Atendendo a inúmeros leitores
Tempo bem empregado
Curto parece.
(Adágio açoriano da ilha de Santa Maria)
Meu último e derradeiro CD ensejou um número considerável de e-mails sugerindo estender-me mais sobre a longa viagem pelas gravações, recordações que remontam às primeiras e heroicas destinadas aos LPs, e às que foram captadas em condições de excelência desde o ano de 1995 no Exterior.
Faço esse mergulho na memória, pois de interesse para o conhecimento da evolução tecnológica a partir de cinco registros fonográficos que realizei em São Paulo e Rio de Janeiro para lançamentos em LPs, do final da década de 1970 aos primórdios dos anos 1990. Estou a me lembrar do primeiro, com criações de Tsuna Iwami, Henrique Oswald e Claude Debussy para um selo de vida efêmera, “Studium Gravações”. Após gravação em fita, as edições eram realizadas com uma lâmina de barbear e, após o corte “preciso”, juntavam-se as fitas!!! Posteriormente, em três LPs gravados para a FUNARTE, mercê do idealismo do excelente compositor Edino Krieger, àquela altura Presidente da Fundação, realizamos gravações históricas pelo teor das obras de Henrique Oswald: a integral para violoncelo e piano com Antônio Del Claro, e obras de câmara com o ilustre celista e a prestigiada violinista Elisa Fukuda. Krieger foi decisivo na recuperação de parte do repertório brasileiro basicamente esquecido. Estou a me lembrar de que, durante as sessões num auditório da UFRJ, éramos “devorados” por pernilongos!
Clique para ouvir, do compositor japonês Baikyoku Tsuna Iwami, O Mar, o terceiro de três poemas, a partir poesias de M.Miwa. Gravação realizada em São Paulo (1979) para LP:
https://www.youtube.com/watch?v=PK2qMzhu7IU
Foi graças à visita de músicos belgas ao Rio de Janeiro em 1995 que, após adquirirem LPs na loja da FUNARTE, de regresso ao seu país convidaram-me para gravar em Bruxelas a integral para violino e piano de Henrique Oswald. Meses após, gravava com o ótimo violinista Paul Klinck a integral para violino e piano de Oswald, CD lançado pelo selo belga PKP Produkties. Iniciava aos 57 anos as gravações europeias.
Um ano após, em Sófia, gravava na Sala Bulgária, com meu irmão João Carlos, os dois Concertos para dois teclado de J.S.Bach, a fim de completar a sua integral do grande mestre alemão. Na oportunidade, o saudoso produtor da Labor Records, Heiner Stadler, convidou-me para iniciar a série de gravações “Music of Tribute”, sendo que o primeiro CD foi dedicado a Villa-Lobos e compositores que a ele dedicaram obras. Como Heiner conhecera em biblioteca americana o caderno de homenagens que coordenei na Universidade de São Paulo graças ao centenário de Villa-Lobos (1887-1959), dele constando dez compositores relevantes, o convite foi prontamente aceito e, do inverno a -15ºC da gravação dos Concertos de Bach, registrei meses após na mesma sala, durante escaldante calor, o CD em questão (Labor Records, 2001). No ano seguinte, sempre a convite de Heiner Stadler, seguiu-se a integral para teclado de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) em dois CDs, que seriam lançados na Bélgica pelo selo De Rode Pomp. As gravações, dirigidas pelo saudoso engenheiro de som Atanas Baynov, foram realizadas igualmente na Sala Bulgária, totalmente revestida de madeira (paredes, poltronas e piso). Essa característica conferia-lhe uma acústica única, diria amadeirada no melhor dos sentidos. Reverberação perfeita.
Uma curiosidade. Como cheguei dias antes para a gravação da integral de Rameau e, não querendo me deslocar muito pela cidade de Sófia, levei meu teclado mudo, que data da primeira metade do século XX. A extensão desse teclado corresponde perfeitamente àquela dos cravos da época. Permanecia no quarto do hotel a estudar e o primeiro contato com o piano da gravação deu-se horas antes das tomadas de som. Levei-o também à Gent, na Bélgica, quando das gravações, para o selo De Rode Pomp, das Sonatas de Carlos Seixas (1704-1742) em dois CDs e a integral das Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau (1666-1722).
Dois episódios em torno do teclado mudo foram inusitados. De regresso ao Brasil, retiveram-me na alfândega de Sófia durante uns bons minutos, pois alegavam que não podia deixar o país com uma peça rara. Uma amiga contrabaixista, que me levara até ao aeroporto, bateu no vidro exterior a chamar a atenção dos agentes. Após suas explicações, fui liberado. Em Gent, ao sair da estação ferroviária, uma jovem me parou a dizer que o Museu de Bruxelas tinha uma caixa semelhante.
Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata em sol menor nº 50, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=uIUhQc_giNs
A relação com André Posman se iniciou por acaso em episódio que devo já ter narrado anos atrás neste espaço. André era diretor da De Rode Pomp, empresa que apresentava na temporada, em sua aconchegante sala de concertos em Gent, mais de cem récitas e, através de selo seletivo, lançava cuidadosos CDs. Tendo assistido ao concerto que apresentamos no dia 18 de Novembro de 1995 na sala do Muziekconservatorium da cidade com várias obras camerísticas com piano de Henrique Oswald, preparava-me no dia seguinte para tomar o táxi a fim de regressar a São Paulo quando André para em fila dupla e sai do carro para me cumprimentar pelo concerto. Não o conhecia. Retirou minha bagagem do porta-malas, fomos à De Rode Pomp e já no ano seguinte me apresentava em recital pela primeira vez em sua sala. Iniciávamos um relacionamento extraordinário que permanece íntegro.
Todos os anos me apresentava uma ou duas vezes em sua sala e gravava em Mullem, próxima à Gent, na decantada Capela Saint-Hilarius, sempre sobre a supervisão técnica do magnífico engenheiro de som Johan Kennivé. Foram 11 CDs gravados para o selo De Rode Pomp, sendo que, um ou dois dias antes das gravações, dava recital na Sala da De Rode Pomp. Sem contar os CDs de música barroca, gravaria obras de Francisco de Lacerda-Debussy; as integrais dos Estudos para piano de Scriabine e Debussy; os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky e a Humoresque de Schumann; Estudos belgas contemporâneos com obras de 10 relevantes compositores do país, assim como CD dedicado às obras de Gabriel Fauré.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Estudo op. 8 nº 12 (Patético), na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0
Nossas três noites de gravação seguiam um ritual. Jantávamos com tranquilidade em restaurante próximo à Capela, tomávamos uma cerveja da região e iniciávamos por volta da meia noite as sessões, que se prologavam até ao alvorecer. Gravávamos preferencialmente em pleno inverno, pois no verão as sessões eram mais curtas, porque anoitecia tardiamente e era precoce o amanhecer, para gáudio da rica passarada da região, o que inviabilizava a tomada de som.
Sob a supervisão técnica do mestre Johan Kennivé ainda gravaria em Mullem, com o excelente Rubiokwartet, criações camerísticas de Henrique Oswald para os selos USP-Concerto; duplo CD para o selo PortugalSom com obras, quase todas inéditas, do grande compositor português Fernando Lopes Graça (1906-1994); Estudos brasileiros para piano e O piano intimista de Henrique Oswald para o selo ABM, da Academia Brasileira de Música; O romantismo de Henrique Oswald para o selo SESC, São Paulo, e dois CDs para o selo francês ESOLEM, Éthers de l’Infini et Retour à l’Enfance, com criações de Georgui Arnaoudov, Maury Buchala, Eurico Carrapatoso, Edvard Grieg, Francisco de Lacerda, Gilberto Mendes, Jorge Peixinho e François Servenière.
Em 1985 iniciei projeto a visar compreender os caminhos do Estudo para piano, que desde o começo do século XIX integra repertório dos pianistas. Quis focalizar esse gênero 15 anos a anteceder o século XXI, prolongando o projeto até 2015, ano em que encerrei um grande caderno. Ao todo recebi cerca de 80 Estudos, criados por compositores de vários países, apresentando-os na quase totalidade e gravando um bom número.
Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Avenida Paulista (Estudo), na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg
Clique para ouvir, de François Servenière, Estudo Cósmico nº 4, Níquel, na interpretação de J.E.M.
https://www.youtube.com/watch?v=6twd8WP_9js
Viagens na Minha Terra (registro inédito) e outras mais obras de Lopes-Graça foram gravadas em 2003 em Leiria para CD do selo Portugaler, dele constando a 5ª Sonata e outras mais obras. Três membros da Portugaler estiveram na cidade para a montagem, que esteve sob a supervisão técnica do renomado organista português João Vaz.
Como a gravação se deu no Teatro José Lúcio da Silva, no último dia da gravação havia o jogo para a decisão do campeonato português de futebol. Duelavam na cidade do Porto o União Desportiva de Leiria e o Futebol Clube do Porto. A equipe lisboeta da gravação preferia o Leiria, mas por imperiosa necessidade profissional tendia a torcer para o Porto, pois se o time da cidade ganhasse título inédito o registro teria de ser suspenso por uns dois dias, mercê das festividades com fogos de artifício e feriado municipal no dia subsequente, pois carreatas e desfile dos jogadores estavam programados. O Porto venceu e a gravação foi realizada no silêncio sepulcral da histórica Leiria.
Clique para ouvir, de Fernando Lopes-Graça, Viagens na Minha Terra, na interpretação de José Eduardo Martins:
https://www.youtube.com/watch?v=n0PwLys54GU
Agradeço aos inúmeros leitores que insistem para que não encerre definitivamente as gravações. Um deles foi meu queridíssimo irmão, o jurista Ives Gandra. Fiz-lhe ver que o Tempo do Eclesiastes se aplica a todas as áreas. Continuarei a dar recitais, a escrever mormente sobre música neste espaço e para publicações no Exterior, a viver e a correr pelas ruas… Se procurei gravar nas melhores condições do planeta os 25 CDs com repertório de altíssima qualidade, pouco ou nada frequentado, houve a intenção de deixar um legado. O tempo dirá…
Following readers’ suggestions, I write about the circumstances surrounding my many recordings (when and where they were made, sound quality, technical staff), from the first vinyl LPs recorded in Brazil back in the eighties, in inadequate technical conditions, to the 25 CDs I’ve recorded in Europe with a high degree of technical excellence. I am grateful to those who asked me not to stop recording, but as the Book of Ecclesiastes says, there is a time for everything. I will go on with my recitals, my writing, my races, my life… If I’ve tried to record a high quality repertoire in the best possible conditions, it was with the intention of leaving behind a lasting legacy. Time will tell…
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