A qualidade extrema interrompida precocemente

…estas mãos de que a querida mãe tanto cuidou durante toda a vida para que eu pudesse tocar piano – estas mãos que a mãe esfregava com glicerina quando eu dormia para que elas se mantivessem macias, estas mãos que você tanto amava!
(carta de Dinu Lipatti, já doente em Genebra, à sua mãe em Bucareste -1947)

Dinu Lipatti figura no panteão dos grandes mestres do piano. A maioria foi longeva, algo a merecer ainda estudos mais prolongados, e poucos partiram antes da plena maturidade. Dinu Lipatti se insere nessa categoria.

Nascido na Romênia, filho de pais músicos, ainda no ventre materno já lhe era atribuído o vaticínio da carreira pianística. Anna Lipatti, mãe do pianista, em sua pungente e extremada biografia onde proliferam adjetivos para sublimar a idolatria, traça a trajetória da gestação à morte precoce do notável pianista. O mérito de “La vie du pianiste Dinu Lipatti écrite par sa mère” (Paris, La Colombe, 1946) reside nesse acompanhamento permanente, revelador, que, apesar das exacerbações, constroi o perfil de um pianista singular. Nascido em ambiente favorável, abastado, pais músicos favorecedores de toda a educação musical e humanista, Dinu Lipatti revelou desde a tenra infância qualidades excepcionais. Conduzido pelos mestres mais reputados de Bucareste, como Georges Enescu (1881-1955), que inclusive foi seu padrinho e, ao longo da breve existência do pianista, com ele colaborou em recitais violino-piano e também como regente em várias obras para piano e orquestra. Cedo faria incursões na composição e teve como mestre decisivo Mihail Jora (1891-1971).

Precocemente já se apresentara em Bucareste solando os Concertos de Grieg e o nº 1 de Liszt. Em Viena obtém o 2º Prêmio no Concurso Internacional. Alfred Cortot, que integrava o júri, sentindo a injustiça cometida pelos colegas abandonou a banca julgadora, convidando Lipatti para ir a Paris para com ele estudar. Juntamente com seu irmão mais novo, Valentin, e sua mãe, permanecem anos na capital francesa. Dinu Lipatti ingressa na École Normale de Musique e estudaria piano com Alfred Cortot, mas preferencialmente, por sugestão do mestre, com Yvonne Lefébure, regência com Charles Munch, análise musical com Nadia Boulanger e composição com Paul Dukas. Dias após a morte de Dukas, Lipatti apresenta-se pela primeira vez em recital na sala da École Normale de Musique, aos 20 de Maio de 1935. Lipatti o reverencia interpretando o coral Jesus, alegria dos homens de J.S.Bach-Hess. A plateia ouviu em pé a execução. Em pouco tempo, suas apresentações nas principais salas parisienses são acolhidas calorosamente. Lipatti adentrava os 20 anos de idade.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “La Leggierezza”, na interpretação de Dinu Lipatti (1947):

https://www.youtube.com/watch?v=PINztU27Wzg

Regressou várias vezes a Bucareste para férias que se passavam na propriedade da família às margens do Mar Negro. Todavia, o advento da segunda grande guerra e o ingresso da Romênia no conflito foram catastróficos para os Lipattis. Bens confiscados e a impossibilidade de um retorno, fizeram-no radicar-se em Genève com sua esposa, tornando-se professor no Conservatório da cidade. Cultuado na Suíça como um pianista de exceção, diminui suas atividades após o diagnóstico de leucemia, responsável por sua morte prematura aos 2 de Dezembro de 1950. Em seu último recital em Bezançon, na França, a menos de três meses do desenlace (16/09), sentindo-se indisposto durante a apresentação, hesita e toca Jesus, alegria dos homens, sua última mensagem frente ao público.

https://www.youtube.com/watch?v=BcOyojBU3hs

Estou a me lembrar de que as gravações em LPs de Dinu Lipatti chegaram ao Brasil na década de 1950 e nosso pai as adquirira. Já àquela época encantava-me a qualidade da interpretação de Lipatti. Nenhum efeito para agradar. A virtuosidade plena a serviço de uma singular musicalidade. Efeitos timbrísticos sensíveis, pensados, personalíssimos, mas sempre a serviço da música. Em sua biografia, Anna Lipatti salienta inúmeras vezes essas qualidades interiores da interpretação, reflexos, segundo a progenitora, de seu temperamento cordial, atento, sempre voltado ao próximo, às vozes da natureza e ao prazer, desde a tenra infância, de estar próximo do piano e da Música. Inexiste o toque agressivo, percutante. Suas interpretações podem ser entendidas como modelo de um pensar introspectivo.

Comovente foi sua ligação com sua conterrânea, a notável pianista Clara Haskil (1895-1960). Ambos reverenciaram a música com a maior qualidade, sempre a tê-la como prioridade. Serviram à música. Há certa semelhança na interpretação dos dois pianistas (vide blog: “Clara Haskil” 06/06/2020).

Clique para ouvir, nas interpretações de Dinu Lipatti e Clara Haskil, de J.S.Bach, o Coral BWV 659, “Que venha agora o Salvador dos pagãos”:

https://www.youtube.com/watch?v=0AgzkHUw5No

Clique para ouvir, de Maurice Ravel, L’Alborada del Gracioso, na interpretação de Dinu Lipatti:

https://www.youtube.com/watch?v=CuZOVSL5woo

Como compositor, Dinu Lipatti legou considerável produção em estilo que se poderia nomear néo clássico. Compôs obras para orquestra, piano e orquestra, piano e órgão, piano solo, melodias…

Clique para ouvir, de Dinu Lipatti, “L’Arrivée des Tziganes” da suíte para orquestra “Tziganes”. Orquestra da Suisse Romande, sob a direção de Ernest Ansermet (gravação ao vivo, Genebra, 1951)

https://www.youtube.com/watch?v=HdMVv5CYSrM

O “modelo” Dinu Lipati já praticamente se estiolou a partir desta civilização do espetáculo que, independentemente da qualidade do intérprete, privilegia a exacerbação do gesto, a mímica facial frente às câmaras ou as apresentações histriônicas. A mensagem de Dinu Lipatti sempre será glorificada pelos ouvintes que apreciam a execução a mais fidedigna, sensível e sublimada e da qual o grande pianista romeno foi exemplo perfeito.

In this post I write about the excellent Romanian pianist and composer Dinu Lipatti (1917-1950), who died precociously at age 33. He had his biography from birth to death written by his mother, Anna Lipatti (“La vie du pianiste Dinu Lipatti écrite par sa mère”), who idolized him. Lipatti, despite his short career, was without doubt one of the finest pianists of the 20th century. His recordings, which my father used to buy in the fifties, showed a sensitive pianist, preaching austerity, control of timbristic effects and refined emotion. Nothing to do with many histrionic performances so valued today.