A busca das sonoridades inefáveis em criação singular

Na gravação, se o intérprete é privado da presença do público,
se ele sofre por não ter testemunhas de seu gesto
tão intimamente ligado à expressão de sua interpretação,
testemunhas essas que se manifestam no ato mesmo da execução,
necessário se faz imaginar da maneira mais intensa
a presença desse público futuro ao qual a interpretação se destina.
Gisèle Brelet
(“L’interprétation Créatrice”, 1951)

Quando da gravação do CD “New Belgian Etudes” (Gent, De Rode Pomp, nº 24, 2004), na mágica Capela Saint-Hilarius em Mullem, inserida na planura flamenga, registrei dez relevantes compositores belgas coetâneos com tendências diversas. Experiência inusitada, mercê dos direcionamentos da escrita. Foi precisa a observação do excepcional engenheiro de som Johan Kennivé, que registrou durante 20 anos todas as minhas gravações em Mullem, ao fazer uma comparação com o CD unicamente constituído por compositores brasileiros, “Estudos Brasileiros” (Rio de Janeiro, ABM, 2006). Disse ele que os autores belgas eram mais intelectualizados e os brasileiros mais ensolarados.

Paulatinamente deverei inserir alguns desses Estudos belgas no YouTube, com a anuência dos compositores. Como primeira inclusão pensei em “Résonances”, de Daniel Gistelinck (1948). Faço-o atendendo igualmente a muitas mensagens recebidas ao longo dos anos e que buscam saber quais são as obras mais complexas para se gravar. Anotei esses posicionamentos e creio que “Résonances” poderá responder a certas dúvidas. Para tanto, insiro a partitura, a fim de que aqueles iniciados na linguagem musical escrita possam seguir a excepcional composição.

Entendo que as obras mais complexas não necessariamente são as mais virtuosísticas. Estou a me lembrar de frase de meu dileto amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pela inserção competente de minhas gravações no Youtube. Iniciava minhas corridas de rua aos 70 anos, em 2008, e ele, maratonista, me disse: “Se o seu corpo estiver preparado, a mente o levará a qualquer lugar”. Mãos preparadas, a virtuosidade flui. Quanto às peças mais reflexivas, o preparo tem outros componentes mentais e esses são complexos, pois envolvem acuidades subjetivas e o acompanhamento auditivo extremo, além de elementos da flutuação de andamentos, dinâmica, articulação esmerada, pedalização e efeitos dela decorrentes. Entenderia que essas obras reflexivas corresponderiam ao trabalho de ourivesaria.

Creio ter sido “Résonances” uma das peças mais complexas para se registrar entre as centenas que estão fixadas em meus 25 CDs gravados no Exterior. Piano impecável, engenheiro de som hors série e acústica miraculosa da Capela Saint-Hilarius, do século XI, propiciaram os elementos indispensáveis ao registro fonográfico. Não sem razão solicitei a Daniel Gistelinck a inclusão da partitura.

Daniel Gistelinck (1948- ) é um dos grandes mestres musicais da Bélgica Flamenga, dotado de esmerada erudição. Estudou no Conservatório de Gent, onde sua formação se deu em teoria e composição. Futuramente se tornou professor de escrita musical no mesmo Conservatório. Escreveu-me a comentar a origem de “Résonances”, criação inserida como obra imposta num concurso nacional de jovens pianistas virtuoses: Pro Civitate 1988, concurso que admitiu 12 candidatos. Posteriormente “Résonances” seguiu sua trajetória no repertório de inúmeros pianistas.

Já me apresentava anualmente em Gent quando pensei gravar um CD unicamente com Estudos Belgas. Vários compositores escreveram especialmente para o projeto que acalentei de 1985 a 2015, a perfazer 30 anos nas fronteiras dos séculos, tempo suficiente para a aferição dos caminhos criativos nesse gênero Estudo em período tão conturbado. Cerca de 80 Estudos foram criados por alguns de nossos nomes mais significativos, assim como por compositores relevantes de vários países. Ao deparar-me com “Résonances”, não hesitei, pois tinha a peça todos os ingredientes concernentes àquilo que Claude Debussy escreveu ao seu amigo e regente Bernardo Molinari em 1915: “Que beleza há na música ‘apenas ela’, aquela que não tem um parti pris, uma busca para impactar os ‘diletantes’… O total de emoção que ela contém seria porventura encontrável em outra arte? Raros são aqueles a quem basta a beleza do som”. Estou a me lembrar da concentração plena decorrente da riqueza de timbres encontráveis em “Résonances”. Para que o resultado advenha, faz-se necessário o trio indispensável formado pela acústica, instrumento e engenheiro de som. Ao intérprete concerne fazer parte do todo, incorporar-se a essa tríade para que ressonância não seja apenas uma palavra inserida no léxico.

Clique para ouvir, de Daniel Gistelinck, “Résonances”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8

As a pianist, I’m often asked about the most complex works I’ve ever recorded. I believe Résonances, written by the Belgian composer Daniel Gistelink, is one of them. It is a real study of sonorities, with a whole range of timbres in which almost every note has its own weight.  I’ve just posted my recording of Résonances on Youtube along with the musical score, so that those able to read music can follow this exceptional work.