Navegando Posts publicados em agosto, 2021

Posicionamentos de leitores atentos e outras considerações

A grande diferença entre um homem do Renascimento,
com seu gênio plural, com sua infinita capacidade de ciência,
de arte, de política, de guerra, de violência e de amor,
de realidade e de sonho, e nós, especialistas,
cada vez sabendo mais de menos, está em que dentro deles,
por um século, o medo se abolira, não o medo de prisões,
de feridas ou de mortes,
que é esse o menos mau,
mas o medo de ser, na plena, na inesgotável riqueza que se é.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(Dispersos)

“A iniciativa privada tem muitos atributos,
possibilidades de intervir na cidade, mas não tem nem pode ter
a responsabilidade de definir os rumos que ela vai tomar”.
Sérgio Magalhães (1944- )
(arquiteto e urbanista)

O tema suscitou uma série de mensagens, todas contrárias à desmesurada sanha das incorporadoras. Uma presencial, curta mas incisiva, levou-me a reflexões. Um morador da nossa já ex-cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, espaço onde moradores se confraternizavam durante andanças, gosta das corridas de rua como eu. Cruzei com ele em nossos treinamentos e, após breve conversa, continuei a correr no sentido inverso. Morando em um apartamento depois da derrubada de sua morada, afirmou que as incorporadoras não pensam na desestruturação dos desalojados.

Nas tantas ofertas que meus vizinhos e eu recebemos nesses últimos anos, jamais o lado humano foi ventilado. Interessam às incorporadoras dimensão do terreno e as condições para elas mais vantajosas na negociação. Para tanto, empresas têm setores especializados, estreitamento de prazos para desocupação desde que as documentações estejam em ordem, mas… e o ser humano? Este não conta, ele é apenas e tão somente um elemento do processo, descartado após conclusão das negociações, na empreitada cujo desiderato final é o lucro. Teriam as incorporadoras psicólogos nos seus quadros para o acompanhamento dos ex-moradores? A elas interessa seguir o day after deles, dramático para muitos, já que a diáspora individual subentenderia apreensões diferenciadas quanto à desestruturação? Li anos atrás num noticiário sobre o suicídio de um casal nonagenário que, dias após deixar sua morada, buscou o ato trágico, impossibilitado de adequação à nova realidade. Essa ausência mínima de sensibilidade por parte de tantas incorporadoras – haveria exceções? – põe à mostra um lado até cruel nessa civilização do espetáculo e da impessoalidade.

Selecionei três mensagens, que bem retratam aspectos acelerados da sanha das incorporadoras a sobressair sobre quaisquer outros objetivos mais humanos.

Gildo Magalhães, professor titular da FFLECH, USP, comenta: “Seu blog de hoje ficou excelente! Objeto que foi de nosso saudoso café desta semana, é certo que há saudosismo, porque temos saudades do que era bom, mas há nele também considerações técnicas valiosas: onde está o planejamento urbano, que de um lado deveria assegurar a beleza e eficiência das transformações, de outro lado garantir o provimento das expansões da infraestrutura de água, energia, transportes públicos (incluindo o próprio viário urbano para automóveis!), saúde, educação, áreas verdes e tantas outras condições de qualidade de vida? Lembro-me do setor de planejamento do Metrô, onde trabalhei, e onde se tentava equacionar tantas condições urbanas – nele trabalhavam arquitetos, engenheiros, cientistas sociais, hoje desfibrado e sem voz perante os ditames do neoliberalismo, que só enxerga cifrões à frente. E onde está a universidade, que deveria estudar e discutir esses problemas?”.

Eliane Mendes (formada em Química e Ciências Físicas e Biológicas pela Universidade Católica de Santos, é viúva do compositor Gilberto Mendes): De fato, se construímos cidades ruins é porque somos ruins também, como coletividade. Lembro-me de alguns anos atrás, quando a prefeitura podou as árvores da minha rua de uma maneira avassaladora, quando então, comentando com os vizinhos sobre aquela irracionalidade toda, deixando-nos sem sombra no verão, numa cidade tão quente como a nossa, para minha surpresa apenas uma vizinha concordou comigo. Todos os outros acharam muito bom ver a rua mais livre da presença das árvores, apoiando a iniciativa da prefeitura.

Aliás, vendo Santos lá de cima do Morro da Nova Cintra, só vemos cimento, com o verde das árvores praticamente não existindo mais. Havia uma lei estabelecendo que não poderia ser construído nenhum prédio com mais de 12 andares, pois o solo de Santos é instável, mas uma lei recente liberou o número de andares, dizendo que, como não há mais espaço para a cidade crescer horizontalmente, ela deve crescer verticalmente (????).

Vi recentemente uma reportagem na TV alemã sobre o mesmo acontecendo lá com os moradores, assim como no seu bairro, com as construtoras pressionando os moradores que venderam suas casas e até desapropriando, com as pessoas chorando, não tendo direito de permanecer nas casas onde habitavam há anos, mesmo tendo a escritura. O pensamento coletivo é sempre destrutivo, pois a Lei dos Homens é sempre matéria, cruel, destrutiva e gananciosa”.

Flávio Viegas Amoreira (escritor, poeta e crítico literário) escreve: “depois do rastreamento do poder criativo tranZmoderno: a música como resistência ao niilismo de significação, o percepto reinventado em modo de composição: JEM nos dá a medida do amplo arco que toca e move o artista enquanto farol ( Pound ), não só o poeta é farol, até porque em suas crônicas-reflexões JEM também, enfatizo, é carregado de poeticidade (Pound again! ); aqui ele restitui o artista-pensador que também referencia a arquitetura como fonte de pertencimento ou não, convergência ou não, a arquitetura no coletivo, o urbanismo medida do ‘ethos’ global em bases comunitárias, onde se vive, onde se faz sujeito ou não, abdicando ao peso da desmedida em nada humana da ágora perdida…  Sempre que leio esses questionamentos contundentes volto ao filósofo contemporâneo que mais leio e mais me reflete : ‘A percepção só pode ser concluída num repouso contemplativo (Biung Chul-Han)’. Sampa é a cidade mais deleuziana do planeta: metonítimica não metafórica, ainda busca eixos de horizontalidade agregadora, ‘topos’  de alteridade física e anímica: gosto que me enrosco de Sampa até porque tenho uma mirada da borda: marítima, santense e os que melhor pensam Sampa são os que se colocam num distanciamento telúrico ou provocado: quem é do mar tem medida da opressão provocada pela verticalização sufocante: busca-se nesse sem-horizonte…. Saúdo texto desse sábado porque hoje é sábado (como diriam Lorca & Vinícius) e dia de amanhecer com presente de JEM !”.

O competente homem público Philip Yang, fundador do URBEM, instituição dedicada à estruturação de projetos urbanos, enviou-me mensagem com link através do qual o leitor poderá ter percepção maior dos problemas urbanísticos das grandes cidades durante entrevista que concedeu juntamente com Eduardo Giannetti à jornalista Ana Paula Padrão:

https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=rm&ogbl#inbox/WhctKKWxcMhSltRnrNXJHzvcljdtFvNZgmgPrJBwBhnhtKXklTpHbVVgwJzpmXcFvZQWBWv

Décadas passarão. Vista bem das alturas, a edificação descontrolada assemelha-se ainda aos grandes bolsões irregulares de cimento, pois a verticalização ainda não atingiu a cidade como um todo. A visão mais próxima revela a absoluta falta de simetria quanto à disposição dos prédios e ao número de andares. O erro maior pode ter sido transferir a verticalização para a iniciativa privada no que concerne a projetos rigorosamente exclusivos por ela traçados e alheios a qualquer planificação urbanística, algo que deveria ser competência do Estado. Houvesse essa orientação numa São Paulo cada vez mais desordenadamente verticalizada, a visão das alturas mostraria uma cidade harmoniosa. No todo temos um grande quebra-cabeças onde as peças não se encaixam.

I have received many messages with comments on the previous post (verticalization of the city of São Paulo). I publish three of them, together with my view on another aspect of the subject, virtually ignored by real estate developers: the human factor during the negotiation process between the parties involved.

 

Quando interesses ignoram o passado e desprezam o futuro

On mène toute sa vie pour construire sa maison.
Dunoyer de Ségonzac, pintor (1884-1974)

“São Paulo precisa parar de crescer”. Essa célebre frase, proferida pelo engenheiro e político José Carlos de Figueiredo Ferraz (prefeito de São Paulo entre 1971-1973), contrastaria com outra de 1940, bem festeira: “São Paulo não pode parar”.

A verticalização da cidade tem sido avassaladora nesses últimos decênios. Atesta a assertiva a diminuição progressiva das construções horizontais que, em determinados bairros, já não mais acontece, pelo contrário, rapidamente desabam frente à investida das incorporadoras.

Entende-se que a construção civil emprega legião de trabalhadores em todas as maiores cidades do país. Essa realidade, se benfazeja, a propiciar um alento frente ao desemprego na área específica, não atenta aos problemas nunca devidamente enfrentados pelos sucessivos governos, como mobilidade urbana, saneamento básico, segurança e tantos outros. Avassaladoramente destrói-se o passado e resquícios existem para sofrivelmente testemunharem que São Paulo teve uma história. Se o Convento da Luz (século XVIII) e umas poucas igrejas antigas do centro histórico conseguiram atravessar mais de dois séculos, os casarões da Avenida Paulista, construídos nas fronteiras dos séculos XIX-XX, desapareceram, restando tristes mansões perdidas num emaranhado de prédios rigorosamente desiguais, calçadas sujas, frequentação imensa de todas as classes sociais, onde não falta legião de punguistas.

A disputa das incorporadoras por espaços em São Paulo e o boom imobiliário que se acentua fizeram desaparecer nosso minguado passado. Saudosista certamente, estou a me lembrar da Avenida Paulista entre os anos 1954-1955, período em que estudei à noite no Liceu Eduardo Prado, que ficava na esquina da Paulista com a rua Pamplona. As aulas findavam às 23:45 e tranquilamente ia a pé até a frente do Instituto Pasteur, a fim de pegar o bonde. Belíssima avenida com suas frondosas árvores e sem a menor possibilidade de, ainda bem jovem, ser importunado por meliantes.

A razão deste post fora das temáticas que abordo advém da atual derrubada sistemática e devastadora de alguns bairros que mantinham certa tradição de um passado recente. No que tange aquela que, com prazer, denominava neste espaço como sendo minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, que se desenvolveu basicamente desde as primeiras décadas do século XX, um verdadeiro “tsunami” se processa.  Lembro que no Brooklin-Campo Belo houve forte influência germânica em tantas dessas antigas casas.

Como observador, de minha janela verifico que moradas com as quais convivi durante 58 anos, conhecendo sucessivas gerações de moradores, desapareceram repentinamente. Gigantescas retroescavadeiras em um ou dois dias colocaram abaixo imóveis que levaram meses, por vezes anos, para serem construídos. Fazem-me lembrar grandes dinossauros pelo tamanho e ruídos estrondosos. Em poucas semanas, todo o entorno, que corresponde a três quadras inteiras, foi destruído e a montagem de aparatosos estandes de vendas se processa.

O “…parar de crescer” vaticinado pelo alcaide com olhar para o futuro não é sequer imaginado pelas incorporadoras. Não há a menor intenção por parte desses grandes empresários de se pensar nas gerações futuras numa cidade como São Paulo. Importa o lucro e, tão logo financiamentos aprovados e concluída a construção, determinado prédio foi apenas… mais um. A realidade brasileira, mergulhada num lamaçal de corrupção, sem punição exemplar pelo judiciário, provoca incertezas. Incontáveis financiamentos poderão, a médio prazo, deparar-se com a insolvência dos esperançosos compradores. Exemplos recentes acima do equador não estão servindo como alerta do que poderá ocorrer; 2008 não foi esquecido. Alguns economistas atentos já apontam para impasses futuros.

Quando pensamos em cidades como Paris, cujos prédios do centro urbano podem sofrer reformas, sem ultrapassar, contudo, a altura de seis ou sete andares, ficando as grandes edificações restritas à periferia, tem-se um exemplo sensível. Contrasta o prédio da Tour Montparnasse, considerado um monstrengo pelos parisienses mais conservadores. Incontáveis cidades europeias preservam a organização urbana. Incontáveis.  Não obstante, estamos a escrever sobre cidades planejadas e com meios de transporte de excelência, frise-se, e com organização social disciplinada, fundamentos essenciais inexistentes em São Paulo. Estou a me lembrar da primeira visita do notável musicólogo francês François Lesure a São Paulo. Fui buscá-lo no aeroporto e, no trajeto até um hotel na Rua Augusta, mostrou-se confuso com a desorganização urbanística da cidade, pois, independentemente das moradias à beira da rodovia, chamou a atenção do musicólogo a falta de padronização dos médios e grandes edifícios.

A drástica crise de água, que se acentua anualmente, terá certamente um trágico desfecho, a corroborar a célebre frase de Figueiredo Ferraz. Está-se a captar água para São Paulo de regiões sempre mais distantes. Até quando? Sob outra égide, os rios que atravessam São Paulo constituem verdadeiros depósitos de lixo, sendo que o Pinheiros atravessa parte essencial de zona denominada “nobre” da cidade. Adensar de maneira voraz a população urbana através da verticalização poderá trazer consequências dramáticas.

Moramos na mesma casa há 58 anos e aguardamos. Estudos estão sendo feitos para que o entorno de nossa morada entre num projeto em andamento, mas a aguardar a regularização de documentos de uma das moradias. Quando finalizadas as conversações com a maioria e acertadas as condições, nada poderemos fazer, sob o risco de ficarmos em uma ilhota cercada dos lados e pelos fundos por edifícios. Aceitar a realidade, hélas. Pressionado pelo “progresso”, a sensação que nos assola é a da palavra diáspora, interpretativa, pois pode muito bem ser aplicada ao movimento “expulsório” que já determinou a mudança de centenas de moradores de minha “ex” cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, espaço que me é ainda tão caro, mas que se esvai entre os dedos a dar lugar aos espigões. Após mais de meio século na mesma morada, entendo bem as palavras do notável arquiteto Le Courbusier (1687-1965): “O lar é o templo da família”. Quantos não tiveram, sem vontade alguma, de buscar a reestrutura?

Nesses últimos anos, recebemos pelo menos uma vez por semana ligações de incorporadoras. Uma delas inclusive, sem pudor algum e sem que com ela tivéssemos qualquer prévio relacionamento, enviou, aos meus vizinhos e a mim, carta com nossos CPFs, fixando preço a ser pago e com os nossos nomes para as assinaturas sacramentais!!! Essa atitude não é rara e indica uma sanha inominável.

Já não mais acredito na possibilidade de uma solução urbanística para São Paulo, apesar de especialistas renomados da área acreditarem. Há não muito tempo, reportagem em um dos portais da internet sobre prédios luxuosíssimos na região do Morumbi evidenciava que o crescimento de Paraisópolis fez decrescer sensivelmente os preços de apartamentos da região fronteiriça à comunidade. Um morador confessava que se sentia enclausurado em seu luxuoso apartamento, que estava à venda muitíssimo abaixo do real valor.

Sob outro aspecto, a proliferação de prédios está a extinguir os serviços básicos que mantêm a pulsação de uma cidade. Desaparecem as pequenas e diversificadas oficinas, os cafés, padarias e outros serviços que atendiam muito bem seus frequentadores. A verticalização acelerada faz com que muitas vezes moradores tenham de se utilizar de seus veículos para o deslocamento aos supermercados, shoppings, etc. Está a se perder esse intercâmbio social.

Meu prezado amigo Flamínio Fichmann, arquiteto, urbanista e consultor de mobilidade urbana, afirma em entrevista ao jornal “a Quadra” (Agosto/Setembro 2021), que aborda temas complexos sobre adensamento construtivo e populacional, assim como meios urbanos de transporte: “o trânsito certamente será afetado. Quando fazemos essas análises, não consideramos apenas os moradores, mas também os prestadores de serviços, empregados domésticos, carga e descarga, embarque e desembarque… Então são polos de geração de viagens que produzem um volume de tráfego muito maior do que simplesmente a população e os pequenos comércios que habitam esses locais.”

Meu também distinto amigo Philip Yang, urbanista e fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole – Urbem, entrevistado para o mesmo jornal “a Quadra”, tem uma visão otimista quanto à verticalização: “Um mix de diferentes produtos imobiliários – em empreendimentos que aproximam espaços de trabalho, moradia, serviços e entretenimento – certamente abre mais oportunidades para as pessoas concentrarem sua vida em seus próprios bairros”. Continuando, considera que “Infelizmente, hoje o público tem em geral uma opinião negativa em relação à verticalização, pois a associa unicamente a mais trânsito e aglomeração. Mas há muito mais benefícios que prejuízos quando a verticalização acontece dentro de um processo de desenvolvimento urbano em que a infraestrutura geral – de transporte, comunicações e saneamento – avança junto com a construção de prédios”.

Em conversa com Philip Yang, após texto esboçado, colhi dados do dileto amigo, transmitindo-os ao leitor: “Um dado alarmante da urbanização é o fato de que em 2030 a mancha urbana terá triplicado de tamanho. Ou seja, entre 2001 e 2030 nós produzimos mais cidades do que em 10 mil anos, do Neolítico até o ano 2000. São dados da geógrafa Karen Seto, que diz que o espraiamento (o não-adensamento) tem consequências ambientais dramáticas”. Prossegue: “Gosto sempre também de dizer que a cidade projeta no território aquilo que somos e o que queremos ser coletivamente. Se construímos uma cidade ruim é porque, como coletividade, somos ruins também. Precisamos tratar de construir algo melhor…”. Sobre a memória, considera: “A memória é fundamental para uma coletividade, pois é o que nos faz crer que temos um passado e um futuro comum. Sem esse sentimento, não há sociedade; a memória é o elo que nos liga do passado ao futuro como cidade e nação, como um grupo coeso. Dentro de tantos dilemas que temos como sociedade, a preservação da memória é algo inegociável.

Reitero minha posição de observador e acredito que o restante da hoje pobre memória construtiva da cidade está a ser destruído com voracidade, pois bairros residenciais estão vindo abaixo numa velocidade inédita, mormente, no caso, a região do Brooklin-Campo Belo. Sem entrarmos no mérito artístico desses resquícios, sucessivos governos de tendências diversas não atentam para o problema de determinadas preservações. Recentes museus arderam e o do Ipiranga tem reforma que se prolonga há anos de maneira inverossímil!!!

Se meios de transporte rápidos e condignos existissem, amparados por segurança, grandes edificações poderiam ser erguidas em espaços ainda disponíveis no entorno da cidade. Alphaville foi uma das alternativas; mas, sem meios condizentes de transporte público, tem problemas viários sérios. Todavia, é mais simples destruir o que resta de São Paulo com a anuência sucessiva de nossas autoridades. Temo pelas gerações futuras.

The verticalization of the city of São Paulo is accelerating rapidly, especially in certain neighborhoods. In the 1970s, the Mayor Figueiredo Ferraz already pointed out that “São Paulo should stop growing”. If future governments fail to develop comprehensive plans for the use of space, accompanied by high-quality public services, insoluble problems may arise from this uncontrollable growth.

 

 

O compositor Ricardo Tacuchian e a maturidade plena

O contingenciamento de recursos para a música clássica
é um crime que se perpetua contra as futuras gerações,
contra as camadas mais humildes da população
e contra o nosso status de país civilizado.
O congelamento ou corte de verbas para a cultura em geral
e para a música clássica em particular
já está nos cobrando um custo social alarmante.
Isto sim, é preconceito, é elitismo, é discriminação
às camadas menos favorecidas da sociedade.
Agora, mais do que nunca, precisamos da Música Clássica.
Ricardo Tacuchian
(aula inaugural)

Proferir uma aula inaugural em curso de pós-graduação exige competência do professor convidado, precedido pelo acúmulo de conhecimento. Essa assertiva estabelece de imediato a integração entre o Mestre e os ingressantes aos cursos de pós-graduação. Prefiro a palavra Mestre a qualquer outra da carreira universitária, pois, apesar de indicar o início da jornada na pós-graduação, através da história Mestre sempre designou a excelência máxima. Minimizaram-na.

Ricardo Tacuchian é um dos nossos mais importantes compositores e um dos mais lúcidos pensadores. Sua obra tem sido interpretada no Brasil e em vários países do mundo, sempre a ter recepção condigna. Extensa, sua produção abrange inúmeros gêneros. Para aquelas destinadas a conjuntos orquestrais, Tacuchian se mostra um regente competente. No magistério, Ricardo Tacuchian formou inúmeros músicos, que hoje atuam com dignidade em tantos rincões.

Convidado pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), ministrou a Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Música da Instituição de Ensino e, entre os vários temas de grande interesse abordados, a problemática da Música na atualidade é tratada. Antes de abordar algumas reflexões de Tacuchian, diria que a transmissão através de sua larga experiência revelou a independência do pensar e o olhar a atualidade musical com singular acuidade.

Com preocupação, Tacuchian observa o desmilinguir das instituições e, apoiando-se na teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), corrobora o posicionamento de uma modernidade líquida, a contrastar com a modernidade sólida do passado. Essa assertiva pode ser constatada mormente nas áreas da cultura em geral e da sociologia.

Tema que debatemos inúmeras vezes neste espaço refere-se à apreensão que o ouvinte tem de determinada obra. Tacuchian observa com agudeza: “Não existe nada mais fluido do que a música. Ela desaparece quando termina a performance. Se, numa primeira audição, deixa-nos uma forte impressão, esta pode diminuir com o passar do tempo. O tempo, por sua vez, é outro conceito fluido que sempre desafiou os filósofos e cientistas. Às vezes, a impressão causada por uma primeira audição musical se intensifica com o tempo; outras vezes, esta primeira se reduz ou até desaparece”. Lembraria o pensamento do ilustre regente Ernest Ansermet (1883-1969) ao considerar que, para uma obra se manter na memória do ouvinte, haveria a necessidade de parâmetros como melodia, ritmo e outras referências que o induzem a reter o que ouviu. Verifica-se, sob outra égide e em quantidade incalculável, que a maioria das apresentações de criações contemporâneas se restringe apenas a uma primeira audição. O compositor francês Serge Nigg (1924-2008) não afirmaria que sentia frio na espinha ao verificar que, num Festival de Música Contemporânea, haveria 80 primeiras audições mundiais?

Tacuchian tem clareza ao considerar a importância da Pós-Graduação em termos de orientação na trajetória de um postulante à dissertação ou tese. De sua posição “Na verdade, depois que terminamos uma graduação, entramos na fase de pós-graduação para o resto da vida”, diria que nos deparamos com duas categorias de pós-graduandos. Há aquele que desenvolverá seu trabalho acadêmico a focalizar um tema que jamais será abandonado em sua trajetória de vida. Continuará o aprofundamento, enriquecendo seu acervo cultural sobre a temática. Isso não exclui um olhar para outros temas que surgirão pela frente e que caminharão paralelamente a um ou mais focos de atenção. O que é deplorável é a verificação, tão comum, de pós-graduandos que escolhem um tema qualquer a objetivar apenas a ascensão na carreira. Em blog bem anterior (vide “O Drama da Pós-Graduação”, 21/06/2007) comento o caso de um ex-aluno que encontrei tempos após sua conclusão de mestrado. Perguntei-lhe como estava a desenvolver a temática depois da conclusão do mestrado, recebendo a resposta que “jamais voltaria àquela temática que me cansara tanto” e que estava tentando uma bolsa para o doutorado! Esses “pós-graduandos” existem, não são poucos e, infelizmente, as universidades estão abarrotadas em seus almoxarifados de dissertações e teses que jamais serão consultadas. Tacuchian aponta os percalços para que objetivos sejam atingidos: “E nesta jornada enfrentaremos uma série de desafios conceituais e de pesquisa, alguns contratempos e muitos imprevistos e surpresas. Nos cursos de pós-graduação propriamente ditos uma visão holística dos focos de estudo deve ser uma preocupação do investigador”. Concordo plenamente com Tacuchian a abraçar esse termo utilizado em Portugal à palavra pesquisa, hoje vulgarizada para quaisquer outros trabalhos acadêmicos.

A partir de uma observação fulcral de Tacuchian  “Em geral, um curso de mestrado visaria mais à organização do conhecimento, enquanto o doutorado seria a criação de conhecimento. Entretanto, os limites entre estas duas áreas às vezes se superpõem” —, consideraria uma poética visão de meu saudoso amigo Guido Soares, professor titular de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP. Dizia ele que no mestrado entramos numa floresta e observamos plantas e árvores, no doutorado entramos novamente e focalizamos uma árvore em especial, dissecando-a e, na livre-docência, sobrevoamos a floresta já com o conhecimento possível do todo.

Após mencionar Mario Vargas Llosa em obra capital, La civilización del espectáculo, ao escrever que “o conceito de cultura se estendeu tanto que passou a abranger tudo. E, se a cultura é tudo, também já não é mais nada”, Tacuchian comenta, a questionar: “a palavra Cultura foi sequestrada para a expressão Cultura de Massa ou Indústria Cultural, que funciona com o conceito de produção em série. Mas a obra de arte não seria, antes, a peça única e nunca uma fordiana produção em série?” Entende obsoletos os vários e calorosos debates em torno da criação musical nos meados do século XX, mercê do “sectarismo estético e da arrogância da ‘certeza’, pois todos eles ficaram superados em nossa era da incerteza”.

Da experiência com o experimentalismo, desde os ensinamentos que captou  de Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), Tacuchian compreenderia com o tempo que a instantaneidade não era seu caminho: Tece reflexões sobre o experimentalismo: “Uma de suas principais teses é que o principal critério de valor da obra de arte seria o uso do signo novo. O artista deveria dar as costas para toda a tradição e partir para a aventura do desconhecido. O grande mestre não considerou uma questão capital, que foi apontada pelos semiólogos da época: uma das características do signo novo é o seu envelhecimento precoce. Assim, uma música experimental em sua primeira audição se tornava velha logo em seguida, e saía do repertório. Ia do espanto para o esquecimento ou do impacto para o déjà-vu. Havia compositores que afirmavam que a música era como se fosse um pão do espírito e deveria ser consumida, sem deixar vestígio para a posteridade: ‘O pão nosso de cada dia’ que desapareceria depois de devorado”.

Desesperançoso com o experimentalismo que, pelo sectarismo que distanciava o compositor do público, aquele a não se importar com a recepção deste, Tacuchian considera que “O criador não se submeteria às exigências meramente mercadológicas, mas representaria os anseios de uma determinada parcela do público. Esta parcela seria aquela que tivesse os mesmos anseios estéticos de cada criador. Assim, o compositor escreveria música para um público que ele escolheu e não vice-versa. Assim, ficaria preservada a independência estética do artista e a sua comunicabilidade com o ‘seu’ público”. Há não muito tempo li entrevista de um compositor eletroacústico a dizer que sabia bem que escrevia para um público determinado, pequeno, um gueto.

A partir do início do século, Tacuchian confessa que “não precisaria seguir uma determinada corrente estética” e afirma seu desiderato na busca da “criação de uma música simbólica e mais humana, isto é, ligada aos anseios psicológicos e sociais do homem moderno; e, last but not least, a ênfase no idiomatismo instrumental com exploração de todos os recursos naturais do instrumento e/ou da voz e suas possíveis extensões”.

A seguir, Tacuchian aborda métodos de trabalho a fim do aprofundamento e suas palavras refletem a experiência de décadas de uma constante prática na criação e na didática. Considere-se a constância, o não abandono de metas propostas: “Se um especialista para de investigar por um longo período, quando voltar à prática da criação ou organização de novos saberes vai perceber que sua mão está pesada e que as ideias não fluem com a mesma naturalidade de antes”. Essa assertiva ocorre em todas as práticas, sejam elas voltadas às artes, aos esportes, à vida. Estou a me lembrar de meu saudoso pai, que insistia na repetição de termos chaves: método, disciplina, perseverança, concentração.

Tacuchian faz crítica àqueles que menosprezam a cultura denominada “de elite”, acreditando nas lições da história, determinando “que é nos momentos de crise que o homem comum mais necessita das grandes manifestações do espírito para aplacar as dores da realidade”.

Sobre a eterna insatisfação de um criador, sempre a pensar em nova obra, em como ter um objetivo que, a princípio, está envolto em névoas que se dissipam no decorrer da caminhada, Ricardo Tacuchian conclui: “Vocês podem me perguntar se estou satisfeito com estes objetivos. Eu responderia que não. Estamos em permanente busca de um ideal que, embora saibamos inalcançável, gera um movimento que nos mantém vivos. Um jovem sem esta procura já envelheceu; um idoso com este anseio de novos caminhos será eternamente jovem. Assim deve ser a vida, a arte e, consequentemente, a pós-graduação”.

Bem mais do que uma aula inaugural, o texto do notável compositor Ricardo Tacuchian é um documento que ultrapassa o tempo e traduz as angústias daqueles que transitam pela arte erudita livre de arbítrios que atraem holofotes, mas que se mostram efêmeros, sem deixar quaisquer raízes. A arte erudita, seja ela qual for, e a verdadeira arte popular de raízes profundas, sem a contaminação de interesses vis que atraem uma mídia culturalmente em declínio, ainda respiram. Esperanças tênues ainda se mostram na linha do horizonte. A erudição pressupõe o caminhar sem o olvido da história. Ricardo Tacuchian bem afirma que “Ninguém começa pelo meio, mas a partir das conquistas do passado”.

Em 1985 organizei uma publicação de oito composições em homenagem ao insigne compositor Henrique Oswald. Dos oito autores convidados, três se “inspiraram” na consagrada peça para piano do homenageado, “Il Neige!”. Francisco Mignone (1897-1986) escreveria “Il Neige Encore”, Gilberto Mendes (1922-2016), “Il Neige de Nouveau” e Ricardo Tacuchian (1939- ), “Il Fait du Soleil”.

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, “Il Fait du Soleil”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=aUuE9z90dpc

Composer Ricardo Tacuchian has recently given the online Inaugural Class for the post-graduation course at the State University of Paraná. In this blog I comment on some of the many interesting topics addressed in his lecture.