Desafio do ilustre pianista Désiré N’Kaoua aos 86 anos

Atesto que em nenhuma outra obra de Beethoven nos seus derradeiros anos
– mesmo na Missa e na Sinfonia -,
o velho leão  mostrou-se tão soberanamente mestre e senhor de seu ‘reino de sonho’
que na Sonata op. 106.
Romain Rolland (1866-1944)

Pode-se comparar a Hammerklavier a uma catedral gótica.
Há sempre algo a aperfeiçoar, a rever.
Jamais chegaremos a termo.
Edwin Fischer (1886-1960)
(notável pianista suíço)

Désiré Nkaoua foi meu colega no início dos anos 1960 nos cursos de Marguerite Long, em Paris. Poucos anos menos jovem do que eu. Estou a me lembrar de suas interpretações admiráveis de criações de Mozart e Chopin. O pianista francês, nascido em Constantina, na Algéria, fez brilhantes estudos em Paris e ao ganhar, aos 27 anos, o primeiro prêmio no prestigiado Concurso Internacional de piano de Genebra iniciaria brilhante carreira, que o levaria a tocar com as principais orquestras europeias e a gravar. Mozart, Schubert, Chopin e os franceses Chabrier, Debussy, Albert Roussel (integral). Foi o primeiro pianista a apresentar em uma só soirée a integral de Maurice Ravel para piano (sua gravação é encontrada no YouTube, acessando-se, inicialmente, YouTube Désiré N’Kaoua e após, um outro link: Désiré N’Kaoua – Topic – Youtube). Sua atividade didática levou-o à docência no Conservatoire Supérieur de Genève e no Conservatoire Supérier de Paris. Désiré N’Kaoua é Oficial da Ordem Nacional do Mérito com o título de embaixador da música francesa no Exterior.

Sou-lhe grato, pois com a ascensão de sua carreira indicou-me como seu substituto na Escola de Ballet Simon Siégel, em Paris, função que passaria a exercer durante dois anos, duas ou três vezes por semana, como acompanhador dos cursos de ballet, onde era necessária a leitura à primeira vista de muitas das obras que eram utilizadas nessas aulas.

Em 2019, Désiré N’Kaoua registraria a monumental Sonata Hammerklavier op. 106 de Beethoven, enviando-me recentemente a gravação (Beethoven, Sonate opus 106, France, Polymnie, 2019).

Com o aparecimento do pianoforte, assistiu-se a um rápido aperfeiçoamento na técnica da manufatura. Os vários instrumentos da família do cravo, já nas décadas finais do século XVIII, mormente após a Revolução Francesa em 1789, entrariam num longo ostracismo de mais de um século e nenhum dos compositores meritosos do Século XIX dedicaria obras a um instrumento que foi um dos símbolos da música da realeza.

Ludwig van Beethoven (1770-1827) viveu em tempos da grande evolução do pianoforte ao piano. As Sonatas para o instrumento, desde a opus 2, composta em 1795, até à última, opus 111, criada em 1821, são testemunhas do interesse de Beethoven pela tessitura. À medida que o teclado se expande, mercê dos avanços tecnológicos do instrumento, o compositor se atualiza em termos dos pianofortes-piano, o que implicaria uma “amplificação” escritural. Ao ser presenteado com um instrumento Broadwood de Londres, com seu teclado de seis oitavas e meia e cujas cordas eram percutidas por martelos, hammer-klavier, utilizar-se-ia da extensão plena no período. Esse fato implicaria igualmente na criação de obras que ultrapassam o seu tempo, poder-se-ia dizer revolucionárias na feitura, sendo que as cinco últimas Sonatas – de um total de 32 -, compostas entre 1816 a 1821, estabeleceriam uma “ruptura” em relação às criações anteriores, em especial a Hammerklavier.

A extensão tecladística e os recursos do novo instrumento implicariam um pensar diferenciado. Basicamente surdo, Beethoven, ao compor a Sonata Hammerklavier, sua mais arrojada e ampla Sonata – num período em que igualmente elaborava a Missa Solene e a Nona Sinfonia -, ultrapassa, sob o aspecto de inovação, tudo o que séculos haviam elaborado em termos de arrojo. O ilustre pianista Paul Badura Skoda (1927-2019), um dos grandes intérpretes da obra de Beethoven, comenta: “A Hammerklavier-Sonata é, para nós pianistas, o que a Nona Sinfonia representa para o regente: obra monumental, culminante, ou melhor, obra que percorre as profundezas e os cumes. Dela nos aproximamos com o máximo respeito”. Esboçada em 1817, prioritariamente escrita durante o verão de 1818 na diminuta Mödling – localidade que contava à altura com 280 casas -, a cerca de 20km de Viena, seria finalizada em 1819 e publicada no fim daquele ano sob o título Grande Sonate pour le Pianoforte. Para a segunda edição, datada de 1823, receberia o título Grosse Sonate für das Hammerklavier. Período de depressão, dificuldades financeiras, ausência de um mecenas, saúde precária e a surdez doravante permanente. Em Mödling, o pintor Klöber fixaria uma de suas mais divulgadas imagens.

Beethoven morreria em 1827 sem ter tido ao menos o prazer de receber notícias da apresentação pública da Hammerklavier. Seus coetâneos achavam-na “inexpugnável”. O compositor acreditava que os pianistas só a compreenderiam cinquenta anos após a publicação. Franz Liszt (1811-1886) a interpretaria, abrindo doravante o caminho para a sua divulgação. Richard Wagner (1813-1883) escreveria, após ouvir Liszt interpretar duas Sonatas de Beethoven num mau piano: “Eu peço a todos que ouviram as grandes sonatas op. 106 e op. 111, tocadas num círculo íntimo por Liszt, a atentarem para aquilo que sabiam antes sobre suas criações e o que sabem a partir de agora”. Clara Schumann (1819-1896) seria uma das divulgadoras da op. 106. Hans von Bulow (1830-1894), grande especialista beethoveniano, apresentaria a Hammerklavier em Paris, na Sala Pleyel, aos 27 de Janeiro de 1860. Karl Reinecke (1824-1910) escreve: “Não obstante a propaganda enérgica de Bülow, as ‘cinco últimas sonatas’ nunca conseguiram conquistar os favores do público, como o fizeram as mais belas dos períodos anteriores”. Apesar de muitos pianistas ao longo das décadas terem apresentado a integral das Sonatas de Beethoven, poucos se atrevem a apresentar a op. 106 isoladamente em público, não apenas pelo “hermetismo” de sua construção como pela extensão da Sonata, por volta de 45 minutos de duração.

A Sonata nº 29 em Si bemol maior Hammerklavier, op. 106, estende-se em seus quatro movimentos: Allegro, Scherzo, Adagio, Largo-Allegro risoluto. Na magnificência integral da obra, a se considerar o ineditismo no tratamento do terceiro movimento, Adagio sostenuto com a indicação Apassionato e con molto sentimento. Considere-se a extrema concentração emotiva desse andamento de longa duração e que apresenta elementos tão diversificados. O Allegro risoluto final, precedido de um Largo, apresenta uma Fuga, forma utilizada na Sonata precedente (op. 101) e na posterior (op. 110), mas que, na Hammerklavier, adquire a aura da monumentalidade a evoluir em seus 384 compassos!

Com ideias precisas, Désiré N’Kaoua expõe, no encarte que acompanha o CD, algumas de suas competentes ideias sobre a Sonata. Tem interesse sua observação sobre as indicações metronômicas de Beethoven. “Concernente à Sonata opus 106, considere-se que ela é a única sonata (e talvez única obra?) com indicações metronômicas em cada movimento assinaladas pelo compositor: as obras que a precedem, e mesmo as que seguem, comportam somente indicações de caráter (alegro con brio, andante sostenuto, etc.), oferecendo aos intérpretes uma escolha mais extensa. Sem dúvida a vontade de fixar um tempo preciso não era estranha à invenção do metrônomo dois anos mais cedo por J.N.Mälzel; infelizmente, a indicação 138 para a mínima assinalada por Beethoven torna o primeiro movimento ilegível sob os dedos de intérpretes os mais capacitados que desejam respeitá-la. O pianista Paul Loyonnet, em sua magnífica obra sobre as 32 sonatas de Beethoven, declara ser ‘impossível de ser tocada’ nesse tempo. Sob outra égide, a primeira publicação em Londres – Beethoven ainda vivia – indica o mesmo número (138), mas para a semínima, o que também não é possível pela maneira inversa. Penso eu que a realidade se situa entre as duas indicações, a resultar a intenção de Beethoven em ressaltar a pulsação a dois tempos ao invés de quatro”.

Quanto às indicações metronômicas que, a partir das primeiras décadas do século XIX, proliferaram nas partituras, nem sempre há exatidão. Em não poucas missivas trocadas entre autores e editoras ao longo, por vezes as indicações, mercê do esquecimento do compositor em assinalá-las, eram fornecidas sem muito critério. Estou a me lembrar de que na coletânea de Estudos para piano (1985-2015), que idealizei e que receberia 80 Estudos vindos de várias partes do planeta, muitos compostos por autores expressivos, vários chegavam sem a indicação. Consultados, os autores me enviavam a marcação. De um dos mais importantes dentre eles, o ilustre compositor búlgaro Gheorghi Arnaoudov, recebi um magnífico Estudo, Et Iterus Venturus (CD “Éthers de l’Infini”, França, Esolem, 2017), com uma indicação metronômica impossível. Escrevi ao ilustre músico, que retificou imediatamente. Tratava-se de algo bem próximo ao que ocorrera com o genial Beethoven. No caso em pauta, tratava-se também de uma figura que, se adequada à marcação metronômica, inviabilizaria a execução.

A interpretação de Désiré N’Kaoua da Hammerklavier é referencial. O notável pianista soube captar essencialidades da magistral Sonata de Beethoven. Nenhum artificialismo. Gravar aos 86 anos a Hammerklavier, só mesmo após décadas de amadurecimento e equilíbrio. Interpretação maiúscula. Sente-se em sua execução o scholar consciente, atento às estruturas formais da obra sem deixar ao largo a emoção. O respeito de que nos fala Badura-Skoda está presente. Em sendo a Hammerklavier a mais complexa e importante de toda a criação beethoveniana para piano, a execução tem que passar pelo debruçamento analítico profundo, o que torna a performance de Désiré N’Kaoua ainda mais dignificante. Um grande pianista. Em carta que me enviou anexa ao CD, afirma que pretende gravar, até o final deste ano os 21 Noturnos de Chopin!!! Como bem expressam palavras reverenciais em França: chapeau bas (de se tirar o chapéu).

Clique para ouvir o Allegro da Sonata Hammerklavier, op. 106, de Beethoven na interpretação de Désiré N’Kaoua. Os outros três andamentos entram pela ordem logo após o final do Allegro:

https://www.youtube.com/watch?v=VJ5xpPbPG8w&list=OLAK5uy_lFihsvkLmpftPYf7_RL7J18_ttRmJ22ZA

The acclaimed French pianist Désiré N’Kaoua, born in Constantine, Algeria, has recorded, at the age of 86, Beethoven’s monumental Hammerklavier Sonata in B flat major, op. 106.A high level interpretation of that which is the longest, more innovative and “hermetic” of Beethoven’s Piano Sonatas. I congratulate him on this superb recording, a real gigantic task.