Criação e misticismo
Scriabine era um místico,
e o místico nele determinava o pensador e o artista:
a originalidade de sua personalidade, filosófica e artística,
reduz-se em última análise
à originalidade de suas experiências místicas”.
Boris de Schloezer (1881-1969)
Entender o caminho composicional empreendido por Alexandre Scriabine compele-nos necessariamente a apreender sua trajetória, que se acentuaria progressivamente mais mística a partir basicamente do início do século. Sem ter deixado uma obra literária finalizada com fins precípuos, como o fez com suas composições, seus textos, tantos deles esparsos e até repetitivos, dão a conhecer o lado teosófico, filosófico e místico de Scriabine. Através deles, o legado criativo musical do compositor ganha sentido e não é difícil compreender que, das obras exacerbadamente românticas até as fronteiras do século XX, a aceleração visando a uma fusão música e misticismo em direção à compreensão do Cosmos se torna evidente até a sua morte prematura em 1915.
A trajetória de um compositor é marcada por transformações escriturais, mais acentuadamente a partir do século XIX. Apenas para citar uns poucos exemplos, mencionaria as criações de Beethoven, Liszt, Schumann e Debussy, criadores nos quais é nítido esse caminhar. No caso de Beethoven, o desenvolvimento instrumental, aumentando inclusive progressivamente a extensão do teclado, que obviamente necessitou de uma tábua harmônica mais consistente para resistir à tensão de cordas maiores, fê-lo adaptar-se às novas possibilidades que certamente influíram em seu pensar musical, assim como a dramática progressão da surdez. Liszt, nos anos derradeiros, não mais necessitava exibir a grande virtuosidade que caracterizava a feitura de suas obras de antanho e suas consequentes criações adquirem configuração interiorizada.
Com Scriabine há um processo que tem sua semente fincada no dia de seu nascimento, 6 de Janeiro, festejo do Natal, sendo a noite de 6 para 7 considerada de “vigília noturna” e celebrada pelos russos. Scriabine não esqueceria essa data e, atento, frequentou futuramente em Bruxelas a Sociedade de Teosofia, buscou literatura especializada, admirava adeptos ilustres voltados às teorias teosóficas e filosóficas da época e, sem ter deixado uma obra literária, escreveu textos conclusos ou simples anotações em seus carnets. Seguir a cronologia desses escritos corrobora entender seu caminhar e a lenta “metamorfose” em direção a uma escrita musical distante das muitas normas ditadas pela tradição. Esses escritos esparsos, tantas vezes sem sequência, serviam para Scriabine como um aide memoire, uma fórmula usual para esboços musicais, literários ou ideias gráficas. Por vezes, pela interrupção advinda de um fato exterior, determinado conceito não teria sequência.
Importa compreender que possivelmente, não fosse a atração que o levou às transformações da escrita musical, Scriabine teria persistido no vasto movimento romântico que perduraria, possivelmente, até a morte de Rachmaninov, seu justo coetâneo, em 1943.
Clique para ouvir, de Scriabine, o Estudo op. 8, nº 12 (Patetico, 1894), na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0
Scriabine gostava de expor suas opiniões sobre música, arte, filosofia com pessoas das várias camadas sociais, mas diante de figuras ligadas às artes, à intelligentsia, mostrava-se acalorado. Tantos e tantos conceitos se perderam no frágil universo da oralidade. No livro “Alexandre Scriabin”, seu cunhado Boris de Schloezer, escritor e musicólogo, irmão de Tatiana, sua segunda esposa, aprofunda-se no pensamento de Scriabine e busca revelar os porquês de tão sensível transformação do pensar. Relata os primórdios de um entendimento que se daria ao longo da existência: “Quando vi Scriabine pela primeira vez em casa de meu tio, em 1895, em Moscou, tinha eu quinze anos. Fiquei impressionado pelo aspecto doentio e frágil e por sua grande nervosidade. Impressionou-me seu toque singular, tão diferenciado de tudo que ouvira até então”. Somente no inverno de 1902 Schloezer reencontraria Scriabine, então professor do Conservatório. “Mantinha a mesma fragilidade delicada, algo até infantil. Após uma conversa de uns dez minutos sobre nossos amigos comuns, nossos parentes, sua saúde, nossa conversa enveredou por algo mais abstrato e se transformou rapidamente numa discussão filosófica, acalorada e apaixonada. Assim começaram nossos entendimentos” (Boris de Schloezer, “Alexandre Scriabine”, Paris, Cinq Continents, 1975).
O relato faz-se necessário a fim de se entender não apenas a fragilidade física do músico, mas a propensão ao aprofundamento em áreas aparentemente distantes do conteúdo musical, e que levariam Scriabine não apenas a fixar seus conceitos sobre o pensar, como a ter uma visão singularíssima da escrita musical. Nesse amálgama, a liberdade do homem é fundamento essencial. A musicóloga Marina Scriabine (1911-1989), filha do compositor, escreve: “A paixão intransigente de Scriabine pela liberdade, uma liberdade total, absoluta, sem limites, encontrará também a simpatia e a compreensão do leitor contemporâneo” (introdução do livro de Boris de Schloezer). Essa liberdade não teria sido uma das causas de a própria interpretação de Scriabine ao piano, mormente nos andamentos lentos, comportar a flutuação do tempo? Seu contemporâneo N.N. Chercass menciona o excesso de rubatos nas execuções de Scriabine (1916). Sob outra égide, o ilustre pianista e professor Heinrich Neuhaus (1888-1964) afirmaria: “Tocando Scriabine meu pé não deixa o pedal”. Certamente nas muitas graduações.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Dois Poemas op. 32 (1903), na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=oCivxihlJKY
Após a exposição de duas essencialidades de Scriabine, Schloezer sintetiza o místico, antes de se alongar sobre o tema. “Tentei recriar a imagem de Scriabine, pensador e artista, essencialmente me baseando em minhas lembranças. Meu caminho se estendeu da periferia ao centro, levando-me ao epicentro de sua personalidade, à sua essência mais íntima, a esse subsolo profundamente oculto que, estou convencido, alimentou com sua substância suas ideias e suas criações artísticas. É nesse epicentro que se encontra a poderosa fonte de sua criação e que mergulham as raízes de seu pensamento e de sua atividade, estreitamente entrelaçadas na obscuridade. O que pensava o artista e a maneira como pensava, o que ele queria e fazia, tudo era determinado pelo que ele havia experimentado diretamente e pela maneira como ocorrera essa experiência”.
Numa missão visionária, Scriabine idealizou uma obra, Mystère, gestada lentamente desde o início do século e que pressupunha a “arte total”, música, teatro, pintura, gesto, poesia. Concluiu apenas o Acte préalable em 1913.
Sob outra égide, os quatro carnets contendo pensamentos, textos breves conclusos ou interrompidos, têm interesse (Alexandre Scriabine, “Notes et Réflexions”, Paris, Klinckseeck, 1979). Marina Scriabine, em notável introdução, sintetiza o conteúdo dos carnets: “Para Scriabine, não havia mais o eu ou o não eu, pois tudo estava interiorizado por ele. Chegara desse modo a uma maneira singular do pensar. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da criação. As expressões ‘eu não sou nada’, ‘eu sou Deus’ pontuam como uma litania certos textos desse período. Ele nada é no não-ato, na não-criação. Ele é tudo, ele é Deus, no ato criador”.
No blog anterior citei o notável Dr. Eduardo Etzel (1906-2003), meu psicanalista altruísta durante dez anos (1976-1986). Após nossas conversas sobre as essencialidades detectáveis da personalidade de Scriabine, tendo a ele mencionado inúmeros exemplos progressivos de motivos “ansiosos”, apresentando ao piano o processo constituído de motivos curtíssimos intercalados por pausas, o notável especialista levantou a hipótese da presença de motivos neurótico-obsessivos na criação do compositor, utilização que se acentua ao longo da existência.
Boris de Schloezer comenta a presença da nervosidade do jovem Scriabine. Outros comentaristas também traduzem essa assertiva de Schloezer. N.N. Cherkass, professor russo, escrevia artigo em 1916 sobre Scriabine, um ano após sua morte: “um homem doente, com uma doença interior que lhe angustiava todo o sistema nervoso”. Dois Estudos curtíssimos, op. 49 nº 1 e op. 56 nº 4 (1905-1908, respectivamente), evidenciam, na primeira década dos século XX, essa “nervosidade” observada por Boris de Schloezer e o estado ansioso. Inseri a teoria proposta pelo Dr. Eduardo Etzel em artigo que escrevi para os Cahiers Debussy (nº 7, 1983) do Centre de Documentation Claude Debussy, Paris, como citado no blog anterior.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, seus dois mais curtos Estudos para piano, pertencentes a coletâneas de peças breves onde é notória a presença desses curtos motivos angustiantes. Interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=VaDmlkczoho
Ao escrever o monumental Prométhée – le poème du feu (1908-1910), Scriabine já se mostra um compositor muito além de seu tempo, totalmente imbuído desse amálgama música – artes outras – misticismo. A obra foi concebida para grande orquestra, com piano solo, coros mistos (vocalizando) e o inovador ‘órgão de luzes’, que projeta efeitos de luz no transcorrer da execução. Tudo idealizado pelo autor. A extraordinária criação em vários segmentos apresenta esses motivos rápidos intercalados por pausas, mormente nas últimas páginas.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Prométhée – le poème du feu, com a Sinfonieorchester – Frankfurt Radio Symphony, sob a regência de Markus Stenz, tendo como solista de piano Dmitri Levkovich, dois coros mistos (vocalizando) e o inovador “órgão de luzes”, que projeta fachos luminosos no transcurso da obra:
https://www.youtube.com/watch?v=10ESN_t7txI
A divulgação da opera omnia de Scriabine tem se acentuado, principalmente após a segunda metade do século XX. Do romantismo exacerbado à escrita precursora de tantos processos que vingaram no século XX, Scriabine tem o sopro do etéreo, aponta para uma meta de união das artes, da literatura e de tantas outras manifestações. O homem a caminhar pela história rumo ao Cosmos.
On how Alexander Scriabine’s interest in mysticism and esoteric writings of his time affected the evolution of his works, going from the romanticism of the earliest compositions to the development of a highly personal style as the music-mysticism integration of his final period grew stronger.