Um dos nomes mais relevantes da musicologia no século XX
Poucas personalidades puderam e souberam
conduzir, como ele, várias carreiras
ou atividades paralelas enriquecendo-se mutuamente,
sendo as principais, de um lado,
a função de curador na Bibliothèque Nationale
e a de professor do ensino superior,
e, sob outra égide,
as atividades de musicólogo e de bibliógrafo,
para nos limitarmos ao essencial.
Catherine Massip
Há exatamente 20 anos, 21 de Junho, a França perdia um de seus mais notáveis musicólogos e bibliógrafos. A lembrança de François Lesure faz-se necessária neste espaço, pois sou-lhe eternamente grato. Foi ele que, ao conhecer minhas pesquisas e interpretação de toda a obra para piano de Claude Debussy, propiciou-me aberturas fundamentais em torno do imenso compositor. Abriu-me inclusive, como Diretor de Música da Bibliothèque Nationale, o estudo de toda a criação pianística de Debussy através dos manuscritos originais, experiência fulcral para aprofundamentos. À medida que as pesquisas prosseguiram, por três vezes convidou-me para palestras na École Pratique des Hautes Études em Paris, assim como para escrever, ao longo dos anos, artigos para os “Cahiers Debussy”, publicação do Centre de Documentation Claude Debussy, por ele criado.
Essa premissa faz-se necessária. Rememorar François Lesure é descortinar uma mente privilegiada, brilhante, plena de sabedoria e de generosidade para com todos aqueles que, imbuídos de propostas pertinentes, procuravam-no na Secção de Música da Bibliothèque Nationale, Rue Louvois, nº 2. Foi um grande privilégio privar de sua amizade.
François Lesure foi certamente uma das figuras mais significativas da cultura musical em França, quiçá a mais enciclopédica, na segunda metade do século XX. Tendo estudado na Sorbonne, na École Pratique des Hautes Études, École de Chartes e no Conservatoire de Paris, legou nas duas Escolas mencionadas teses referenciais sobre a feitura instrumental (1948) e os instrumentistas (1950) na Paris do século XVI. Em 1954, como secretário do Repertoire International des Sources Musicales (R.I.S.M.), François Lesure seria determinante na elaboração de catálogos, mormente três (1960, 1964 e 1971), que repertoriam do século XVI ao XVIII. A dedicação à vasta produção da música antiga ocuparia parte das investigações de François Lesure. Saliente-se a colaboração efetiva de sua esposa, Anik Devriès-Lesure, na edificação dos dois volumes do “Dictionnaire des éditeurs de musique français”, que abrange dos primórdios da atividade até 1914.
Posteriormente, o musicólogo estaria na direção de publicações da coleção “Le Pupitre”, com música dos séculos XVII-XVIII (Paris, Heugel, Leduc), assim como da coleção “Patrimoine”, que privilegia compositores franceses relevantes nascidos no século XIX (Paris, du Marais). Da primeira, presenteou-me com a edição das obras de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) para cravo (Paris, Heugel. “Pupitre”, coleção de música antiga publicada sob sua direção. Edição crítica de Kenneth Gilbert) e com o “Traité de l’Harmonie” do genial compositor (France, Klincsiek, 1992, fac simile do exemplar conservado na Biblioteca da Sorbonne. Nota bibliográfica de François Lesure), essenciais para a minha gravação da integral ao piano em Sófia, na Bulgária, em 1997 e lançada em dois CDs pelo selo belga De Rode Pomp com texto do encarte assinado pelo ilustre musicólogo.
Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Niais de Sologne”, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700
Seria em 1950 que François Lesure entraria no Departamento de Música da Biblioteca Nacional da França e, entre 1970 e 1988, diretor do Departamento. Como professor de musicologia lecionou, de 1964 e 1977, na Universidade Livre de Bruxelas, sendo que em 1977 sucedeu a Solange Corbin (1903-1973) na cadeira de musicologia da École Pratique des Hautes Études. Presidiu a Société Française de Musicologie entre 1971-1974 e 1988-1991. François Lesure foi responsável pela organização de exposições junto à Biblioteca Nacional e alhures. Uma delas teve relevo especial, “Debussy et le symbolisme”, na Villa Médicis em Roma, onde o compositor, após receber o Prix de Rome no Conservatório de Paris, estagiou entre 1885-1887. Recordo-me que François Lesure situava Debussy nessa atmosfera simbolista, rejeitando o termo impressionista. Para tanto, disse-me ele que, naquela Exposição, colocara embaixo das escadas, com pouca visibilidade, um pequeno quadro da escola impressionista, apenas para evidenciar a diminuta influência.
Especialista referencial da música a partir do século XVI, estudando aprofundadamente manuscritos editados ou não, repertoriando, catalogando, nessa importante via de elaborações bibliográficas, François Lesure teria uma relevância absoluta na edificação das fontes relacionadas, mormente as referentes a Claude Debussy. Inquestionavelmente, posicionou-se como o mais abrangente pesquisador nos estudos relacionados ao notável compositor francês na segunda metade do século XX.
Afirmaria em entrevista à Rádio USP-FM, São Paulo, aos 9/10/1997: “Houve uma mudança de rumo quando se deu o centenário de Claude Debussy em 1962. Já estava na Bibliothèque Nationale e, nessa instituição, há o hábito de celebrar os grandes centenários através de catálogos e exposições. Nesse ano entrei pois pela primeira vez, de uma maneira focalizada, no mundo debussista”. Em 1971 foi o responsável pela edição de “Monsieur Croche”, edição da obra crítica de Debussy (Paris, Gallimard), republicada pela mesma editora em 1987 numa edição revista e aumentada. Em 1977 é publicado o “Catalogue de l’oeuvre de Claude Debussy” (Genève,Minkoff) e, já no início da introdução, Lesure afirma que “todos os catálogos são provisórios”. A essa altura, François Lesure se preocupava não apenas com a biografia, como também com a seleção da vasta correspondência de Debussy. Quanto à primeira, posiciona-se Catherine Massip ao considerar a biografia de Debussy depositada em dois livros — “Claude Debussy avant Pelléas ou les années symbolistes” (Paris, 1992) e “Claude Debussy: biographie critique” (Paris 1994) – como “a melhor biografia de Debussy atualmente disponível”. Aliás, biografia não superada até o presente, apesar das precedentes obras de Léon Vallas (1879-1956) e Edward Lockspeiser (1905-1973), entre tantos outros que se dedicaram ao difícil mister. Quanto à reunião da correspondência de Debussy, Lesure empreendeu um trabalho de longo fôlego, inicialmente introduzindo imagens nas duas obras da década de 1970, “Claude Debussy – iconographie” (Genève, Minkoff, 1975) e “Claude Debussy – Lettres” (Paris, Hermann, 1980). Desse período até a publicação de “Claude Debussy – Correspondance – 1884-1918” (Paris, Hermann, 1993), dezenas de outras missivas manuscritas seriam divulgadas (vide blog: “Claude Debussy e a atividade epistolar”, 11/01/2020). François Lesure continuava a pesquisa com vistas à publicação da correspondência completa – provisória, se considerada sua opinião sobre catálogos, quando vem a falecer aos 78 anos, em 2001. O trabalho hercúleo de François Lesure seria completado pelo seu ex-aluno Denis Herlin juntamente com Georges Liébert (Paris, Gallimard, 2005). Ainda no universo de Debussy, Lesure foi o criador e supervisor da edição crítica da obra completa de Debussy pela Durand-Costallat, com muitos volumes já publicados, mas em andamento há décadas.
Durante as várias viagens a Paris para pesquisas relacionadas a Debussy, destaco a importância de Myriam Chimènes, a quem François Lesure confiou, a partir de 1984, a responsabilidade do “Centre de documentation Claude Debussy” por ele criado, convidando-a a fazer parte do comité de redação da Edição crítica das obras completas de Claude Debussy, acima mencionada. François Lesure foi seu orientador da tese de doutorado, a ter como tema “Khamma, ballet de Claude Debussy, Histoire et Analyse” (Université Paris IV, 1980).
No próximo blog abordarei as três viagens de François Lesure ao Brasil (1988, 1990, 1997) para conferências, entrevistas, avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo e participação em banca de livre-docência na mesma instituição.
François Lesure, bibliographer and one of the leading musicologists of the 20th century, passed away twenty years ago. Professor at the École Pratique des Hautes Études and curator of the Music Department of the Bibliotèque Nationale in Paris (1970-1988), François Lesure specialized first in 16th and 17th centuries music and later in Claude Debussy. His researches, which resulted in fundamental books, place him as the most representative scholar on the French composer in the second half of the 20th century.