Suas lembranças tardias de três compositores fundamentais
C’est la musique souveraine
qui nous fait entrevoir les vrais dimensions de l’homme.
Georges Duhamel (1884-1966)
Após comentários resumidos no blog anterior sobre a notável pianista Marguerite Long ao longo de sua carreira de intérprete, no que concerne a colaboração da artista não apenas como intérprete essencial dos maiores compositores do período como na divulgação de suas obras, abordarei sua contribuição literária.
Tardiamente Marguerite Long legaria suas recordações do convívio musical e amistoso com três dos principais compositores franceses desde a segunda metade do século XIX: Gabriel Fauré (1845-1924), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). Seria possível entender que, após tantas décadas passadas, a memória privilegiada de Mme Long pudesse, por vezes, fantasiar alguns episódios. Um eminente musicólogo francês apontou-me determinadas alterações na narrativa da pianista que, sem falsear a essência essencial do pensamento, teriam sido inseridas com o propósito de evitar a aridez do texto. Assim sendo, a escrita tem sempre um caráter agradável, até em segmentos que denotariam a presença de situações conflitantes. Poder-se-ia acrescentar que essas “alterações” ficariam mais evidentes nos diálogos travados entre a pianista e interlocutores. Sob aspas, muitas décadas após, o instante do acontecido pode ter sido “romanceado”, sem contudo modificar o essencial.
Primeiramente debruça-se sobre Claude Debussy (“Au Piano avec Claude Debussy”, Paris, René Julliard, 1960). Desfilam em suas páginas, quantidade de testemunhos de músicos relevantes, sendo que se pormenoriza nos encontros com Debussy no segundo semestre de 1917, poucos meses antes da morte do compositor, aos 25 de Março de 1918. Debussy se encontrava em Saint-Jean-de-Luz, no “chalet Habas”, já em pleno declínio físico. Para a cidade se locomoveram três pianistas célebres: Ricardo Viñez, Joaquin Nin e Marguerite Long. Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand em Setembro: “… entretanto, tenho a chance de estar num lugar distante onde não os ouço”. O eminente François Lesure comenta: “Lendo-se ‘Au piano avec Debussy’, de Marguerite Long, tem-se a impressão de que, durante sua estadia no chalet Habas, Debussy se ocupou prioritariamente em trabalhar com ela. Nas 169 páginas de seu livro insere tantos outros testemunhos entre as raras sessões que o músico lhe dispensou” (Claude Debussy. France, Klincksieck, 1994). Seria possível entender que décadas acumuladas tenham superdimensionado esses encontros, que na realidade existiram, mas não na dimensão apregoada, e dos quais Mme Long extrairia certamente dados preciosos que sedimentaram suas interpretações das criações de Debussy. Acredito que a contribuição maior de “Au piano avec Claude Debussy” decorra das observações interpretativas da autora sobre obras fundamentais do compositor.
Anteriormente a Debussy, Marguerite Long entrara em contato com a criação de Gabriel Fauré sem ao menos tocar até 1902 qualquer de suas composições. Revelado, Fauré e a admiração pela sua obra permanecerão por toda a existência. Como relata em seu livro, foi um dos mestres franceses do período, Antonin Marmontel, que a fez entrar em contato com as criações de Fauré e, no primeiro encontro com o compositor, interpreta a 3ª Valse-Caprice. Comenta: “Toquei a 3ª Valse-Caprice. Gabriel Fauré me escuta, atento, inquieto sem dúvida por ouvir pela primeira vez a jovem intérprete. Compreenderia ele desde o início o fervor que me animava? A alma-irmã que palpitava sob os dedos da jovem musicista? Sentiria ele que um ser, apreendendo de instinto o sentido secreto de sua música, dispunha-se a aprofundar sua obra e fazê-la ser conhecida e compreendida? Ao acabar a execução, ele parecia de tal maneira contente que me senti recompensada e feliz”.
Em 1907, Marguerite Long estreia a Ballade de Fauré para piano e orquestra – versão da original para piano, op. 19 -, que será a obra a encerrar a bela carreira de Mme Long aos 3 de Fevereiro de 1959. Marguerite Long traça em seu livro uma síntese biográfica tardia de Fauré, de interesse para os estudiosos, certamente tendo colhido informações ao longo do convívio musical com o compositor. Relevantes os seus testemunhos sobre o círculo de amizades de Fauré. Convidada pelo músico, torna-se professora do Conservatório Nacional. Sob outro aspecto, não se furta de narrar os esforços acadêmicos, apesar de várias promessas, para que não fosse nomeada professora titular do Conservatório. Muitos anos se passaram para que enfim obtivesse o cargo. Houve desavenças com Gabriel Fauré dirimidas nos estertores da existência do compositor.
“Au piano avec Gabriel Fauré” tem capítulos preciosos nos quais a autora se debruça sobre a obra do mestre, a orientar a interpretação. Pormenoriza-se em algumas peças, exemplificando. Técnica, estilo, interpretação, memória e outros quesitos também são abordados.
Clique para ouvir o 6º Nocturne de Gabriel Fauré op.63 na interpretação de Marguerite Long:
https://www.youtube.com/watch?v=_PVNtMQ5THY
Insiro o 4º andamento da gravação histórica do Quarteto nº 2 em sol menor op. 45 de Gabriel Fauré. Os outros três instrumentistas foram luminares no período: Jacques Thibaud (violino), Maurice Vieux (viola) e Pierre Fournier (violoncelo). A gravação é plena de uma intensidade emotiva singular. Marguerite Long encerra seu comentário no libreto que acompanha o LP, lançado inicialmente em 78 rotações: “Uma palavra ainda sobre o Quarteto em sol menor. Foi ele gravado no dia 10 de Junho de 1940. Pela manhã, os alemães invadiram a Holanda. Partimos para o estúdio angustiados. Sentia a plena aflição de Thibaud: seu filho Roger combatia na linha de frente. Durante a gravação nossa emoção estava no limite e creio que essa gravação oferece uma imagem fiel. Na manhã seguinte Roger Thibaud morria heroicamente”.
Clique para ouvir o quarto andamento do Quarteto em sol menor op. 45, Allegro molto, de Gabriel Fauré
https://www.youtube.com/watch?v=B9X7ms040Tk
“Au piano avec Maurice Ravel” (Paris, Julliard, 1971) encerra o tríptico consagrado aos três maiores compositores franceses desde meados do século XIX, que se juntam ao extraordinário Camile Saint-Saëns, músico que Marguerite Long conheceu bem, interpretando suas obras, mas que não teve uma relação tão próxima como a estabelecida com Fauré, Debussy e Ravel. Tem-se, nessa homenagem a Ravel, a imensa colaboração do Professor Laumonier, que, admirador confesso do compositor, após a morte da pianista e sabedor de seu grande interesse em completar o tríplice tributo, recolheu os textos já escritos por Mme Long e terminou o livro, não sem a colaboração de músicos e aficionados pelo compositor e pela intérprete. O livro tem interesse. Há vários episódios pormenorizados e conhecidos, mas considere-se a apreciação das principais obras para piano do compositor a servir de orientação aos intérpretes.
Ao escrever “Le Piano” (Paris, Salabert, 1959), Marguerite Long lega aos estudantes, professores e pianistas uma obra de síntese. Conhecedora de basicamente todos os métodos relativos à técnica pianística, a autora não apenas apresenta exercícios novos, como realiza uma súmula de procedimentos de tantos que se dedicaram ao mister: Charles-Louis Hanon, Louis Benoit, Beringer e outros mais. Nesse “resumo”, em poucas páginas, métodos precedentes, alguns caudalosos, são reduzidos a formulações práticas. No longo e substancioso prefácio, escreve: “Essas páginas destinam-se em princípio aos pianistas já com certo desenvolvimento ou mesmo àqueles que buscam a alta virtuosidade. Que estes não se sintam indignos de seus talentos diante dos conselhos por vezes elementares que se seguem”. Uma outra frase relevante: “O estudo de piano necessita longos esforços. Todavia, esses não consistem em lutar contra a natureza. Uma mão normal é feita para tocar piano e todo pianista que não compartilha dessa convicção é indigno de sua arte”. Tem-se pois uma “enciclopédia” de exercícios a facilitar o aprendizado, bem mais prático do que o realizado por Alfred Cortot, “Principes Rationelles de la Técnique Pianistique”, método de grande mérito, mas complexo. Marguerite Long perpassa em “Le Piano” parte essencial da técnica pianística tradicional.
Relembrar os grandes mestres do passado é imperativo. Foram eles que legaram aos pósteros as diretrizes da arte do piano. Cultuá-los enriquece nosso conhecimento musical. Saber as origens.
In this post I comment on books written by the outstanding French pianist Marguerite Long. Later in life, after her working and personal association with three of the great French composers of all times, she wrote “At the piano with Debussy”, “At the piano with Fauré” and “At the piano with Ravel”, books of reminiscences with musical examples to discuss the interpretation of their works. She also wrote “Le Piano”, an exercise book with a synthesis of techniques sampled from many sources, along with new exercises by the author herself, a master of the French style piano playing.