Pianista exemplar da grande tradição

Todo ato resulta de um pensamento nascido de um sentimento. Toda nossa vida se resume em três pontos: agir, pensar, amar, e se manifesta pela vontade, inteligência e sensibilidade. A vontade diz: eu quero. A inteligência diz: eu gostaria. A sensibilidade diz: eu amaria. P.Hissarlian-Lagoutte (“Philosophie et Esthétique de l’Art Musical”, 1949)

Lembrar de Yara Bernette no ano de seu centenário é imperativo. Após a tríade extraordinária composta por Antonieta Rudge (1885-1974), Guiomar Novaes (1894-1979) e Magda Tagliaferro (1893-1986), o Brasil apresentou um hiato de algumas décadas até a aparição de Yara Bernette, artista à altura de suas antecessoras, mas que desempenharia em acréscimo fora do Brasil função diretivo-didática das mais importantes durante décadas na Alemanha.

Nascida em Boston de pais russos, aos seis meses veio ao Brasil e teve a naturalização. Foi aluna durante anos do professor russo José Kliass, certamente aquele que orientou os nomes mais expressivos da pianística brasileira: Bernardo Segall, Estelinha Epstein, Ana Stella Schic, Isabel Mourão, Ney Salgado, entre tantos. Meu irmão e eu estivemos sob sua orientação durante seis anos. José Kliass estudou com Martim Krause, aluno de Franz Liszt e professor igualmente de Claudio Arrau.

A estreia de Yara Bernette em Nova York em 1947 rendeu-lhe crítica extraordinária do New York Times: “…a mais bela sonoridade da temporada”. Em 1956 receberia a medalha Arnold Bax Memorial Award “como a melhor intérprete da música contemporânea”. Tendo se apresentado com as mais respeitadas orquestras sob a regência de maestros renomados como Karl Bohm, Eugene Jochun, Willian Steinberg, Rudolf Kempe, Ferdinand Leitner, entre tantos outros, foi igualmente recitalista entre as melhores.

Importante frisar que nos anos 1960 fixaria residência na Alemanha, sendo que em 1972, concorrendo com 130 candidatos de vários países, obteve a Cátedra de Piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo. A premissa se faz necessária, pois lentamente o nome de Yara Bernette soma-se às figuras pátrias de relevo da música clássica erudita ou de concerto que vão sendo olvidadas. Fato inquestionável.

As interpretações de Yara Bernette, entre as mais significativas de sua geração em termos mundiais, revelam marcantemente a artista que pensa, que vai além da partitura, numa recriação da obra mantendo o respeito e a linha mestra da tradição, elementos essenciais para as gerações presente e vindoura. Nenhum efeito direcionado a agradar por agradar e a ausência da ênfase exagerada ou do gesto inútil. A emoção está presente em suas execuções amalgamando-se com a estrutura da composição em seu sentido pleno. Caracteriza igualmente a sua interpretação a convicção. Todas suas performances estavam sob essa égide.

Clique para ouvir, de Rachmaninov, os Prelúdios op. 32 nºs 1, 2, 6, 5 e 12, na interpretação de Yara Bernette:

https://www.youtube.com/watch?v=HxdGekuVfr0

Ouvia-a várias vezes em recitais ou com orquestra. Na minha juventude estive presente nas várias sessões em que tocou e analisou a integral do Cravo Bem Temperado de Bach. Numa visita de Villa-Lobos à casa do mestre José Kliass, Bernette, Estelinha Epstein, Ney Salgado, meu irmão e eu tocamos a homenagear o compositor.

Estou a me lembrar que estando a estudar em Paris, Yara Bernette por lá passou em 1961 e me procurou a pedido de Camargo Guarnieri, a fim de com ela ensaiar as “Variações sobre um tema nordestino” do compositor, obra que estudei com Guarnieri. Conservo as cópias heliográficas, nelas constando as partes de piano e da redução da orquestra. Yara iria estrear a obra nos Estados Unidos e estudara recentemente a obra. Fizemos dois longos ensaios e impressionou-me a qualidade de sua interpretação. Uma grande pianista.

Lembro-me de uma noitada em Belém do Pará. Bernette, o ótimo violoncelista Antônio Del Claro e eu estávamos na bela cidade para apresentações em dias diferentes. Hospedados no mesmo hotel, permanecemos horas no terraço a conversar e discutir sobre rumos do denominado recital de piano. Chamou-me a atenção naquele final dos anos 1990 uma observação de Yara, chegada há não muito tempo de Hamburgo, já a apontar para a crise futura dessa modalidade. Enfatizava que ela podia ser sentida na Alemanha.

Clique para ouvir de Chopin, o Noturno op. 48 nº 1, na interpretação de Yara Bernette:

https://www.youtube.com/watch?v=B1dp8fax44E

Em entrevista concedida a Ana Luzia Maia Garcia aos 9 de Março de 2000 (sala do Conservatório de Música, Dança e Teatro Villa-Lobos de Osasco – arquivo Denis Wagner Molitsas), há respostas de muito interesse por parte de Yara Bernette a demonstrar não apenas a experiência como pianista e pedagoga, mas também a fina inteligência. Sobre o estudar horas a fio, responde: “É melhor estudar menos horas, mas concentrado e corretamente, do que estudar muitas horas. Muitas horas nunca resolveu o problema de ninguém… Quantas horas depende do estágio do aluno… Mas, como regra, menos tempo e mais qualidade… Estudo concentradíssimo. É sentar ao piano e não permitir que nenhum pensamento interfira”. Sobre o professor José Kliass, seu tio, afirma que “… foi meu único professor, ele me pegou com seis anos e com dezoito eu estava fazendo meu debut em Nova York”.

Foi durante esse convívio que Bernette tocou várias vezes para Arthur Rubinstein e Claudio Arrau que, em tournées pelo Brasil, infalivelmente conviviam com o mestre Kliass, visitando-o sistematicamente. Uma passagem da entrevista é deliciosa, pois envolve esses dois grandes mestres do piano e a menina Yara: “Chegavam aqui, sobrava tempo e eles iam estudar em casa de meu tio. Era comum, assim às onze horas da noite, tocar o telefone em casa e minha mãe me tirar da cama, com sete, oito, dez anos, dizendo: ‘Você precisa ir para a casa do seu tio tocar’. Eu, danada da vida, porque no dia seguinte tinha colégio. Tinha que me vestir, me arrumar. Com isso eles seguiram minha trajetória e foram me ajudando. Quando cheguei numa certa idade, o Rubinstein disse ao meu tio: ‘Quando ela tiver dezoito anos você poderá enviá-la para Nova York, a gente toma conta dela e seu debut será lá e não tenha susto, ela vai estar pronta para isto’. Apesar de Arrau e Rubinstein não serem amigos entre si, eles foram meus mentores”.

“Ao ouvir o belo pianismo de Yara Bernette, fiquei impressionado com o constante alto nível de sua execução; não só o brilho, a naturalidade, a sensibilidade e a energia, mas também a excelência de seu fraseado, sua sonoridade exuberante e refinada maestria são admiráveis. É um raro prazer encontrar tão magnífica virtuosidade. Em suma, Yara Bernette é uma das mais notáveis pianistas da sua geração”. Assinado: Claudio Arrau.

Corajosamente se autofinanciou no início da carreira: “No meu tempo não havia concursos, eu não tive patrocínios de ninguém, fiz tudo por minha conta. No Exterior fiz um projeto, peguei quatro cidades importantes e financiei os quatro concertos lá. Era meu debut, minha estreia, meu cartão de visitas: ‘Aqui estou eu’ , em vez de falar, de pedir, de angariar, eu patrocinei e aluguei uma sala”. Impressiona o desenrolar da atividade pianística de Yara Bernette comprovada através de seu dossier, pois foram cerca de 3.500 apresentações em quatro continentes!!!

Numa visão universalista, Yara Bernette observa: “Guarnieri era um grande compositor, só acho que ele insistiu muito numa linha nacionalista. Bartok é húngaro, mas é universal. Você tem que transcender uma linha nacionalista para uma linguagem universal. E eu acho que o Guarnieri ficou um pouco preso ao nacionalismo, mas era um grande músico, um grande compositor e ótima pessoa também”.

Clique para ouvir, de Camargo Guarnieri, Dança Negra, na interpretação de Yara Bernette:

https://www.youtube.com/watch?v=vWp14uYSzd4

Marcantes foram suas interpretações no Exterior. Determinadas gravações ainda não estão disponibilizadas devido aos direitos autorais. A menção a alguns Concertos para piano e orquestra se faz necessária: nº 2 de Brahms, nº 1 de Rachmaninov, nº 1 de Chopin, nº 4 de Beethoven, nº 3 de Prokofiev, nº 1 de Tchaikovsky, nº 20 em ré menor de Mozart, de Grieg, de Schumann, as “Bachianas nº 3″ de Villa-Lobos, as “Variações sobre um tema nordestino” de Camargo Guarnieri.

Clique para ouvir, na interpretação de Yara Bernette, sob a regência de Simon Blech, o Concerto nº 3 de Rachmaninov (gravação realizada no Theatro Municipal de São Paulo em 1974)

https://www.youtube.com/watch?v=evtsTxoU_3E

Yara Bernette integra o quarteto de nossas excelsas pianistas. Urgiria a divulgação maior do legado que nos deixaram. Há a necessidade dos pósteros não as esquecerem, pois são elas marcos fundamentais de nossa tradição pianística.

This year celebrates the birth centenary of one of the continent’s greatest pianists, Yara Bernette. Head of the piano department of the Hochschule für Musik und Theater of Hamburg, Germany, from 1972 to 1992, Yara Bernette was an interpreter who kept the pianistic tradition at its highest level.