Recepção à altura da temática

É a razão desde o parto.
É correr pela vida,
Carregando sempre a morte.
Joan Reventós i Carner
(“Os Anjos não sabem velar os mortos”)

Apesar das dificuldades existentes quando se aborda o tema Morte, a recepção ao último post evidencia o interesse dos leitores por algo inexorável. Todas as mensagens recebidas são relevantes; mas, devido ao espaço a que me proponho, selecionei umas poucas, que correspondem ao conteúdo majoritário dos posicionamentos enviados.

A História está plena de registros da Morte nas artes visuais, música, literatura, nas crenças que eclodiram, feneceram ou sedimentaram-se. Persiste sempre o grande mistério relacionado ao infalível término da existência.

Em consonância com a atitude resignada e em paz, testemunhada pelos que cercam meu amigo-irmão nesse fim insubornável, as mensagens recebidas abordam vários aspectos que transmito aos leitores. A resignação de meu amigo-irmão, imbuído de profunda fé cristã, faz-me pensar na atitude diante da morte apreendida nas várias religiões. Estive com meu saudoso amigo, Álvaro Guimarães (1956-2009), poucos meses antes de sua “partida para a outra margem”, como me escreveu sua esposa, a regente coral Katrijn Friant, pois o amigo músico morou parte da existência em Gand, na Bélgica, lá a constituir família. Álvaro, já nos estertores da vida, dizia-me que estava preparado após ler um livro de Sogyal Rinpoche (vide blog: “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”, 10/10/2009). O autor escreve: “A contemplação profunda da mensagem secreta da impermanência – aquilo que de fato está além da impermanência e da morte – leva diretamente ao coração dos antigos e poderosos ensinamentos dos tibetanos: a introdução à essencial ‘natureza da mente’. A realização da natureza da mente, que pode ser chamada de nossa essência mais profunda, aquela que todos nós buscamos, é a chave para a compreensão da vida e da morte”.

Heitor Rosa, médico gastroenterologista e professor emérito da Universidade Federal de Goiás, escreveu-me, anexando um texto de Rubem Alves, psicanalista, educador, teólogo e escritor, a ele endereçado e do qual separei alguns segmentos relevantes:

“Li seu artigo sobre a morte e imagino sua angústia pelo inexorável desfecho com seu amigo-irmão. Com minha solidariedade, te envio um artigo que o Rubem Alves me enviou antes de morrer”.

Escreve Rubem Alves (1933-2014):

“Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais. Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos os esforços devem ser feitos. Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir. A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso”.

Eliane Mendes, viúva do notável compositor Gilberto Mendes, escreve:

“De fato, o ser humano se impressiona tanto com a morte, mas não se impressiona com a vida, esse milagre tão maravilhoso, em que cada célula de nosso corpo adquire a inteligência de saber o papel a ser assumido segundo o órgão do qual ela fará parte. Fazendo um paralelo, como você citou tão bem, o mundo inteiro lamentando a morte de pessoas da mídia, e praticamente desconhecendo aqueles que se dedicam a preservar a vida das pessoas, passando quase como anônimos, como os que se empenham na medicina, na descoberta da cura das doenças, ou aqueles que se empenham em divulgar o que há de melhor e mais sábio, como o Nelson Freire, que você citou como exemplo. Há alguns anos li uma pesquisa feita na França com a intenção de saber quem as pessoas consideravam como intelectuais, com grande bagagem cultural, isso na época em que ainda viviam intelectuais de alto nível, como Claude Lévi-Strauss (1908-2009), por exemplo. E, para surpresa de todos, o ‘grande intelectual’, eleito com quase 100% de votos, foi o homem âncora do Jornal da Noite, o que aparecia todas as noites na TV dando as notícias. Daí a mensagem do Sábio, no Tao Te King, dizendo: “O Sábio é aquele que permanece anônimo, sorrindo, observando o ser humano fazer uso de seu conhecimento, pegando para si a propriedade desse conhecimento, apregoando como se ele fosse o dono desse conhecimento”. O que seria de nós sem a Sabedoria da Grandeza da Humildade para fazer frente ao grande vazio da humanidade, não é mesmo, José Eduardo? Que a Sabedoria Divina acolha o seu amigo-irmão neste instante derradeiro, com a percepção da verdade que nos escapa durante nossa vida, dando-nos apenas uma visão muito pequena da razão plena de nossa existência”.

Gildo Magalhães, professor titular da FFLECH-USP, comenta:

“Eu já ficara sensibilizado pela notícia por você adiantada e achei tocante sua mensagem com reflexões sobre a morte, em geral a ‘indesejada das gentes’. Quando se reflete que o objetivo da vida é gerar vida, isto pode soar muito mecanicista, mas não deixa de ser verdade. Só que importa muito o que fazemos com o dom da vida que nos foi dado. E você, em particular, maravilhou-nos todos com a beleza da sua música ao piano, também registada para gerações futuras. E, mais ainda, terá um legado de escritos que espalham um firme humanismo, além de conhecimento e um puro sabor de viver intensamente, mesmo nas minúcias, e penso que seu amigo-irmão também deixará esta marca de sua passagem, transformando o efêmero em duradouro”.

Humberto Lopes, que durante décadas teve função destacada em empresa nos Estados Unidos, em sua mensagem teceu comentários paralelos ao post anterior, em que mencionei a morte trágica da cantora sertaneja Marília Mendonça e a massacrante cobertura da mídia durante praticamente dois dias inteiros, a motivar multidão incalculável, assim como a morte do notável pianista Nelson Freire, que teve uma cobertura, diria, protocolar. Humberto menciona dois exemplos ocorridos nos Estados  Unidos, demonstrando que essa “prática” existe não apenas em nossas plagas.

É possível que estejamos a viver um período de insensibilidade coletiva frente à morte. A pandemia, tendo ceifado incontável número de contaminados, persistindo em ondas sucessivas a dizimar humanos, colocou-nos diante da morte como probabilidade real e “imediata”. As vacinas, mesmo que “incompletas” em suas eficácias, são as únicas vias no momento. Quanto ao meu amigo-irmão, seu mal, após determinada etapa, é inexorável. O homem envia drones a Marte, perscruta ínfima parte do universo, aperfeiçoa tecnologias de maneira vertiginosa e não descobre vacinas contra o câncer. Os séculos passam e o interior do corpo humano continua a ter lá os seus mistérios. Estranho, muito estranho.

I appreciate the numerous messages on a difficult subject. I have separated some of them which highlight positions of interest.