A observação intramuros

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro
do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…”.
Almeida Garret (1799-1854)

Hoje, como antigamente,
o inimigo do homem está no seu interior.
Não obstante, não mais é o mesmo;
antes era a ignorância, hoje é a mentira.
Jean-François Revel (1924-2006)

A recepção ao blog anterior leva-me inicialmente a agradecer aos leitores pelas mensagens, augurando votos para este ano que se apresenta alvissareiro, desde que o planeta esteja sob a proteção das inúmeras vacinas que estão pululando nas entranhas de laboratórios planetários.

A maioria dos e-mails considerou a vacina e a esperança como palavras chaves nesta espera sine die de alguma “salvação” autorizada pela Anvisa, a determinar o término do confinamento a que milhões de brasileiros, mormente os da terceira idade, estão  submetidos. Enquanto dezenas de países já se encontram em pleno período de vacinação, a contenda a confrontar egos superdimensionados de dois governantes pátrios, hélas, retardou todo o processo de aprovação pelas agências reguladoras do Estado. Como bem escrevia Saint-Exupéry em Citadelle, “a vaidade não é um vício, mas sim uma doença”. Insumos deixaram de ser adquiridos e as vacinas, por absoluto descaso e duelos verbais, também não foram previamente encomendadas.

A faixa etária que nos obrigou ao confinamento nessa pandemia torna diferenciada nossa percepção dos fatos cotidianos. Certamente o entendimento que deles temos sofreu alterações. A interiorização possibilita mais acentuadamente a presença da observação e do filtrar o que está a ocorrer extramuros. Durante este período sombrio, a compreensão relacionada à responsabilidade com o outro está muito aquém do desejado por parte de expressivo contingente da população. Notem-se as festanças nos centros urbanos e nas periferias, a frequência às praias, a absoluta alienação concernente ao próximo. Quantos milhares de vezes médicos e especialistas não têm alertado sobre a pandemia, aconselhando didaticamente como se deve proceder neste período? Ouvidos de mercador, como bem dizia meu saudoso pai. Ouvir, parecer acatar e nada fazer. Irresponsabilidade estrutural que tem levado milhares de vidas, sem constrangimento dos que a praticam, pois prontos que estão para outras aglomerações.

Intramuros, naturalmente potencializamos noticiários. Acredito que minha descrença com nossas categorias dirigentes apenas recrudesceu. Decisões do judiciário, inclusive da mais alta corte, ferem fulcralmente o mais elementar bom senso. Intrigas permanentes e desavenças da classe política, tendo como intenção deliberada a imposição das vontades individuais em detrimento do coletivo representado pelo povo, que se expõe aos maiores sacrifícios sem praticamente nenhum retorno, levam à descrença plena. Mentem como respiram e a fuga à verdade é, sem pejo algum, vociferada a todo instante por políticos de todas, friso, de todas as correntes ideológicas. Nada a fazer. As mudanças no poder, sejam elas da esquerda, centro ou direita, não alteram a endêmica enfermidade da falta de responsabilidade para com a essência essencial do que deveria ser o espírito público lhano. Como bem assevera Agostinho da Silva, “a sociedade tem direitos sobre nós como seres sociais, não como homens”. Difícil não se indignar com as amarras impostas por governantes despreparados ou mal intencionados que tendem a nos sufocar, através do descumprimento de metas, do aumento da carga tributária e das incontáveis benesses que se outorgam vorazmente. Dos mal intencionados, a metáfora é propícia a compará-los ao cancro endêmico ditado pela corrupção. A sociedade como um todo está a sofrer, decorrência dos atos dos governantes, da decadência moral, dos costumes e do humanismo nessas últimas décadas, conformando-se num pálido marasmo.

Octogenários, minha mulher e eu integramos o contingente mais propenso ao vírus. O confinamento, se por um lado leva à interiorização, provoca certo constrangimento. Intramuros estamos basicamente preservados, mas a janela nos faz ver a passagem de dignos trabalhadores mascarados que terão de enfrentar condução abarrotada. Esses mesmos laboriosos cidadãos estão à mercê das disputas egocêntricas em torno da vacina, mero joguete nas mãos de figuras sem a menor formação humanística. A divisa é transparente, perpetuação no poder.

Após o período tristemente festivo, mas intenso, no coração de tantos que acreditam na melhora de um país doente, voltarei aos meus temas sobre música, literatura, artes e cotidiano.

Thank you for the numerous messages with votes for 2021. In this post I resume my considerations at the beginning of the New Year. It is unlikely that the vast majority of politicians will change entrenched habits. This constant has unfortunately delayed the vaccination in our country.