorção das tecnologias, verdadeira hipnose em processo extremamente rápido, faz com que o surgimento de outras, mais avançadas, induza à continuação do estado hipnótico. Nada a fazer.

Ao comentar diferenças entre a cinematografia americana e russa, observa: “O filme americano implanta suas proezas técnicas. O filme russo substitui a falta de meios pela profundeza do tema. Para o primeiro, o espetáculo, para o segundo, o propósito. Um se prende aos efeitos especiais, o outro tece reflexões sobre as causas (da dor). A intensidade de uma obra não reside no fato do acúmulo da alta definição: ainda precisa haver algo a ser alcançado nesse mister. Na literatura, a preciosidade de uma caneta tinteiro não resultará em uma obra-prima. No cinema, nenhum drone elevará o valor de um filme”. Nessa temática, em outro apontamento do diário, Tesson observa: “As árvores são ‘pessoas’, como dizia Derzu Uzala, o pequeno caçador da Sibéria Oriental tornado eterno herói pelo escritor Vladimir Arseniev”.

No Diário, alguns aforismos têm interesse:

O único inconveniente do desaparecimento da humanidade é que não haverá ninguém para se alegrar pelo acontecimento.

Vantagem do alpinista: no cume, não temos vergonha de dar meia-volta.

Poluição: hálito das massas.

“Revolução Cultural” deveria ser um pleonasmo.

Outono, o perigo amarelo.

Internet: arma de fogo nas mãos de uma criança.

Paradoxo: não sou capaz de me autocriticar.

Suíça: teria medo de viver em um país com prefixo do suicídio.

Saara: viver num país onde há todas as razões para se enforcar e nenhuma árvore para fazê-lo.

Álcool: Depois da crise epilética, fui proibido de beber. Na realidade não queria me embebedar, mas regar a alma, essa planta tão vivaz.

O Diário de Sylvain Tesson, iniciado meses antes do acidente, estendendo-se de Janeiro de 2014 à primavera de 2017, tem forte dose de ironia arguta, de um pofiguismo, palavra russa tão utilizada pelo autor em obras anteriores e não no presente livro, sem tradução para o francês, tampouco para português. Segundo ele, “designa uma atitude face ao mundo absurdo e à imprevisibilidade dos fatos”. Quase todos os temas recorrentes nesse debruçamento sobre si mesmo, após atenta observação, reiteram seu discurso cáustico tantas vezes, outras tantas de humor singular. Deu-me prazer a leitura.

Um amigo me enviou, de Paris, La Panthère des neiges, livro de Sylvain Tesson publicado em Outubro de 2019 pela Gallimard. Postado àquela altura, não chegou às minhas mãos. Sobre livros e CD não recebidos, mercê de nossos correios, comentarei no próximo blog. Uma lástima.

Comments on the book “Une Très Légère Oscillation”, written from 2014 to 2017 by the adventurer, geographer and writer Sylvain Tesson. Written as a journal or diary entries, Tesson muses over a variety of issues, such as  French politics, the Islamic State, consumerism, technological society, travel stories. A varied menu presented with Tesson’s usual originality, sharpness, irony, and also humor, particularly in the aphorisms section. It gave me pleasure to read it.

 

 

A austeridade a serviço da interpretação excelsa

 

Creio que os mais árduos estudos, o talento mais autêntico
e a aplicação mais séria não bastam,
se a vida inteira não for orientada na direção da meditação.
Edwin Fischer

Foram dois episódios que corroboraram a atenção maior a esse grande pianista, mestre e regente. Estudava em Paris e, ao completar 21 anos, amigos que trabalhavam no escritório de uma grande empresa de matérias-primas para a indústria da perfumaria, da qual meu pai era representante em São Paulo, o que fez com que eu morasse durante meu estágio no andar superior, com direito a um piano e uma sala de banho, ofereceram-me um LP com a gravação de Edwin Fischer do Concerto nº 5 (Imperador) para piano e orquestra de Beethoven. Almoçava com os funcionários da empresa na cantina do escritório. Momentos a não serem esquecidos. O LP, ouvido inúmeras vezes na interpretação extraordinária de Edwin Fischer, estimulou-me a estudar o Concerto, o que o fiz sob a orientação do ilustre pianista e professor Jean Doyen.

Em uma segunda oportunidade, o ilustre pianista português Sequeira Costa, com quem também estudei na capital francesa todos os Estudos de Chopin, louvava constantemente um de seus mestres, Edwin Fischer. Quando no Porto para recital violoncelo-piano com Madalena Sá e Costa (07/01/1986), sua irmã, a notável pianista e professora Helena Sá e Costa, falou-me com ênfase das qualidades inalienáveis de seu mestre Edwin Fischer.

Nascido na Suíça, Edwin Fischer foi um dos mais destacados pianistas de seu tempo, numa linha diferenciada dos grandes pianistas românticos. Cultor de J.S.Bach, afirmou sobre a obra do compositor: “É o logos, a última destinação de todo ser que se incarna em suas composições. Como um homem pode criar uma tal totalidade, alguma coisa tão definitiva e também tão atemporal?”

Edwin Fischer foi um árduo crítico daquilo que se chamou “estilo de época”, mormente em relação à interpretação das obras originalmente escritas para cravo, mas executadas ao piano. Entrevistado por Bernard Gavoty (Edwin Fischer – Les Grands Interprètes. Genève-Monaco, René Kister, 1954), Fischer expõe o que pensa: “Não a um Silbermann (cravos do século XVIII) em detrimento daquilo que vos oferece um Steinway (piano de concerto); não exija de uma pluma, que arranha um fino fio de aço, a sonoridade generosa e redonda de um martelo feltrado interrogando docemente uma corda enrolada por cobre, com dois metros de extensão e esticada sobre uma tábua harmônica longa como uma mesa de cozinha”. Como regente corroborou a divulgação das obras de J.S.Bach.

Clique para ouvir a Fantasia cromática e fuga de J.S.Bach, uma das mais emblemáticas criações do Kantor para teclado. Edwin Fischer realiza uma extraordinária interpretação ao piano, austera, mas não desprovida de grande intensidade emotiva. O tratamento amplo da dinâmica na fantasia e o rigor no tratamento e na condução das vozes na fuga atestam a presença do Grande Mestre do teclado.

https://www.youtube.com/watch?v=KhkYxELjVq0

Edwin Fischer também se tornaria intérprete referencial das obras de Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann e Brahms. Ao longo dos 13 anos de blogs ininterruptos, quando abordo aspectos interpretativos, saliento sempre que são as execuções desses grandes mestres do passado que, imbuídos da tradição, repassam-na aos pósteros. Continuo crítico às interpretações plenas de artifícios nessa civilização do espetáculo que privilegia a cena, o gestual, a expressão facial em “êxtase” e repleta de contorções. Câmeras acompanham os mínimos movimentos. Não seriam esses elementos, por si só, fatores essenciais de um descuido daquela que deveria ser a primordial preocupação, a passagem fiel da mensagem?

Neste ano em que se comemoram os 250 anos de nascimento de Ludwig van Beethoven, transcrevo texto basilar de Edwin Fischer de como penetrar em seu universo sonoro: “Achar-me-ão talvez presunçoso, mas tenho a impressão que nos tornamos muito refinados, muito cultivados! Sabemos hoje de maneira precisa como Beethoven queria que se fizesse isso ou aquilo. Temos edições nas quais há três páginas de explicação para uma página de música. Somos capazes de distinguir o Beethoven que ouvia daquele já surdo… Tão sábios! Não obstante, os vulcões que o atormentaram no seu trabalho de fazer nascer, os sóis que o iluminaram, os gritos que despedaçaram seu coração – tudo isso não mais nos emociona. Todavia, é justamente nessa direção que é necessário buscar as fontes da interpretação. Esqueça o piano, esqueça o estilo, a educação, o saber e busque Beethoven! Transforme seu piano em órgão, em violino, em instrumento de sopro, em tímpano – mas, sobretudo, faça com que ele cante! Conduza à luz viva todo o mundo mergulhado no império das sombras! Deixe-se levar ao reino da imaginação, onde habita o espírito de Beethoven!”

Clique para ouvir a Sonata nº 8, op 13 de Beethoven (Patética):

https://www.youtube.com/watch?v=wSCUmAgp4Ms

Ouvindo-se as gravações de Edwin Fischer da maturidade ficaria transparente sua observação sobre esse estágio, respondendo a uma pergunta de Bernard Gavoty, que ouvira o pianista ao vivo como solista do Concerto nº 4 de Beethoven: “Mudamos com a idade! Se você me ouvisse na minha juventude – tempestuoso -, certamente teria dado risada! Um dia, Richard Strauss apontou meu erro, reprimindo-me pelo fato de não tocar sobriamente o começo desse Concerto e delicadamente observou: ‘Porque tanta empolgação? Deixe apenas seu cartão de visita…’ Compreendi desde então”.

Quanto a Mozart, Fischer tinha real prazer de tocar suas obras quando recebia amigos íntimos.

Seria contudo, de maneira maiúscula, a presença das criações de J.S. Bach não apenas em sua atividade pianística como também na de regente de mérito. Foi o primeiro a gravar a integral do Cravo Bem Temperado nos anos 1930 e até nossos dias seu trabalho tem-se mostrado modelo de absoluta apreensão dos 48 Prelúdios e fugas que compõem os dois livros da monumental obra.

Entre seus alunos, destacam-se: Thierry de Brunhoff, Daniel Barenboim, Paul Badura Skoda, Reine Gianoli, Évelyne Crochet e Alfred Brendel. Este último confessaria que foi Edwin Fischer quem mais o influenciou.

Bernard Gavoty, nesse convívio com Edwin Fischer, escreve suas conclusões: “Felicito-o por não ser um virtuose como os outros, quero dizer, um caixeiro viajante que faz a volta ao mundo com sua valise de amostras à mão. Felicito-o igualmente pela dedicação que concedeu à música de câmara, a esse repertorio sublime, diverso e inesgotável. Ao sucesso, você preferiu a glória de seus deuses eleitos; ao seu repouso, a alegria do público. Você é pródigo no meio de parcimoniosos; puro em uma época onde prepondera a habilidade; lírico em um tempo em que nos sentimos estéreis; grande em um século onde se vê pequenez… É bom, é bonito.”

De minha parte, sempre admirei esses mestres do passado que entenderam, guardando as inerentes individualidades, que a interpretação tem continuidade através da observância da tradição. Como metáfora, poderíamos entender as rupturas que se têm acentuado nessa civilização do espetáculo, como barragens a alterar o curso natural de um rio com consequências imprevisíveis. E estas já se mostram. Contudo, ainda há aqueles que preservam a tradição, caminho seguro para conhecermos a origem originária de um determinado período da história da composição e de seus criadores.

Nesses tempos terríveis do COVID-19, ouvir interpretações desses mestres, que mantinham uma relação distinta com a música, é um bálsamo para o espírito.

The Swiss-born pianist and conductor Edwin Fischer (1886-1960) is one of the most celebrated classical musicians of the 20th century, an outstanding interpreter of Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Shumann and Brahms. His complete recording of Bach’s The Well-Tempered Clavier is to date considered exemplary. Fischer’s concern has always been to show the brilliance of the composers he played rather than his own. As for me, I’ve always admired the austerity of the great masters of the past, respectful of tradition and the inner spirit of the music they were playing.

Conceitos de François Servenière que levam à reflexão

Na atividade de todo artista,
é preciso distinguir e mesmo radicalmente opor
o esforço que busca a obra
e a espontaneidade que a encontra.
Na atividade musical,
deparamo-nos com a espontaneidade
que acha e ignoramos os esforços que a preparam;
entre o trabalho e a execução,
o esforço e o sucesso, há um profundo abismo.
Mas a atividade criadora que supõe esforço e trabalho
se realiza justamente na sua eliminação.
Gisèle Brelet
(”L’interprétation créatrice”)

Das inúmeras mensagens de incentivo recebidas no transcorrer dos blogs destinados aos grandes intérpretes do passado, salientaria uma última, a do notável compositor francês François Servenière, que se aprofunda no post dedicado a Walter Gieseking. Escreve:

“Verdadeiramente, a interpretação de Clair de Lune é uma das melhores que ouvi até hoje… Ouvi logo após a gravação de Vladimir Ashkenazy… Esta me parece pálida… É sempre difícil para um compositor ouvir suas obras de uma maneira muito pessoal na concepção de um intérprete. Na realidade, o ego dos virtuoses célebres pode gerar absurdos agógicos históricos, aliás como você tem salientado através dos blogs, ou então, como se ouve muitas vezes, a personalidade do intérprete se sobrepõe de uma maneira muito pessoal à partitura e ao ponto de vista do compositor. Trata-se do famoso traduttore, traditore. Sobre outro aspecto, a técnica é de tal maneira importante na interpretação que a menor falha física e a plena segurança podem levar a uma total desconexão com a partitura e o espírito do criador”. Estive a pensar na lamentável gravação ao vivo do pianista chinês Lang Lang, um dos mais acessados no YouTube. Aclamado pelo planeta, nessa globalização de uma civilização do espetáculo voltada à destruição paulatina da tradição, Lang Lang gravou como extraprograma, após solar com orquestra, a célebre Marcha Turca de Mozart. Descaracteriza completamente o caráter da peça, foge de todos os princípios fundamentais do respeito à tradição e busca ultrapassar as marcas de Usain Bolt. Senhor de alta virtuosidade, aplica-a em seu limite máximo. À performance mediática somam-se as histriônicas expressões faciais de toda espécie, que são sua marca registrada. Ao final, o público urra de satisfação, algo impossível de ocorrer décadas atrás, o que comprova a nítida decadência cultural, que apenas se acentua. Constata-se que recordes têm de ser batidos e que venham acompanhados pelas micagens ou chamativas vestimentas, a entusiasmar plateias imensas que se acostumaram com o simulacro.

Prossegue Servenière: “Ouço ainda Walter Gieseking. Entendo a época de sua atuação como o ponto de vista de Debussy, como se, com a atual capacidade tecnológica, que reproduz por computador as partituras, fosse o próprio software do compositor a produzir a versão acústica de Gieseking. Incrível e desconcertante escuta, quando a cada momento, durante o desenrolar sonoro, não sentimos a matriz do intérprete, mas apenas a música…

Paradoxalmente, após essa espantosa e rara experiência, tenho lá minhas dúvidas sobre a declaração de Walter Gieseking mencionada em seu artigo: ‘Nunca realizo exercícios técnicos. Entendo-os quase como supérfluos. Após aprender arpejos, escalas e outras noções fundamentais da técnica do piano, o executante as sabe! Para que fatigá-lo e inutilmente aborrecer seus dedos? Creio que, quando as mãos aprendem a tocar com igual força, o que pode parecer pouco natural, mercê do fato de a força dos dedos não ser a mesma, e de os ouvidos habituaram-se a controlar a ação dessas extremidades, a técnica lá está, disponível em qualquer momento’.

Minha experiência leva a concluir que a arte do piano é uma disciplina equivalente àquela dos ginastas. O que resultaria de um ginasta que se recusasse a exercitar sua musculatura, seu corpo, sua força? Ele teria riscos consideráveis em sua vida… Creio que é necessário considerar a posição de Gieseking como aquela de um mestre que atingiu a maturidade de sua arte através do trabalho, para quem somente alguns exercícios de aquecimento bastariam para a manutenção de seu nível de excelência. Como é evidente e notório, mais fácil ao alpinista passar as cumeeiras pelas cristas do que levar seu corpo da base ao cume… Esforços incomparavelmente diferentes! Penso que a metáfora é bem explícita. O cume exige a permanência através da perfeição… Atenção com os acidentes de percurso, às ravinas, aos deslizamentos, aos saltos não calculados! Seria pois a reflexão de uma pessoa que está na cumeeira de sua arte e que esquece, nesses momentos de júbilo, todos os esforços que lhe foram necessários desde a infância para chegar ao cimo… Pode ser também que Gieseking tenha nascido com uma musculatura pianística natural. Pode isso acontecer? Não saberia responder. Conheci, em minha curta carreira de pianista, condiscípulos naturalmente muito dotados e suficientemente adaptados para esse instrumento e deles eu fazia parte… Mas o trabalho, estaria ele ausente? Você finaliza seu comentário a dizer: ‘Estou a me lembrar daquele pianista forte, com corpo de atleta de arremesso de peso, que dimensionava as sonoridades em seus limites extremos’. Isso explicaria sua facilidade em mensurar os esforços de uma maneira tão sensível, em se tratando do piano… Dotado de uma força física natural, o trabalho de Gieseking deve ter se concentrado no sequenciamento criterioso e infinito, na moderação de sua musculatura e de sua resposta nervosa. O domínio de uma arte é sempre um trabalho sobre o controle da resposta nervosa”.

É válida a posição de Servenière. Todavia, acredito estar implícita no conceito de Gieseking a manutenção da qualidade técnica a partir dos problemas pianísticos que se apresentam em cada partitura, resultando em inesgotável e extraordinário manancial. Após os anos de aprendizado através dos métodos de exercícios e estudos específicos para piano, “os acidentes de percurso, as ravinas, os deslizamentos e os saltos calculados” de que nos fala Servenière corresponderiam a esse manancial encontrado nas obras escritas para serem executadas em público, enquanto que os exercícios e estudos didáticos, escritos unicamente para aperfeiçoamento, corresponderiam metaforicamente aos conhecimentos básicos assimilados por um alpinista. Após ter praticado na infância e adolescência uma infinidade de incríveis métodos de exercícios e estudos específicos da técnica pianística, jamais a eles regressei, extraindo de cada obra a ser interpretada a riqueza técnico-pianística essencial. Se Alfred Cortot (“Principes Rationnelles de la téchnique du piano”) e Marguerite Long (“Le Piano”) escreveram dois tratados fundamentais da técnica pianística, entenda-se, servem esses para fase essencial de aprendizado, diferentemente dos 51 Exercícios de Brahms, extraídos certamente de problemas que o grande mestre alemão encontrou em suas próprias obras. A acompanhar o raciocínio, Alfred Cortot teria, através das monumentais edições das obras de Chopin, Schumann e Liszt, encontrado as fórmulas técnico-pianísticas para cada problema específico relacionado à resolução de determinadas passagens mais complexas.

Servenière faz comparação entre gravações de criação icônica de Ravel, apresentada no post anterior na interpretação de Walter Gieseking: “Quanto à gravação de Alborada del gracioso, prefiro a interpretação de Dominique Merlet, que também gravou a integral para piano de Ravel e que teria compreendido toda a verve hispânica contida nessa excepcional criação”. Realmente uma gravação hors série.

Clique para ouvir a execução de Dominique Merlet:

https://www.youtube.com/watch?v=G2xLEJ83-Io

O debate de ideias é sempre salutar. Mais e mais o mundo ocidental recebe jovens pianistas vindos da China. Já mencionei esse fato reiteradas vezes. É incrível a destreza técnico-pianística, sempre com objetivo de alcançar recordes inimagináveis muitas décadas atrás. Eles têm conseguido e certamente alcançarão outros. Se no passado pianistas como Vladimir Horowitz ou Georgy Czifra, entre poucos, nasceram com aptidões técnicas excepcionais, através de processo de ensino que pouco conhecemos os chineses estão conseguindo resultados surpreendentes que, no entanto, deixam incontáveis vezes a essência essencial da música ao largo. Civilização do espetáculo.

The previous post about Walter Gieseking has received much interesting feedback from readers. Among the messages, I transcribe the one by the French composer François Servenière, with stimulating comments on some musical aspects addressed in my post, followed by my own views on the subject.