Dois grandes pianistas essencialmente músicos

Há períodos marcantes na história da arte pianística em que plêiade de artistas pertenceu à mesma geração. Era ainda adolescente e alguns pianistas austríacos coetâneos visitaram o Brasil: Jörg Demus (1928-2019); Friedrich Gulda (1930-2000), que apresentaria ainda jovem as 32 Sonatas de Beethoven no Teatro Municipal; Alexander Jenner (1929- ), que venceria o Iº Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957); Hans Graf (1928-1994), que residiria por certo tempo no Brasil. Com exceção de Demus, todos passaram pela classe do professor Bruno Seidlhofer (1905-1982).

Pormenorizar-me em Badura-Skoda e Jörg Demus tem razão precisa, mercê das muitas colaborações dos dois mestres, não apenas em apresentações públicas como em outras atividades musicais. Entre mais fatos congregadores, ambos colecionaram pianos antigos. Nascidos com um ano apenas de diferença, foram longevos e morreriam no mesmo ano. Realizaram carreiras brilhantes estruturadas basicamente no repertório austro-germânico do qual eram intérpretes de integrais.

Uma das características de Badura-Skoda foi a de gravar as integrais das Sonatas de Mozart, Beethoven e Schubert em vários instrumentos de épocas diferentes. Nessas performances mencionaria suas gravações em 2013, aos 86 anos, da última Sonata de Schubert – Si bemol maior D. 960 -  em três pianos datados de sua coleção, 1820, 1920 e do início do século XXI. Friso com certa insistência sobre pianistas que, criativos, têm absoluto respeito à tradição. Badura-Skoda foi um desses dignos exemplos.

Clique para ouvir, de Mozart, a Sonata em Ré K 576, na interpretação de Paul Badura-Skoda:

https://www.youtube.com/watch?v=3zsXGhFtopw

Destacou-se como professor, revisor de obras fundamentais de Mozart e de J.S.Bach, assim como escreveu livros a respeito da interpretação das composições dos mesmos autores. Teve a colaboração de sua esposa, Eva Badura-Skoda. Nas considerações sobre Mozart há princípios que substanciam a imaginação do intérprete.

Jörg Demus destacou-se na interpretação de repertório igualmente frequentado por Badura-Skoda, mas também se dedicaria à composição. Suas interpretações das integrais de Schumann e Debussy tiveram recepção entusiástica e ficaram como legado através das gravações. Foi também notável camerista, apresentando-se com destacados cantores e instrumentistas. Tem-se em Demus um cultor absoluto da tradição, fator que imprime às suas execuções caminhos certos àqueles que a preservam.

Clique para ouvir, de Robert Schumann, as Variações Abegg op. 1 na interpretação de Jörg Demus:

https://www.youtube.com/watch?v=q-q7vYIpItA

Há que se destacar a amizade entre os dois grandes intérpretes. No último recital de Paul Badura-Skoda, aos 31 de Maio de 2019 no Viena Musikvereim, o pianista dedicou sua apresentação ao grande amigo Jörg Demus, que falecera em Abril. Uma amizade que perduraria por setenta anos. Em Setembro, Badura-Skoda também partiria. A derradeira récita do duo se deu em 2018.

A gravação da Fantasia em Fá menor – D.940 realizada na Salle Gaveau em Paris no ano de 2007, quando os dois estavam na faixa dos oitenta anos, evidencia o mais absoluto entendimento entre os excepcionais músicos.

Clique para ouvir a criação de Schubert na interpretação dos dois  mestres. É pena que o vídeo seja interrompido aos 8:56…

https://www.youtube.com/watch?v=Dp8W7pSTBmw

Poucos meses antes da morte, Jörg Demus apresenta em recital o Prelúdio e Fuga em Fá menor do IIº volume do “Cravo Bem Temperado” de J.S.Bach. Interpretação espiritual que revela toda uma enciclopédia de intensa vivência musical ao longo da existência. Tem-se a impressão de que algo não mais terreno perpassa toda essa magnífica interpretação, uma das mais marcantes da história dessa criação do Kantor.

Clique para ouvir o Prelúdio e Fuga de J.S.Bach na interpretação de Jörg Demus:

https://www.youtube.com/watch?v=la3xKsHM4TA

Reitero minha posição depositada em tantos blogs sobre pianistas do passado que deixaram legado insubstituível. Ouvi-los é entender que a autenticidade da interpretação apreende o respeito à tradição e à análise profunda das obras executadas. Tantos intérpretes, como Badura-Skoda, publicaram estudos e revisões de composições de autores consagrados. Ao longo dos anos tenho constatado que mais nos aprofundamos nessa tumultuada civilização do espetáculo, mais acentuadamente a obra a ser interpretada faz parte desse espetáculo que não busca o essencial e nem se preocupa com, ao menos, o olhar analítico. A busca pela extrema destreza a minimizar a mensagem musical no seu conteúdo real. Pouco ou nada a fazer.

On May 21st 2019, Paul Badura-Skoda gave his last recital, and passed away in October of the same year. He dedicated the recital to his great friend Jörg Demus, who had died in April. The musical friendship between the two lasted seventy years.