A catástrofe como necessidade de reflexão
Há sempre entendimento, perdão e simpatia
para aqueles que vêm a falir em sua luta;
porém, jamais pode haver tolerância ou compaixão
de qualquer espécie para aqueles que,
conhecendo muito bem o propósito da vida,
gastam o seu tempo a seguir os atalhos
que os desviam da estrada principal.
Jiddu Krishnamurti
(“Mensagem de Ano Novo”)
A minha geração, já nos estertores da existência, não poderia imaginar viver a pandemia que a acomete. Cem anos após a gripe espanhola e com todos os avanços da medicina investigativa, não mais acreditávamos na eclosão de uma tão grave pandemia. Ela veio, devassa o planeta, infesta parcela da humanidade e já ceifou quase 2.000.000 de vidas. Pouco após a eclosão da pandemia lembrei-me de La Peste, de Albert Camus, que, no micro universo de Oran, na Argélia, exemplificava os tentáculos de cepa devastadora, sua evolução e desaparecimento (vide blog “La Peste”, 25/07/2020 e 01/08/2020).
Considerando-se um dia sempre mencionado, 15 de Março, tem-se nove meses e meio sem tréguas, sendo que parte considerável da população não entende ou não quer entender que teremos ainda um tempo longo até a vacinação de quantidade expressiva de habitantes. Estarrecido ouvi em uma das rádios referenciais de São Paulo a resposta de um jovem baladeiro para repórter que questionava o porquê da ausência de máscaras de todos os frequentadores da “balada” e as consequências de um retorno às suas respectivas moradas, onde encontrariam seus familiares pertencentes a outro patamar etário. A resposta foi imediata: “O problema é deles, não meu”. Essa postura certamente permeia a mente de dezenas de milhares de outros jovens e adultos.
Se o ano foi “perdido” para tantas categorias que tiveram de encerrar suas atividades laboriosas e também para cidadãos dedicados às funções individuais, é possível acreditar que em todas as classes sociais tenha havido aqueles que sublimaram a pandemia sob aspectos relativos à observância dos cuidados necessários e da interiorização individual com ramificações voltadas ao coletivo. Amigos, residentes no país e no Exterior, confessam aprimoramentos em determinadas áreas, leitura, aperfeiçoamento em suas respectivas funções, relacionamento mais sensível com familiares ou amigos, apreensão das dificuldades estruturais do outro. Quantos não são os que encontram na religiosidade conforto e ânimo! O mergulho abissal nesse misterioso de profundis poderá ser a causa de um renascimento do homem, a estender o olhar diferenciado a tudo que o cerca.
Em campos opostos, verifica-se a deplorável atitude dos integrantes dos três poderes e de segmentos da iniciativa privada. A pandemia revelou de maneira maiúscula as desavenças e os oportunismos. Egos superdimensionados dos personagens desses poderes, ideologias em bizarro conflito evidenciam com clareza egoísmos ou, então, a necessidade de determinadas autoridades acalentarem intenções soturnas.
Em torno da pandemia, quantos conluios a fim do lucro fácil através do superfaturamento na compra de aparelhos e demais insumos que salvariam milhares de vidas? Quantos não se beneficiaram! São crimes que deveriam ser considerados hediondos e que se repetem. Sob outra égide, uma das figuras mais abastadas do país declararia em entrevista que em tempos de crise se fazem grandes negócios! No Exterior, algumas das maiores fortunas cresceram à custa do Covid-19. É realmente alarmante, mormente se considerados a cifra crescente de mortos e mais de 80.000.000 de infectados.
Os conluios só existem no país mercê da endêmica corrupção instalada em todos os segmentos da sociedade, apenas a variar nas intensidades.
Sob outro aspecto, a hecatombe moral se imiscui na sociedade como um todo. No segmento cultural, a banalização rasteira do conteúdo das artes ratifica, infelizmente, a posição de Mario Vargas Llosa, ao afirmar que a cultura erudita está em plena queda, mercê da decadência dos costumes, da moral e do gosto. A se ver os principais sites com milhões de acessos, a lamentável unanimidade em torno do besteirol é flagrante. Processa-se celeremente a inversão dos valores morais ditados pela tradição. Matérias publicadas e abusivas de práticas distorcidas, mas vangloriadas pela mídia, entrevistas televisivas sem quaisquer conteúdos com os proclamados “famosos”, destaque ao escabroso, o vernáculo corrompido e eivado de erros em portais, todos fatos evidentes da queda vertiginosa de valores. Tenho o hábito de ouvir noticiário pelo rádio logo ao amanhecer e é crescente o descuido dos apresentadores com a língua portuguesa. Os “né, tá, tô” invadiram a mídia radiofônica principal, sem pejo algum, tornando-se um bálsamo ouvir entrevistados capacitados praticando a boa fala. Não haveria um contratado especialista a cuidar da locução desses apresentadores, observando vícios de linguagem? A prática da malfadada abreviação não faria parte da derrocada dos valores?
Meu saudoso pai, José da Silva Martins (1898-2000), durante décadas foi adepto da teosofia. Meses antes de sua morte ofereceu-me compêndio que mantinha em sua cabeceira, a conter obras de Jiddu Krishnamurti (1895-1986), “Aos pés do Mestre”, com prólogo da pensadora e teósofa Annie Besant (1847-1933) e “Auto-preparação” (A Estrella, 1929). A admiração de meu pai pelo pensador indiano era ilimitada. Quando Krishnamurti esteve em São Paulo para conferências, em 1935, meu pai compareceu aos eventos. Folheando “Auto-preparação” encontro uma passagem voltada ao Ano Novo. Nela, o pensador indiano busca a elevação do homem através da apreensão do que vê e conhece. Fica acentuada a distância que separa as últimas décadas que estamos vivendo de milênios voltados a uma ascensão moral, ética e cultural, apesar de tantos horrores decorrentes de guerras, ditaduras ferozes, injustiça social e ausência de fraternidade que assolaram e continuam a martirizar a humanidade.
Insiro o trecho grifado por meu pai, metáfora a respeito do significado do Ano Novo: “Somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, num país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam. Nesta terra, à medida que o peregrino observador a percorre, oportunidades se acumulam sob seus passos. Porém, para utilizá-las, necessita ser sábio e estar alerta. Pois de uma coisa deve lembrar-se, – que é um viajante e que o que lhe compete é não se deter, mas passar adiante. Deve aprender o que puder dos hábitos e costumes do povo do país, buscando com o olhar discriminador tudo o que possa ser de proveito para o seu estudo. Seu coração, porém, deve estar fixo na meta a ser atingida, na região ainda mais distante, que está além. O país em que se encontra pode ser-lhe de utilidade, e deve notar tudo o que nele houver de interessante; tem porém, ainda, a suprema importância de que, através dessa captação, encontra-se a estrada que leva adiante, a qual tem de cruzar de modo a alcançar a Terra Prometida de grandeza, cujos distantes cimos ele já vislumbrou… Não podeis ser, ao mesmo tempo, o maratonista corredor e o indivíduo satisfeito de si mesmo a trilhar o bem conhecido caminho da vida em desperdício. Se escolherdes ser dos que correm, então, ao fim do ano, devereis estar aptos a medir o avanço efetuado no caminho. No fim do Ano Novo – ou antes do fim de cada dia – deveria haver uma noção consciente, nascida do pensamento e ação deliberados, quanto ao nosso progresso ou retardamento”.
A todos os leitores desejo um Ano Novo venturoso no qual estará inserida a tão aguardada vacina. Que o Ano que passou tenha servido à interiorização, pois a pandemia está a nos ensinar o quão diminutos somos diante do inesperado.
As 2020 closes out, let’s hope the pandemic served at least to lead us to reflection, showing how small we are in face of the unexpected. I close the year with the words of Jiddu Krishnamurti (1895-1986), wishing you all a happy New Year, with the vaccine beating the Covid-19 pandemic with energy.
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