A releitura de livro referencial do neurologista Julius Flesch (1871-1942)
Os músicos e os pintores
são entre todos os artistas
os mais exaltados e os maiores entusiastas.
Já vimos artistas enlouquecerem
e diversos médicos fazerem menção à musicomania.
Bernardino Ramazzini (1633-1714)
(“De Morbis Artificum Diatriba” – 1700)
Logo após a cirurgia do dedo em gatilho a que fui submetido, sob a competência plena do Dr. Heitor Ulson, especialista em cirurgia da mão, estava a visitar lombadas de livros que me foram preciosos nas décadas bem anteriores, quando me deparo com um exemplar que recebi das mãos de saudosa amiga e boa pianista, Elza Klebanowski. Li-o no primeiro lustro da década de 1960 e várias anotações permanecem. O tema pós-cirurgia era apropriado e reli com inusitado prazer, quase 60 anos após, o livro do Dr. Julius Flesch, neurologista nascido na Hungria, mas a ter sua vida profissional em Viena, “Maladies Professionnelles et Hygiène du musicien” (Paris, Payot, 1929), tradução francesa do original publicado em 1925 sob o título “Berufskrankheiten der Musiker”, que se tornaria um clássico.
O neurologista Dr. Julius Flesch nasceu na Hungria, viveu em Viena, vindo a falecer vítima do holocausto no campo de concentração de Trostinets, perto de Minsk na Bielorrússia. Foi irmão de respeitado violinista, Carl Flesch.
“Maladies Professionnelles…” aborda os muitos acometimentos que afligem os músicos através dos séculos, a partir dos conhecimentos existentes nas primeiras décadas do século XX. De muito interesse, entre os temas tratados e referentes aos cantores e instrumentistas, expõe os vários sintomas, tratamentos e cirurgias, de maneira direta e objetiva. A escrita bem didática faz o leitor se inteirar de acometimentos que, após um século, ainda pertencem à lista dos incômodos que músicos sofrem, sendo que alguns tratamentos não caducaram.
Já na apresentação o Dr. J. Flesch é enfático, a exemplificar que trabalhadores e pilotos tinham de passar por consulta para aferição das condições físicas. Não se exigia o mesmo de um ingressante em uma instituição de ensino musical. A nítida propensão a males irreversíveis não era aferida e, por vezes, esse músico podia ver encerrada sua atividade precocemente, fato a acarretar possíveis graves consequências, inclusive mentais, como explana. Curiosamente, quase um século após perdura a desatenção específica ao músico que presta vestibulares.
Dividido em duas partes, “normal” e “desordens patológicas”, o autor compartimenta cada parte em capítulos expressos, abordando basicamente quase todos os problemas que acometem o músico.
Na primeira parte, diria descritiva, o Dr. Flesch enfatiza os problemas de ordem muscular e os esforços característicos para cada atividade do músico prático, inserindo calorias perdidas diferenciadas para cada atividade, do canto ao instrumento e, nesse quesito, a evidenciar diferenciações dessas calorias em executantes de instrumento de sopro, de cordas ou pianista. Escreve: “Os músculos normalmente trabalham de maneira econômica e empregam pouco oxigênio. Um instrumentista tocando e trabalhando sua interpretação sem economia desperdiça oxigênio e a pressão sanguínea, o trabalho respiratório e cardíaco aumentam. A consequência é o cansaço prematuro”.
Sobre a audição, descreve os malefícios que um resfriado pode causar motivado “por germes que atingem as cavidades nasais, a faringe e a trompa de Eustáquio”. Recomenda ao músico considerar seriamente esse problema, que pode ter consequências.
Ao considerar a memória, observa o denominado ouvido absoluto de nascença ou através de influência musical desde a infância. Menciona como exemplo o tzigano húngaro puro sangue que, desconhecendo os sinais musicais, toca tudo de ouvido e afina seu instrumento sem se preocupar com os outros músicos da banda”. A respeito da memória, estima que os olhos e a audição sejam bem mais eficientes do que a memorização mecânica, frisando que na juventude a apreensão é bem mais presente através da escuta e que, com o passar dos anos, a fixação visual tem maior relevância.
Após discorrer sobre aspectos físicos perceptíveis de um cantor, o Dr. Flesch entende reconhecer elementos propensos à atividade. Analisa as várias funções corpóreas, pescoço, língua, cordas vocais, laringe, tórax, pulmões, musculatura respiratória, abdômen. Percorre parte do corpo humano, explicando as várias ações de cada órgão para a boa condução da voz. Comenta impedimentos como a capacidade reduzida respiratória, tendências às secreções e frisa bem que o cantor deve evitar o tabaco, justamente num período histórico de plena expansão tabagista.
O neurologista explana sobre as aptidões musicais do músico, hereditárias ou adquiridas. Menciona exemplos na história em que filhos de músicos se tornaram grandes compositores e outros casos em que não há exemplos de músicos ou aficionados ascendentes. Contrapõe a essa dualidade teorias de estudiosos que entendem ser “o acaso a dirigir todo ser para uma determinada atividade profissional”, conceito não professado pelo Dr. J. Flesch.
Nessa primeira parte do livro, o autor considera as mãos da criança frente ao piano e sua cuidadosa abertura para maior alcance tecladístico. Observa inclusive o banco, que “deve ser suficientemente grande para os deslocamentos das mãos em passagens pianísticas transcendentais”. O neurologista tem como principal desiderato nesse longo segmento a descrição objetiva, física e didática das funções mecânicas de um intérprete, voz e mãos. Curiosamente, observa em 1925 uma atração natural do cego para o instrumento órgão. O transcorrer das décadas evidenciou diversos casos de organistas cegos.
A segunda parte, “Distúrbios patológicos”, trata dos temas relativos aos males que afligem o músico. De interesse o fato de que, apesar de toda a evolução da medicina, muitas práticas relacionadas ao tratamento são ainda válidas.
Inicialmente aborda a presença da câimbra muscular, possível quando de estudos forçados, tanto da voz como das mãos. “Deve-se entender que a câimbra muscular provém em certos casos de um ‘treinamento’, de um dedilhado anormal, em resumo, de um defeito de ordem técnica”. Estende suas observações relativas às câimbras a outros instrumentistas, particularizando a ocorrência: organistas, flautistas, clarinetistas, trompistas, violinistas e violoncelistas. Para cada especialidade instrumental, um tipo de sintoma. Entende a contração devido à falha durante a formação, mas não descarta a neurose, “seja frente às dificuldades técnicas de uma obra ou ao medo do palco. Pesquisando-se, há a possibilidade de que a origem seja de ordem nervosa primária e de ordem física”. Recomenda interrupções e relaxamento, “repouso diário mais ou menos prolongado, acompanhado de banhos quentes. Um professor capaz poderá resolver esses problemas. Por vezes a causa pode ser encontrada nos problemas vasculares ou em alterações das glândulas sudoríparas”.
Quanto aos males do instrumentista, o autor comenta desde problemas como calosidades nas pontas dos dedos dos executantes dos instrumentos de cordas a males nos cotovelos. Para os pianistas atingidos por distúrbios mais graves sugere até cirurgias, explicando-as. Considera com certo otimismo certas preservações: “Numa idade avançada, período em que a deformação das articulações senis envenenam a alegria de viver para quantidade de músicos instrumentistas, constatamos porém que tantos podem apresentar durante muito tempo uma mobilidade relativamente bem conservada dos dedos”. O autor discorre sobre a sudorese a atingir violinistas e pianistas, de preferência no período da puberdade ou após tratamento de pele, por ele denominado eczema de suor. Elenca quantidade extensa de produtos, pomadas, pós e massagens.
Pertinentes as observações mencionadas em “Les Maladies…” concernentes à parte inferior esquerda do maxilar do violinista. “Alterações são produzidas pela pressão permanente do maxilar sobre parte do violino, produzindo queratose”. Aborda a barba e seu crescimento podendo interferir de maneira pouco confortável para o violinista, criando até pústulas. Indica tratamento. Para o flautista observa a formação de eczemas no lábio inferior. Quanto ao trompetista, são outros os males decorrentes. Um comentário do Dr. J. Flesch nessas décadas iniciais do século XX serviria de alerta: “Tomei conhecimento de observações de médicos especialistas que por vezes constataram, ao nível dos lábios do executante de instrumentos de sopro, a presença do cancro sifilítico. Prudente se torna a não utilização de instrumento de pessoa estranha”.
Preocupa-se o autor com problemas advindos de males nos ouvidos e na visão, que podem inviabilizar as atividades do músico intérprete. Pormenoriza três categorias: a diminuição progressiva devido à idade e a problemas outros advindos durante a existência. Há também a possibilidade dos “dois ouvidos perceberem simultaneamente e de maneira diferente sons idênticos, o ouvido doente a ter a percepção desses sons numa altura mais ou menos elevada em relação ao ouvido são”. Em uma terceira, diplacusia monoauricular, o ouvido afetado percebe sons ‘acoplados’. Comenta: “o maior número de afetados pela ‘falsa audição’ ouve os sons acima do que deveria”. Lembremos que, nos anos finais da existência, o notável pianista Sviatoslav Richter foi afetado pelo mal, que o impossibilitou de continuar a carreira (vide blog: Sviatoslav Richter – 1915-1997, 27-06-2020). Quanto à visão, deixa um alerta no longínquo 1925, ao pormenorizar problemas degenerativos graves não considerados relevantes na infância e que podem inviabilizar no futuro a atividade do músico.
Ao retornar ao canto, observa: “Os cantores e cantoras profissionais ocupam lugar especial no que tange às ‘doenças profissionais’. Mais do que qualquer outra profissão, a atividade do cantor está ligada a uma saúde boa. Enquanto são capazes de exercer a profissão, têm eles saúde particularmente excelente. Não é um acaso, pois a causa tangível é a utilização energética que o cantor faz da sua voz; influencia favoravelmente toda a atividade do organismo, mormente a própria voz e a respiração”. Distingue “o cantor do cantor ‘verdadeiro’ (certamente o que estudou e tem a voz dita impostada plena. Obs. JEM), que canta sempre com pressão atmosférica relativamente elevada. Resulta a vibração enérgica das cordas vocais, sem a qual a voz não atinge a intensidade desejada”. A seguir elenca uma quantidade de males de que é acometido o cantor, pois são inúmeros os órgãos que estão implicados na emissão da voz desse cantor “verdadeiro”. Denomina o capítulo dedicado aos cantores “Perturbações mórbidas da voz do cantor”.
No decorrer do livro, o neurologista se aprofunda nos males que podem angustiar o músico e que seriam as psiconeuroses, apresentando uma série de tratamentos aplicados no período.
Sobre o regente de orquestra tem posição de interesse: “Quanto às perturbações que atingem de preferência a saúde dos regentes, a experiência me ensinou que, entre esses distúrbios, está a neurastenia cerebral (neurose devido a um esgotamento intelectual) resultante de temperamento impetuoso, sanguíneo, que se manifesta de várias maneiras: mal estar, descontentamento e uma espécie de desacordo interior”.
O autor ainda se estende sobre problemas que perturbam o músico em determinada fase da existência, como o AVC (acidente vascular cerebral), sigla da medicina hodierna, que teve outras conceituações durante parte considerável do século XX. O livro expõe dados de suma importância sobre a educação musical, a frisar a necessidade da presença da ética, da moral e da estética na formação integral do aprendiz.
Consideremos as fontes bibliográficas abrangentes a partir de meados do século XIX. Posições pessoais do neurologista Dr. Julius Flesch, embasadas pela vasta literatura específica, foram os motivos da difusão do livro referencial.
“Maladies Professionnelles et Hygiène du Musicien” é obra a ser lida e observada também sob o prisma da cultura humanística. Perdeu-se, com as especializações através das últimas décadas, a visão enciclopédica e holística. O especialista submerge à força do detalhamento tantas vezes obsessivo, relevante e indispensável, mercê dos extraordinários avanços da medicina, mas insuficiente nessa caminhada do homem pela história.
Excepcionalmente o blog da próxima semana será publicado aos 0:05 do dia 25, quinta-feira, Natal, data maior da cristandade.
In 1925, Dr Julius Flesch, a neurologist from Vienna, wrote a book about the professional diseases of musicians (Berufskrankheiten der Musiker). In the sixties, I had the opportunity to read the French translation, published in Paris in 1929 (Maladies Professionnelles du Musicien et Hygiène du Musicien). The recent surgery I underwent on my trigger finger led me to a second reading. Despite the extraordinary advances in medicine, many treatments still persist. Considering people’s preference for specialization nowadays, the encyclopedic and holistic vision of Dr. Julius Flesch, almost a century ago, should be emphasized.