Posicionamentos de leitores atentos e outras considerações

A grande diferença entre um homem do Renascimento,
com seu gênio plural, com sua infinita capacidade de ciência,
de arte, de política, de guerra, de violência e de amor,
de realidade e de sonho, e nós, especialistas,
cada vez sabendo mais de menos, está em que dentro deles,
por um século, o medo se abolira, não o medo de prisões,
de feridas ou de mortes,
que é esse o menos mau,
mas o medo de ser, na plena, na inesgotável riqueza que se é.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(Dispersos)

“A iniciativa privada tem muitos atributos,
possibilidades de intervir na cidade, mas não tem nem pode ter
a responsabilidade de definir os rumos que ela vai tomar”.
Sérgio Magalhães (1944- )
(arquiteto e urbanista)

O tema suscitou uma série de mensagens, todas contrárias à desmesurada sanha das incorporadoras. Uma presencial, curta mas incisiva, levou-me a reflexões. Um morador da nossa já ex-cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, espaço onde moradores se confraternizavam durante andanças, gosta das corridas de rua como eu. Cruzei com ele em nossos treinamentos e, após breve conversa, continuei a correr no sentido inverso. Morando em um apartamento depois da derrubada de sua morada, afirmou que as incorporadoras não pensam na desestruturação dos desalojados.

Nas tantas ofertas que meus vizinhos e eu recebemos nesses últimos anos, jamais o lado humano foi ventilado. Interessam às incorporadoras dimensão do terreno e as condições para elas mais vantajosas na negociação. Para tanto, empresas têm setores especializados, estreitamento de prazos para desocupação desde que as documentações estejam em ordem, mas… e o ser humano? Este não conta, ele é apenas e tão somente um elemento do processo, descartado após conclusão das negociações, na empreitada cujo desiderato final é o lucro. Teriam as incorporadoras psicólogos nos seus quadros para o acompanhamento dos ex-moradores? A elas interessa seguir o day after deles, dramático para muitos, já que a diáspora individual subentenderia apreensões diferenciadas quanto à desestruturação? Li anos atrás num noticiário sobre o suicídio de um casal nonagenário que, dias após deixar sua morada, buscou o ato trágico, impossibilitado de adequação à nova realidade. Essa ausência mínima de sensibilidade por parte de tantas incorporadoras – haveria exceções? – põe à mostra um lado até cruel nessa civilização do espetáculo e da impessoalidade.

Selecionei três mensagens, que bem retratam aspectos acelerados da sanha das incorporadoras a sobressair sobre quaisquer outros objetivos mais humanos.

Gildo Magalhães, professor titular da FFLECH, USP, comenta: “Seu blog de hoje ficou excelente! Objeto que foi de nosso saudoso café desta semana, é certo que há saudosismo, porque temos saudades do que era bom, mas há nele também considerações técnicas valiosas: onde está o planejamento urbano, que de um lado deveria assegurar a beleza e eficiência das transformações, de outro lado garantir o provimento das expansões da infraestrutura de água, energia, transportes públicos (incluindo o próprio viário urbano para automóveis!), saúde, educação, áreas verdes e tantas outras condições de qualidade de vida? Lembro-me do setor de planejamento do Metrô, onde trabalhei, e onde se tentava equacionar tantas condições urbanas – nele trabalhavam arquitetos, engenheiros, cientistas sociais, hoje desfibrado e sem voz perante os ditames do neoliberalismo, que só enxerga cifrões à frente. E onde está a universidade, que deveria estudar e discutir esses problemas?”.

Eliane Mendes (formada em Química e Ciências Físicas e Biológicas pela Universidade Católica de Santos, é viúva do compositor Gilberto Mendes): De fato, se construímos cidades ruins é porque somos ruins também, como coletividade. Lembro-me de alguns anos atrás, quando a prefeitura podou as árvores da minha rua de uma maneira avassaladora, quando então, comentando com os vizinhos sobre aquela irracionalidade toda, deixando-nos sem sombra no verão, numa cidade tão quente como a nossa, para minha surpresa apenas uma vizinha concordou comigo. Todos os outros acharam muito bom ver a rua mais livre da presença das árvores, apoiando a iniciativa da prefeitura.

Aliás, vendo Santos lá de cima do Morro da Nova Cintra, só vemos cimento, com o verde das árvores praticamente não existindo mais. Havia uma lei estabelecendo que não poderia ser construído nenhum prédio com mais de 12 andares, pois o solo de Santos é instável, mas uma lei recente liberou o número de andares, dizendo que, como não há mais espaço para a cidade crescer horizontalmente, ela deve crescer verticalmente (????).

Vi recentemente uma reportagem na TV alemã sobre o mesmo acontecendo lá com os moradores, assim como no seu bairro, com as construtoras pressionando os moradores que venderam suas casas e até desapropriando, com as pessoas chorando, não tendo direito de permanecer nas casas onde habitavam há anos, mesmo tendo a escritura. O pensamento coletivo é sempre destrutivo, pois a Lei dos Homens é sempre matéria, cruel, destrutiva e gananciosa”.

Flávio Viegas Amoreira (escritor, poeta e crítico literário) escreve: “depois do rastreamento do poder criativo tranZmoderno: a música como resistência ao niilismo de significação, o percepto reinventado em modo de composição: JEM nos dá a medida do amplo arco que toca e move o artista enquanto farol ( Pound ), não só o poeta é farol, até porque em suas crônicas-reflexões JEM também, enfatizo, é carregado de poeticidade (Pound again! ); aqui ele restitui o artista-pensador que também referencia a arquitetura como fonte de pertencimento ou não, convergência ou não, a arquitetura no coletivo, o urbanismo medida do ‘ethos’ global em bases comunitárias, onde se vive, onde se faz sujeito ou não, abdicando ao peso da desmedida em nada humana da ágora perdida…  Sempre que leio esses questionamentos contundentes volto ao filósofo contemporâneo que mais leio e mais me reflete : ‘A percepção só pode ser concluída num repouso contemplativo (Biung Chul-Han)’. Sampa é a cidade mais deleuziana do planeta: metonítimica não metafórica, ainda busca eixos de horizontalidade agregadora, ‘topos’  de alteridade física e anímica: gosto que me enrosco de Sampa até porque tenho uma mirada da borda: marítima, santense e os que melhor pensam Sampa são os que se colocam num distanciamento telúrico ou provocado: quem é do mar tem medida da opressão provocada pela verticalização sufocante: busca-se nesse sem-horizonte…. Saúdo texto desse sábado porque hoje é sábado (como diriam Lorca & Vinícius) e dia de amanhecer com presente de JEM !”.

O competente homem público Philip Yang, fundador do URBEM, instituição dedicada à estruturação de projetos urbanos, enviou-me mensagem com link através do qual o leitor poderá ter percepção maior dos problemas urbanísticos das grandes cidades durante entrevista que concedeu juntamente com Eduardo Giannetti à jornalista Ana Paula Padrão:

https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=rm&ogbl#inbox/WhctKKWxcMhSltRnrNXJHzvcljdtFvNZgmgPrJBwBhnhtKXklTpHbVVgwJzpmXcFvZQWBWv

Décadas passarão. Vista bem das alturas, a edificação descontrolada assemelha-se ainda aos grandes bolsões irregulares de cimento, pois a verticalização ainda não atingiu a cidade como um todo. A visão mais próxima revela a absoluta falta de simetria quanto à disposição dos prédios e ao número de andares. O erro maior pode ter sido transferir a verticalização para a iniciativa privada no que concerne a projetos rigorosamente exclusivos por ela traçados e alheios a qualquer planificação urbanística, algo que deveria ser competência do Estado. Houvesse essa orientação numa São Paulo cada vez mais desordenadamente verticalizada, a visão das alturas mostraria uma cidade harmoniosa. No todo temos um grande quebra-cabeças onde as peças não se encaixam.

I have received many messages with comments on the previous post (verticalization of the city of São Paulo). I publish three of them, together with my view on another aspect of the subject, virtually ignored by real estate developers: the human factor during the negotiation process between the parties involved.