Competência e apego às raízes da Bahia

O compositor se vê forçado a praticar,
em relação ao intérprete, uma política de prudência,
de observar seus reflexos,
de distinguir em seu comportamento
tudo que pode lhe servir e também de rejeitar.
Breve, ele deverá fazer um estudo psicológico
do intérprete, se quiser recuperar
sobre sua criação um certo poder perdido.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)

Com surpresa recebi notícia de amigo a dizer que no YouTube havia três obras para piano do compositor da Bahia, Paulo Costa Lima, que gravei em 1996 em Sófia, na Bulgária. Ao acessar o aplicativo, comprovei e apreendi que os três Estudos para piano foram inseridos na Itália pelo grupo Wellesz Theatre (The Wellesz Company) nesses últimos anos. A organização tem divulgado a atividade composicional contemporânea mundial com regularidade e esmero.

Foi em 1985 que idealizei projeto a visar aos caminhos da composição para piano, sem participação eletrônica, estendendo-o até 2015, ou seja, trinta anos, no desiderato de entender a criação para o instrumento nas fronteiras do século. Convidei compositores de vários países e muitos aceitaram o desafio. Já havia gravado a integral dos Estudos de Alexandre Scriabine e de Claude Debussy, assim como Estudos contemporâneos para piano de compositores da Bélgica (selo belga De Rode Pomp), Estudos Brasileiros (selo ABM, Academia Brasileira de Música) e um último dedicado a compositores da França, Bulgária e Portugal (selo francês Esolem). Encerrei o ciclo no ano previsto, 2015, tendo apresentado em público cerca de 80 Estudos das mais diversas tendências. Vários foram publicados no Exterior, mas as dificuldades encontradas para que a extensa coletânea fosse impressa no Brasil inviabilizaram esse propósito. Apraz-me saber que doravante essas criações integram catálogos de respeitáveis compositores.

Durante o desenvolver da coletânea conheci criações do compositor da Bahia Paulo Costa Lima. Encantaram-me de imediato. Sua visão erudita e a mesclagem com o que há de mais profundo nas raízes de sua terra possibilitaram composições as mais expressivas destinadas a instrumento solo e conjuntos. Quanto às criações para piano que surgiram de sua lavra naquele efervescente período, acrescentaria que rítmica riquíssima e uma inédita e transcendente abordagem pianística serviram de profícuo desafio para o intérprete. Apresentei-as nos Festivais Música Nova (Santos e São Paulo), nos anos 1991-1993, assim como na Bélgica e em Portugal.

Pega essa nêga e chêra, Imikayá e Ponteio-Estudo (1991-1993), trilogia que me foi dedicada e que tive a honra de gravar em Sófia, com o também saudoso engenheiro de som Atanas Baynov a conduzir os registros, atestam o imenso talento do músico e teórico da Bahia.

Sobre o compositor Paulo Costa Lima (1954- ) diria que suas criações multidirecionadas já receberam mais de 500 performances em mais de 20 países. Escreveu 10 livros sobre música, a abordar temas como teoria e pedagogia do compor, análise e relação entre música e psicanálise. Professor Titular de Composição da Universidade Federal da Bahia, foi Pró-Reitor da UFBA e Secretário de Cultura da Cidade de Salvador. Membro da Academia Brasileira de Música (cadeira 21 – Cláudio Santoro), Paulo Costa Lima tem recebido inúmeros prêmios.

Após ter sido surpreendido com as gravações inseridas no YouTube pelo grupo italiano Wellesz Theatre, pensei participar aos leitores o tríptico de Estudos de Paulo Costa Lima e solicitei-lhe um texto a comentar as criações. Ei-lo:

“Retornar à cena da criação é sempre um desafio. Todos reconhecem. Essas obras foram escritas no início da década de 90, por um compositor ainda jovem, e dedicadas a José Eduardo Martins. Todas elas brincam com a geração de sentido através das técnicas de variação e transformação temático-motívica – aliás, um traço característico do Movimento de Composição na Bahia (que se inicia com Koellreutter e Ernst Widmer em 1954 e prossegue até os dias de hoje), mas fazem isso de forma distinta. Todas investem de forma sistemática na dimensão rítmica como fio condutor da atenção na obra, bordando esses ritmos no tecido melódico das melodias originais (quando é o caso), e assim almejando um ambiente rítmico de interação entre vanguarda e uma série de outros contextos (sem repetir os bordões do nacionalismo).

A primeira a ser escrita foi Pega e essa nêga e chêra, e esse título, que soa insólito fora do contexto, é, na verdade, o título da canção recolhida nas margens do Rio São Francisco. A melodia celebra um traço distintivo da cultura nordestina, o cheirar como manifestação de afeto, de carinho. Ora, a melodia tem uma característica deveras interessante, ela se desenrola no espaço de um trítono, e só isso. O compositor passou a imaginar que esse trítono era apenas o trecho superior de um modo mixolídio (sib, lá, sol, fá, mi…) e acrescenta a sua fundamental imaginada, o dó. Daí surge uma trajetória de transformações.

Clique para ouvir, na interpretação de J.E.M., Pega essa nêga e chêra:

https://www.youtube.com/watch?v=m0UA0Tu_sHg

A segunda a ser escrita foi Imikayá, que utiliza como ponto de partida uma melodia de origem banto, celebrando Kayá, uma divindade das águas (que tem paralelismo com Yemanjá da nação Ketu). Creio que o discurso das variações fica mais ágil nessa obra, ela almeja uma fluidez que consegue em vários momentos. Assim como na anterior, o estímulo melódico é usado como forma de transitar para o mundo dos motivos e dos conjuntos, criando ambientes que soam modais, tonais ou seriais.

Clique para ouvir, na interpretação de J.E.M., Imikayá:

https://www.youtube.com/watch?v=Fw2qYBd-kyE

A terceira da série foi o Ponteio-Estudo e, no coração de quem as escreveu, a mais querida. Aqui já não há um ponto de partida que venha de algum contexto cultural, a própria peça fabrica seu ponto de partida, um motivo (ou conjunto) com duas quartas justas e duas terças menores – mas isso é apenas pretexto para fazer explodir uma espécie de vulcão sonoro que explora a densidade dos graves no piano, mas logo inverte a direção para o lado mais agudo. Há uma análise recente desta obra, feita por Guilherme Bertissolo, que investiga justamente essa capacidade de gerar movimento (e inércia de movimento), até o ponto de inflexão na seção central. Pois bem, é tudo variação, tudo é ‘deduzido’ do motivo inicial, mas o interesse vai muito além desse desafio formalista, o intuito real é pegar o ouvinte pelas orelhas e arrastá-lo para um gozo pianístico todo seu, intenso e breve…

Clique para ouvir, na interpretação de J.E.M., Ponteio-Estudo:

https://www.youtube.com/watch?v=T3NQ23n_PwE

Creio que essas peças plasmaram um caminho de maturidade para o meu fazer de compositor, e isso só foi possível por causa do diálogo que elas permitiram com a genialidade interpretativa de José Eduardo Martins. Há muito dele em todas elas – tanto no sentido da escolha interpretativa, que molda a natureza da obra, como também por permitir que o compositor cultivasse insights que vinham diretamente do que ouvia deste piano – e não apenas em suas próprias obras, mas também através de Rameau, de Debussy, de Gilberto Mendes…

Fica, portanto, esse breve registro das obras e da gratidão enorme pela parceria que as iluminou”.

Aos 11 de Setembro de 1997 interpretei em Gent, na Bélgica, Vassourinhas-Estudo-Frevo (1997), criação de Paulo Costa Lima em homenagem ao notável compositor português Jorge Peixinho (1940-1995). Tocaria igualmente homenagem a Peixinho, criação do saudoso compositor e amigo Gilberto Mendes (1922-2016), Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois (1997). Esteve no recital o sensível artista plástico holandês Jan De Wachter (1960- ), que me ofereceu, dias após, seis expressivos trabalhos (técnica mista), entre esses um a lembrar Vassourinhas, outro In Memoriam Jorge Peixinho, um terceiro a rememorar Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois. De Wachter expunha na Galeria La Perseveranza, em Gent, suas obras dedicadas ao notável cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986).

Paulo Costa Lima continua sua sólida e profícua atividade de compositor, teórico e professor, respeitado no Brasil e no Exterior.

Ao leitor que quiser conhecer melhor a produção de Paulo Costa Lima, sugiro a consulta aos vídeos que apresentam parte substancial de sua música e do seu pensar:

https://www.youtube.com/channel/UC8LQtZ2vUWNU-ocKi_eAXAw/videos?view_as=subscriber

From 1985 to 2015 I worked on a project for piano etudes, trying to embrace with a comprehensive view  the technical possibilities of the instrument in the transition between the 20th and 21st centuries. Brazilian and foreign composers have been invited for the project, among them Paulo Costa Lima. Award–winning composer with more than 500 performances in more than twenty countries, music theorist and teacher of composition at the Federal University of Bahia, Paulo Costa Lima was born in Salvador, Bahia, in 1954. His three etudes for my project —“Pega essa nêga e chêra”, “Imikayá” and “Ponteio-Estudo” —, all of them real challenges for any interpreter, have conquered me immediately for their fusion of classical compositional techniques with Afro-Bahian elements. I recorded the three works and, much to my surprise, learned that the recordings have been posted on YouTube by the Italian music video channel The Wellesz Company. In this post I give the YouTube links to my recordings of Costa Lima’s works, preceded by valuable comments by the composer himself on the genesis  and main features of each of them.