Navegando Posts publicados em julho, 2021

Narrativa do compositor e tributos a ele prestados

Gosto de gostar de tudo,
de viver a música em toda a sua plenitude de significados.
Me proibir, por razões ideológicas de grupo,
de gostar de uma coisa de que na verdade eu gosto, jamais!
Gilberto Mendes

Gilberto Mendes (1922-2016) foi um de nossos mais importantes compositores. Absolutamente aberto às tendências, percorreu-as conscientemente, mas sempre a deixar em suas composições as impressões digitais, marcas inalienáveis que evidenciam o talento autêntico e a seriedade de propósitos. Estivemos ligados por laços indestrutíveis de amizade desde os tempos de meu ingresso na Universidade de São Paulo em 1982 até sua morte em 2016. Nas fronteiras dos setenta anos, que indicariam sua aposentadoria, insisti para que escrevesse uma espécie de autobiografia musical, a resultar numa extraordinária defesa de tese de doutorado na qual tive o prazer de estar presente como membro da banca examinadora. O texto, com alguns ajustes, foi publicado e teve excelente guarida (“Uma Odisséia Musical – Dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo,  Edusp, 1992). Vieram ao longo outros livros, nos quais Gilberto Mendes narrava suas aventuras musicais, opções estéticas, amizades conquistadas pelo mundo e Santos, sempre Santos, a sua cidade mágica.

Tardiamente penetraria nas narrativas idealizadas, pois seu espírito criador voltava-se aos personagens abstratos que povoavam sua mente, mas não desprovidos de nebulosas identidades. Seu livro “Danielle em surdina – Langsam” foi promissor impulso aos 91 anos (vide blog: “Danielle em surdina, Langsam”, 06/04/2013). Pouco antes do desenlace escreveu “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges”, publicado postumamente com a elucidativa apresentação de Ademir Demarchi (Santos, Realejo, 2019).

Os curtíssimos episódios dessa última publicação revelam compartimentos essenciais da personalidade de Gilberto Mendes, a realidade e a ficção. Mesclá-las, eis o objetivo alcançado. Gilberto está presente nessa autoficção sem se nomear; capta período preocupante para um grupo de militantes do Partido Comunista e Ramiro seria seu pseudônimo. À maneira de um Dostoievsky, autor que ele tanto admirava, Gilberto observa. Esteve na militância durante cerca de 20 anos e, com o advento da “Revolução” de 1964, jogou todo o material que possuía no mar de sua Santos, seu porto seguro.

Acompanhar essas brevidades é compreender que as reuniões para discussão de temas afins ao Partidão tinham igualmente outras finalidades, pretexto para conquistas amorosas regadas, por vezes, por generoso vinho. Várias classes reunidas, aqueles pertencentes à burguesia em seus matizes, os decantados “intelectuais”, assim como os portuários seguidores das cartilhas que vinham do leste europeu. Nessas reuniões havia sempre o receio de serem flagrados, mercê da ilegalidade, mas as discussões corriam soltas sobre temas concernentes à estrutura daquele núcleo, às doutrinações marxistas, aos debates sobre arte e literatura. A certa altura os temas voltaram-se igualmente à encenação de peça teatral e vários participantes encontravam nos ensaios momentos de autovalorização.

Para os que tiveram o privilégio de conviver com Gilberto sur le tard a narrativa tem uma cativante apreensão dessa participação do autor, quase sempre como um observador irônico, por vezes com fino humor, traços inalienáveis de Gilberto. Sendo “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” uma visitação às décadas longínquas vividas sob o ímpeto de uma juventude na idade madura, inserir um caso amoroso, “paixão arrebatadora”, entre o principal articulador, Rodrigo, e uma bela e misteriosa frequentadora, traria à pena de Gilberto um frescor narrativo nos seus mais de 90 anos. Não estaria o compositor a se divertir ao recordar e também dando asas à fértil imaginação?

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, Sonatina à la Mozart (1951), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ZO0-u5kU5c4

Na nonagésima década, a ironia gilbertiana estaria implícita nesse tratamento em que, ao não penetrar no âmago da doutrinação partidária, menos voltado aos fundamentos do núcleo do Partidão que deveriam ser a essência das reuniões, confere aos vários participantes da trama interesses tão alheios, com exceções. Meio século após, apesar de sempre ser simpático às teses da esquerda, assim como foi aberto a tantas tendências composicionais, Gilberto não tinha o menor pendor para o fanatismo ideológico e nos deixou uma grande lição nesse sentido. “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” é um exemplo.

Flávio Viegas Amoreira é escritor, poeta e jornalista. Em sua profícua atividade teve a grata ideia de homenagear Gilberto Mendes com um “esboço”, como ele bem afirma, de uma biografia almejada para 2022, ano do centenário do compositor. Literato, buscou concentrar nas páginas de “Gilberto Mendes – notas biográficas” (Santos, Imaginário Coletivo, 2021) as relações intensas do músico com poetas e escritores, contemporâneos ou não. Seis “prefaciantes”, em breves e precisas palavras, testemunham a admiração pelo homenageado, apreendendo facetas características do imenso Gilberto Mendes: Charles A. Perrone, “Concertos novo-musicais!”; Luiz Zanin Orichi, “O espírito livre de Gilberto Mendes”; Carlos Conde, “Um perfil (também) humano”; Edson Amâncio, “Gilberto Mendes”; João Carlos Rocha, “Carta a Gilberto”; Madô Martins, “Cabelos Brancos”. Essas expressivas apresentações dimensionam a proposta de Flávio Viegas Amoreira e enriquecem suas “notas biográficas”. É um outro olhar sobre o compositor, a evidenciar seu direcionamento voltado igualmente à literatura, à poesia em especial e ao cinema. Gilberto me confessaria que suas idas semanais para assistir aos filmes que escolhia levavam-no ao encantamento desde o instante em que, sentado ao lado de sua esposa Eliane, “que se tornou uma segunda mãe”, segundo Gilberto, as luzes se apagavam paulatinamente e os toques sonoros criavam o clima necessário.

As “notas biográficas” de Flávio Viegas Amoreira têm significado amplo. Fixa período fulcral na formação de Gilberto Mendes: “Aquele período, entre 35 e 40, foi ápice da década ideológica e concomitante ao período de formação estética de Mendes: geração inoculada com brilho de Hollywood mesclado ao cinema alemão, ainda não contaminado pelo nazismo, o advento do mercado editorial brasileiro com traduções de Freud, Mann, Brecht, o conhecimento dado aos trópicos de Fernando Pessoa, Marcel Proust, todos experimentos tributários de James Joyce, os romances de gozo e fruição de Somerset Maugham, Charles Morgan e a prosa conceitual de Chesterton e Audous Huxley, sem falar no onipresente Joseph Conrad”.

Entendê-lo nesse labirinto literário-poético, onde há o olhar atento de um cinéfilo absoluto, é missão complexa, assim como o foi no caso de Claude Debussy, que apreendeu um universo de tantas tendências antes de pender para o simbolismo sem o qual, apesar de certamente não explicar Debussy, não se pode compreender a formação de sua linguagem. Quantos não foram os poetas por ele visitados em suas sublimes Mélodies? Gilberto percorre esse caminho a abraçar tendências outras ao concretismo por ele tão fequentado. Amoreira comenta: “Sempre senti tão gêmeos o trabalho do poeta com o do compositor: extraímos do nada, absolutamente nada mais do que qualquer outro artista, pura entrega de alma para almas laçadas por uma perícia inconsútil e invisível. No começo o compositor nasceu poeta mesmo sem o poema escrito”. No caso das Proses Lyriques (1892-1893) de Debussy, o compositor seria o autor dos poemas. Louis Laloy, primeiro biógrafo de Debussy, escreveria em 1909 que “as mais aproveitáveis lições não lhe vieram da parte dos músicos, mas de poetas e pintores”. Se Flávio Viegas Amoreira assinala até o “autodidatismo” de Gilberto Mendes, a visão aberta ao mundo, fruto em parte dessa visão marítima de sua Santos tão amada a partir do fluxo de navios com todas as bandeiras, a diversidade da escolha dos poetas de correntes tão diversas atenderia à essência essencial do compositor, voltada ao universal.

Na substanciosa narrativa de Amoreira, após mencionar frase de Gilberto “Toda a arte é boa, está acima de critérios de qualidade”, lembrar-se-ia de frase de Schoenberg, transmitida ao seu amigo Robert Gerhard após ouvir o concerto para piano e orquestra de Grieg “Esta é a espécie de música que eu realmente gostaria de escrever”. Flávio Viegas Amoreira completa: “A música de Grieg, certamente um compositor menor, para os ‘classificadores’ implacáveis”. Essa arguta observação me faz recordar de um episódio que se deu em minha sala de aula na USP. Estava a tocar o 4ª Noturno de Gabriel Fauré quando Gilberto adentra, ouve até o final e me diz serenamente: “Daria toda minha obra em troca desse Noturno”. Lição de humildade vinda de um imenso músico! Em conversa recente com Eliane Mendes, disse-me ela que mais de uma vez Gilberto mencionou esse episódio.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, o 4ème Nocturne de Gabriel Fauré, na interpretação de J.E.M.:

https://embedy.cc/movies/UmMrbjZ3RFBhb24xb2VTa3NQOS8zaHpVWHFnSDErMkhEZERKZGUxODNxOD0=

Amoreira desfila em sua narrativa, nas passagens pertinentes, incontável lista de escritores, poetas, compositores, artistas plásticos e de teatro, amizades outras que trazem à luz o universo de Gilberto. Impressiona a abrangência de um músico interessado em todas as manifestações culturais e “políticas”, mantendo-se sempre solícito com todos que o procuravam. Observa: “Admirei de longe, desde sempre, Gilberto Mendes como uma celebridade artística nacional, pelas ruas de Santos em minha juventude, frequentando cinemas de mãos dadas com Eliane, caminhando pela praia… Sabia ser ele na música algo que eu gostaria de seguir na literatura: alguém entregue todo tempo ao seu ofício sagrado de criador”. Gilberto Mendes adaptou vários poemas do autor de “notas biográficas” para seu sinfônico “Alegres Trópicos, Um Baile na Mata Atlântica”.

Nesse contato permanente na cidade amada pelo músico e o poeta, uma frase de Flávio Viegas Amoreira evidencia algo não raro entre os tantos compositores sur le tard: “Mas também pude testemunhar seu desencanto com desvios da esquerda brasileira, sua preocupação ecológica crescente com destinos da Amazônia e o chorar com desastres como o de Mariana. Tinha perdido muitas  ilusões, mas ainda resistia por uma utopia muito particular de criação e motivação dos jovens”.

O centenário de Gilberto Mendes se aproxima. Certamente haverá uma série de tributos a ele prestados. Urge realizá-los.

In two recent publications, Gilberto Mendes is revealed in significant aspects of his life and work. In a short novel, Gilberto writes an autofiction depicting a tumultuous period in the 1960s, a narrative not devoid of humor. In a second book, writer, poet and journalist Flávio Viegas Amoreira provides biographical notes of great interest. As a friend of Mendes, he penetrates his poetic/literary universe, apprehending the composer’s choices. Next year we will celebrate Gilberto Mendes’ birth centennial.

Viagens significativas que deixaram lastro


Uma edição crítica da música deve ser feita com a colaboração estreita com os músicos,
evidentemente possuidores de uma cultura particular.

Na verdade, músicos-musicólogos e musicólogos músicos,
esta última categoria mais rara.
Há intérpretes musicólogos que trouxeram preciosa colaboração.
François Lesure
(Extraído de palestra na USP, 09/10/1997)

As três viagens do notável musicólogo francês François Lesure ao Brasil (1988, 1990 e 1997) estiveram sob a égide acadêmica. As duas primeiras tiveram como tema central Claude Debussy, pois François Lesure foi certamente o nome referencial na segunda metade do século XX, graças às  pesquisas aprofundadas que resultaram em inúmeros livros indispensáveis sobre o compositor; a terceira envolveu principalmente a avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo.

A agenda de 1988 foi intensa. Duas palestras, que deveriam ser realizadas no espaço uspiano, tiveram de ser transferidas à última hora, mercê de greve geral, movimento que ocorre quase todos os anos nas universidades estaduais paulistas. O saudoso Sígrido Levental, tão logo ao saber da paralização, cedeu a sala principal do Conservatório do Brooklin, por ele dirigido. Apesar de público pequeno, motivado pela súbita mudança de local, François Lesure discorreu sobre “Debussy – perfil e avaliação” (19/10), com a participação do flautista Antônio Carlos Carrasqueira, que interpretou do compositor, Syrynx para flauta solo. Interpretei Masques e L’isle joyeuse, criações de Debussy em 1904. No dia seguinte, Lesure ofereceu como tema “A musicologia hoje – propostas para um debate”.

Após as palestras, seguimos para o Rio de Janeiro, a fim de participar do “Ciclo Debussy (1918-1988)” promovido pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se estendeu de 7 de Outubro a 23 de Novembro com recitais de piano apresentados por Homero de Magalhães (Préludes, 1º e 2º livros), Esther Naiberger (Suite Bergamasque, Images I e II), Sonia Goulart (12 Études) e por mim (15 peças avulsas, Images oubliées e La Boîte à Joujoux). A palestra de François Lesure versou sobre “Debussy – Perfil e bibliografia crítica”. O saudoso pianista Heitor Alimonda e eu ilustramos a palestra interpretando a Symphonie en si mineur e Triomphe de Bacchus para piano a mãos (24/10).

Depois das atividades no ensolarado Rio, François Lesure e eu visitamos a neta do compositor Henrique Oswald, a saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro e, como sua morada ficava no Leblon, bem perto do mar, François quis pisar nas areias famosas do Rio de Janeiro. À tarde estivemos com sua amiga, a notável musicóloga Cleofe Person de Mattos (1913-2002).

Em 1990, François Lesure esteve no Brasil para compor a comissão julgadora de minha tese de livre docência, sob o título “O idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”, defendida na Universidade de São Paulo. Nos poucos dias subsequentes realizou encontros com professores e alunos do Departamento de Música, salientando com ênfase objetivos precisos para as elaborações de teses e insistindo que uma tese não pode nem deve ser propósito único de ascensão na carreira. A seguir gravou programas para “Tempo de Concerto” da Rádio USP-FM.

Quando da avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo em 1997, François Lesure participou, como membro estrangeiro, da equipe de professores designados para esse mister. A visita possibilitou sugestões importantes para o aperfeiçoamento dos cursos oferecidos. Após a avaliação, Lesure proferiu palestra e ouviu considerações de professores, alunos e visitantes, sempre com o precípuo desiderato de transmitir experiências didáticas relevantes e praticadas em vários países da Europa e Estados Unidos. Igualmente abordou outros temas concernentes à musicologia, pesquisa, bibliografia, assim como teceu observações concernentes à prática musical, teoria e metodologia de estudo.

Tendo traduzido e gravado o encontro, inseri as perguntas e respostas formuladas por professores, alunos e convidados na “Revista Música” da USP (vol. 8 – Maio/Novembro, 1997), transcrevendo neste espaço algumas de suas considerações, assim como excertos das entrevistas que François Lesure gentilmente concedeu ao “Tempo de Concerto”, que eu apresentava na Rádio USP-FM (1994-2008) às terças-feiras e que foram ao ar em quatro programas no mês de Novembro daquele ano.

Destaco inicialmente seu entendimento sobre a relevância da musicologia na universidade: “Chamo a atenção para que a musicologia não seja esquecida ou o seu papel diminuído na universidade em detrimento da prática instrumental, dado o fato de o sistema daqui ser bem diferente daquele exercitado na Europa, em especial. Estou convencido de que a musicologia é um complemento indispensável tanto para os músicos como para os intérpretes em geral, mesmo em se considerando os rumos outros empreendidos por um músico”.

Sobre o repertório não frequentado, Lesure tem opinião firme voltada à sua qualidade: “Quanto ao problema do repertório dito ‘esquecido’ e que se encontra depositado nos arquivos, penso que há sempre um perigo. Primeiramente, relativo a musicólogos que estudam esse repertório ‘oculto’, mostrando-se por vezes indulgentes quanto ao valor intrínseco desses manuscritos ou edições; em segundo lugar, concernente aos pesquisadores que fazem teses sobre músicos de um segundo escalão, tendendo a magnificar as obras estudadas. Nestes casos, existe a permanente tendência a decepcionar o público, que se interroga, enfim, se valeria a pena recuperar tais músicas”.

A uma pergunta sobre a qualidade, Lesure considera a questão instigante: “Cada um elabora os níveis de qualidade. Contudo, pessoalmente, se tiver de escolher uma peça de salão de 1830 e uma missa de Guillaume de Machault, do pleno século XIV, tenderia a escolher esta última”.

Outra questão levantada precisava a repercussão da obra de Villa-Lobos em Paris. Lesure respondeu: “poderia dizer que Villa-Lobos foi muito tocado logo após a 2ª Grande Guerra e, em parte, pelo que de interessante suscitava um compositor brasileiro. Saliente-se que, para muitos dos franceses, Villa-Lobos era o único compositor do Brasil conhecido. Hoje ele é menos tocado, digo sempre, em França. Não teria explicações claras para dar; porém, haveria a necessidade de se conhecer o que as instituições nacionais têm feito no sentido de promover a difusão da obra de Villa-Lobos no Exterior. E, por consequência, de outros autores brasileiros”.

Precipuamente a respeito de uma conciliação da prática interpretativa com a musicologia, diz François Lesure: “Os senhores se encontram numa posição que chamaria de exceção no sistema. Na universidade francesa não há o instrumental para a prática. Se tanto, um piano, um aparelho de som, outro mais, mas não o ensino específico do instrumento”. Lesure mencionaria excepcionalidades, como as existentes em determinadas secções na Provence e cita Tours, que mantém um conjunto de música antiga dentro da universidade. Contudo, considera que “a estrutura existente não favorece a direção nesse sentido, ou seja, a estreita ligação musicologia-interpretação”. Observaria que “em França, nestes últimos 20 anos mais precisamente, toca-se tanta música do período barroco, nem sempre a melhor, que hoje se pode falar em saturação. Há muitos grupos de música barroca que apresentam, por vezes, repertório de nível discutível e, em certos casos, enfadonho, julgo eu”.

Quanto às gravações visando aos programas para a Rádio USP-FM, tive o cuidado de buscar alternativas às questões propostas pelo público na entrevista do dia 9 de Outubro. Até em perguntas limítrofes ao exposto na palestra houve, por parte de François Lesure, abordagem outra enriquecedora. O insigne convidado comentou perguntas por mim formuladas a respeito de suas pesquisas sobre Debussy que focalizaram a vida, a obra e a busca incessante da atividade epistolar do compositor. Sobre sua biografia, exposta em dois livros mencionados no blog anterior, Lesure considerava naquele 1997: “há 25 ou 30 anos não se publicava uma biografia mais atenta, que privilegiasse as descobertas recentes. Em alguns assuntos, tive de partir basicamente do zero. Tentei mostrar Debussy na medida do possível a cada dia de sua trajetória e, nessa caminhada, algumas lendas criadas em torno do compositor foram demolidas, graças à precisão documental. Certamente, esta não é a última biografia sobre Debussy, mas penso que, pela primeira vez, um Debussy mais verídico, mais próximo psicologicamente da realidade foi retratado. Entenda-se, o temperamento e o caráter do compositor não são fáceis de serem decifrados. Não estou seguro de ter atingido completamente os objetivos, mas acredito que os esforços empreendidos aproximam-nos de uma maior realidade” (tradução: J.E.M.).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M. :

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

A respeito da profícua atividade na Bibliothèque Nationale, François Lesure, que esteve ligado durante 38 anos à Instituição, sendo que 20 anos como chefe do Departamento de Música da B.N., tem considerações de grande interesse: “A B.N. remonta a Charles V, ou seja, ao século XIV e é grande a herança que pesa sobre a Instituição. Creio que, se colocarmos os documentos da B.N. sobre uma estrada, manuscritos e livros, um após o outro, poderia dizer que teríamos uns sete quilômetros de música!” Tem consciência de que nem todas têm a mesma qualidade, “mas há tesouros a serem descobertos. Não quero dizer com isso que temos nesse tesouro uma ‘segunda’ Nona Sinfonia com coral de Beethoven ou então uma nova Sinfonia Fantástica de Berlioz”.

Quanto ao perfil daqueles que buscam a B.N., Lesure pondera: “Prioritariamente têm perfis científicos; bibliotecários e musicólogos, pois esses são os pesquisadores no sentido estrito da palavra, mas também os músicos. Como exemplo, aqueles que encontraram um problema numa partitura, seja pelo fato de acharem que uma determinada nota é duvidosa ou que uma passagem suscita ambiguidade. Conheci regentes que vieram verificar um documento autêntico. Temos aí uma prova de profissionalismo raro da parte de músicos praticantes que se dirigem à B.N.”. François Lesure enfatizaria a necessidade absoluta de o intérprete buscar fontes fidedignas através das edições críticas, pois são muitas as edições que não partiram do exame minucioso dos manuscritos que se encontram no mercado, por vezes eivadas de erros.

Creio que as três visitas do ilustre musicólogo foram extremamente proveitosas para aqueles que souberam apreender seu pensamento voltado ao rigor da pesquisa, à ausência absoluta da vaidade quanto às descobertas, à generosidade plena para com todos aqueles pesquisadores que o procuraram para aconselhamento. Sempre aberto aos objetivos claros dos pesquisadores, ajudou-os nessa busca sem fim em direção ao conhecimento. François Lesure, uma figura exemplar.

François Lesure’s three visits to Brazil (1988, 1990 and 1997) were remarkable. In this post I comment on the activities of the illustrious musicologist in our country, mentioning excerpts not only from one of his lectures at the University of São Paulo (USP), but also from the programs recorded for Radio USP-FM.