Opiniões que levam à reflexão
Na realidade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente.
Por inteiro, sem dúvida, ele nos segue a cada instante.
Henri Bergson
Foram muitas as mensagens sobre o notável pianista Benno Moiseiwitsch. Alguns desconheciam completamente o músico. Outros saudaram a lembrança e apontaram para um caminho que se apresenta como sem retorno tornando a música clássica ou de concerto produzida por poderosas organizações musicais pelo mundo um grande espetáculo multimídia.
Sem questionarem as qualidades inerentes de determinados intérpretes possuidores do domínio pleno do teclado – musicalmente nem sempre – pertencentes à categoria mediática, chamaria maior atenção a forma como realizam as suas performances e a indumentária chamativa a evidenciar que o espetáculo tem de ser totalizante, teatral.
O gestual econômico dos grandes pianistas do passado focalizados neste espaço é evidência nítida de que a grande preocupação daqueles artistas estava direcionada à realização musical essencialmente e que a virtuosidade, quando presente, era apenas o meio para o desempenho o mais correto de determinados segmentos, jamais o fim como desiderato. Essa assertiva ficaria evidente no último exemplo inserido no post anterior sobre o ilustre Benno Moiseiwitsch. Após a plena virtuosidade a enriquecer uma sensível condução das frases musicais em obra de extrema dificuldade, a transcrição de Liszt-Moiseiwitsch da abertura de Tannhaüser de Wagner, o notável pianista com a mais absoluta naturalidade retira um lenço do bolso da lapela, serenamente passa na parte superior dos lábios, volta-se para a câmera e diz sem qualquer fadiga Good Night e Bonsoir.
O professor titular da FFLCH-USP, Gildo Magalhães, escreve: “Delicado – sutil; contido – preciso; emotivo – sublime. Totalmente imperdível!!! Muito obrigado, mais esta vez”.
O ilustre compositor português Eurico Carrapatoso escreveu: “Ao ler o teu escrito ocorreu-me logo o exemplo desta artista, Lola Astanova, nos antípodas do excelso Benno Moiseiwitsch, que não tem qualquer inibição em exibir seus dotes. Ela daria uma excelente actriz de produções do cinema saloio encarnando personagens espúrias do universo Marvel de 2ª categoria, do género Vulva-Woman. O exibicionismo campeia nos corredores da produção de espectáculos, e agora cada vez mais na área da Música Clássica: artistas que são, digamos, escolhidas a dedo”.
Assiste-se presentemente, de maneira sempre crescente, a busca de elementos extramusicais por parte de intérpretes mais jovens para gáudio de um público que une a mensagem musical à teatralidade do executante. À frase do respeitado músico belga André Souris (1899-1970): “O público se preocupa pouco com as intenções do compositor e mais com aquilo que ele ouve”, inserida como epígrafe no post anterior, acrescentaria eu “e com aquilo que ele vê”, a refletir bem a célere despreocupação por parte de intérpretes super mediáticos das novas gerações com o sagrado contido na música clássica, de concerto ou erudita. O amparo das associações promotoras e da mídia é plena a este cenário que sempre objetiva a legião de adeptos e o lucro.
Entre as pianistas mulheres há muitas relativamente jovens e extremamente hábeis, oriundas basicamente do Extremo Oriente e da Europa do Leste, conhecidas mundialmente a se ver, inclusive, no indicador de acessos dos aplicativos mais ventilados. Atingem milhões de buscas em pouquíssimo tempo. Gestual in extremis, sumárias vestes, toda uma produção fixada pelas câmeras e para esse novo público já seduzido pelo espetáculo teatral. Diria que em tantos casos, a música vira um pormenor necessário. Para que o leitor se inteire, o Noturno de Chopin em mi menor op. 72 nº 1 interpretado de maneira inefável por Moiseiwitsch inserido no blog anterior está no Youtube desde Janeiro de 2010 com pouco mais de 5.000 acessos!!! Vídeos da intérprete mencionada por Carrapatoso em 2018 chegam a 8.800.000!!! Dotada de dons técnico-pianísticos evidentes tanto para a desenvoltura da música clássica como da música pop testemunhados por vídeos expondo verdadeiros malabarismos dignos do Cirque de Soleil, mercê igualmente de atributos físicos inquestionáveis da pianista-show, emprega-os servindo-se da Música Clássica em cenários rebuscados. Em um deles executa uma obra sacralizada do repertório “vestida” unicamente com peças “super” íntimas amparadas por asas angelicais!!! A disparidade estratosférica dos acessos ratifica a mudança acentuada do gosto musical, palavras decantadas há séculos. Outra pianista conhecida mundialmente soma-se a essa civilização do espetáculo que busca superar-se, apresentando-se em vídeo com uma das obras mais populares de Franz Schubert a ter no início da exibição sua figura deitada em um pequeno lago e com ramalhete no peito, imitação – a beirar o grotesco – da pintura do pré-rafaelita inglês John Everett Millais (1829-1896), Ofélia. Antolha-se-me que todos esses vídeos visitados por milhões estariam a endereçar repertório clássico em direção ao simulacro. Distrair a escuta é uma forma de desvirtuá-la.
Neste espaço desde 2007 tenho denunciado o caminho que acredito sem volta. Contudo chamou-me a atenção mensagem de um leitor a contestar meu posicionamento e que me pediu anonimato (cito apenas as duas primeiras iniciais JA). Escreve que as gravações dos pianistas do passado eram feitas em condições insatisfatórias para os padrões atuais e que não seria ele um “visitante de museus” – palavras suas -, pois ouve sempre os artistas da nova geração gravados na excelência e quando filmados, “o espetáculo é total” (palavras de JA). Escrevi-lhe a dizer que minha resposta estaria externada no presente post.
Ao longo desses anos tenho salientado a qualidade inefável de pianistas de antanho. Diferentemente de uma obra literária ou de uma pintura ou escultura que fixadas permanecem, a composição sem a presença do intérprete, personagem indispensável, permanecerá, mas apenas como partitura em determinado arquivo. A execução musical só teve registros sonoros a partir dos primórdios do século XX. Os avanços tecnológicos estabeleceram para a gravação avanços incomensuráveis. Dos discos de 78 rotações (78 rpm) à atualidade, passos gigantescos foram empreendidos. Com o surgimento do vinil, (Long Play – LP) nas fronteiras da segunda metade do século XX, mais leve e podendo conter minutagem bem superior, estiola-se a produção dos discos 78 rpm. Mencionei tempos atrás que minha primeira gravação para um Long Play (LP) em 1979 teve a edição realizada pelo técnico ao meu lado com instrumental hoje jurássico, pois editava cortando a fita magnética com uma lâmina de barbear!!! Os veículos de divulgação a partir da aparição do CD em 1990 expandiram-se. Maiores e menores empresas, estas mais seletivas no geral, democratizaram a gravação possibilitando a aparição de milhares de músicos antes sem acesso às grandes gravadoras. Sob outro aspecto a técnica de gravação deu saltos gigantescos. Se a agulha que percorria o vinil era “sinônimo” de atrito, a encobrir um “som puro”, a gravação digital foi um avanço e a aparição do compact disc realidade que ainda perdura. Outros tantos passos têm sido dados de maneira célere. Esses avanços contínuos não inviabilizaram a atenção para com os processos antigos e hoje já são recuperadas gravações de discos 78 rpm e LPs, através de leituras a laser sobre os sulcos antes percorridos pela agulha que têm trazido resultados a beirar a perfeição.
Acredito que temos de ouvir as gravações do passado abstraindo-se da qualidade dos registros, atentando-se apenas à transmissão da mensagem musical. Assim fazendo, podemos compreender a diferença da abordagem, antes significativamente musical, hoje, mesmo a se ter em conta o técnico-pianístico absoluto de tantos pianistas das novas gerações, a atender tantos outros desideratos distantes da essência essencial da mensagem musical e mais ligados ao espetáculo ávido pelo espetáculo. Contudo, também creio que deve o intérprete gravar a partir das condições tecnológicas mais hodiernas, pois a história registrou aqueles excelsos artistas nessas possibilidades extremas da perfeição do momento. Somente através desse acompanhamento ditado pelo avanço constante da parafernália de aparelhos eletrônicos que nos proporciona gravações atuais próximas ao ideal sonoro, podemos avaliar e apreciar com “ouvidos históricos” os grandes mestres de antanho que se utilizavam da “perfeição” que lhes era proporcionada.
Clique para ouvir, de Franz Liszt, Rêve d’amour, na interpretação de Arthur Rubinstein:
https://www.youtube.com/watch?v=nkXOrkeZyqQ
Clique para ouvir, de Franz Liszt, Rêve d’amour, na interpretação de Lang-Lang:
https://www.youtube.com/watch?v=2FqugGjOkQE
O leitor tirará suas conclusões.
Among many of the messages received, three caught my attention. One of them comments on the unique experience of listening to Benno Moiseiwitsch’s recordings; another observes the increasing number of performers who use music for self promotion, a situation that has little to do with the essence of classical music. In a third, the reader confesses his preference for current videos due to their better quality, as compared to those of the past.