Sesquicentenário de um excepcional compositor-pensador

Na realidade eu não vivo senão no futuro.
Alexandre Scriabine

Estava a redigir o blog anterior a respeito do notável pianista Roberto Szidon, que gravou em 1972 as 10 Sonatas de Scriabine para um dos mais representativos selos do planeta, Deutsche Grammophom, quando recebo da excelente pianista Solungga Liu, da Bowling Green State University dos Estados Unidos, programa comemorativo no mês do sesquicentenário de nascimento do compositor. Professores ligados à Instituição apresentaram as 10 Sonatas de Scriabine. À Solungga ficou reservada a Sonata nº 2, op. 19. Escrevi-lhe que apresentei essa Sonata no auditório Itália, em São Paulo, no centenário do compositor em 1972, em programa inteiramente a ele dedicado. Cinquenta anos se passaram e as homenagens continuam.

Filho de pai diplomata e de mãe pianista que morre um ano após o nascimento do filho, o jovem Alexandre realiza seus estudos junto ao corpo de Cadetes da Escola Militar de Moscou, mas cedo revela talento musical ao estudar piano com Zverev, harmonia com Conius e contraponto com Taneev. Após anos no Conservatório, de 1888 a 1892, completa o curso obtendo medalha de ouro. Inicia cedo sua atividade como pianista pela Rússia e alhures. Ainda jovem, apresenta-se quase sempre a interpretar suas próprias obras. De 1898 a 1903 Scriabine foi professor de piano no Conservatório de Moscou. Casar-se-ia em 1897 com a pianista Vera Ivanovna Issacovitch, com quem teria quatro filhos e, após separação, casa-se com Tatiana de Schloezer, mãe de seus próximos três.

Sua opera omnia privilegia o piano, mas o autor lega três sinfonias, poemas sinfônicos, sendo que Prométhée, le Poème du feu (1908-1910) foi escrito para grande orquestra, órgão, coros, piano e teclado com luzes, algo absolutamente inovador para a época. Compôs igualmente um Concerto para piano e orquestra op.20, realmente magnífico, mas que, por motivos que escapam à compreensão, tem sido pouco frequentado pelos pianistas.

Apesar dos esforços de dois imensos pianistas, Vladimir Sofronitsky (1901-1961) e Vladimir Horowitz (1903-1989), e alguns outros notáveis intérpretes executando na excelência suas criações, foi mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XX que Scriabine entraria definitivamente no repertório dos pianistas (vide blogs: “Envolvimento a partir de um LP” a focalizar Sofronitsky, 05/10/2019 e “Vladimir Horowitz”, 22/02/2020).

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine: Prelúdios op. 11, nºs 11, 13, 14; Prelúdio op. 22, nº 1; Mazurka op. 40, nº 2; Désir, op. 57 nº 1; Estudo op. 8, nº 12 (Patetico)Poème op 32 nº 1, na interpretação do autor (1910) :

https://www.youtube.com/watch?v=xgD8Qq01CxY

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine: Étude op. 42 nº 5, na interpretação de Alexandre Sofronitsky:

https://www.youtube.com/watch?v=dTjVEEIQhqc

O caso de Scriabine é único entre os compositores. Sua filha, a musicóloga Marina Scriabine, sintetizou as aspirações de seu pai ao afirmar que não se pode dissociar a evolução de sua escrita composicional de seu aprofundamento místico. À medida que o pensamento, voltado mormente à Teosofia, evolui, a escrita musical acompanha, numa guinada absoluta aos postulados do longo caudal romântico. Se o extraordinário Sergei Rachmaninov (1873-1943),  seu coetâneo e colega de Conservatório, seguiu ao longo da vida uma linha romântica detectável, Scriabine terá basicamente, em sua breve existência, três vertentes nítidas, cujas fronteiras são perceptíveis, sendo quase impossível reconhecer o mesmo compositor através dos extremos do calendário. Se as criações de Chopin (1810-1849) e mais tarde, numa transição, as de Liszt (1811-1886) exerceram influência na escrita de Scriabine, não desprovida das raízes russas, mas sem cariz  popular, seria contudo mais acentuadamente a partir do início do século XX que o compositor-pensador empreenderá um caminho singular, personalíssimo, intrinsicamente imbuído de seu debruçar místico. Sua música torna-se mais dissonante. Cria seu próprio sistema. Nele insere o “acorde místico” de seis sons com intervalos de quarta. Suas criações dessa última fase, tanto nas Sonatas e Prelúdios, como nos Estudos e Poemas, seriam pouco frequentados pelos pianistas durante as primeiras décadas do século XX. Devido à brevidade dos tantos Poemas, o processo de “transformação” da linguagem se mostra mais presente. Digo “tantos” Poemas, pois vários deles assim nomeados e com titulação têm a caracterização detectável em outros, igualmente titulados, mas sem a palavra Poema a precedê-los. Como exemplos, temos os casos de Enigme, op. 52 nº 2, Nuances, op. 56 nº 3 e Étrangeté, op. 63 nº 2.

Clique para ouvir, de Scriabine, o Estudo op. 8 nº 10, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=f8ezja4JBSk

Após a leitura de toda a obra para piano de Scriabine nos anos 1970, chegaria a uma conclusão concernente à quase absoluta inexistência da passagem do polegar em suas criações, sem abdicar em inúmeras delas da extrema virtuosidade. Sabe-se que, aos 18 anos, Scriabine teve problemas com sua mão direita, o que o fez compor o Prelúdio e o Noturno, op. 9, só para a mano sinistra. Durante a existência, como exímio pianista, mormente a executar suas próprias obras, teria preocupação com sua mão direita. Ao escrever artigo para publicação do Centre de Documentation Claude Debussy, em Paris, inseri posicionamento do ilustre Professor e ortopedista Dr. Heitor Ulson, que, após se inteirar dessa ausência quase que total da passagem do polegar – quando em curtos arpejos, Scriabine poderia realizá-los com rápido movimento da mão – consideraria que possivelmente o pianista-compositor tenha tido o denominado Mal de De Quervain (Dr. Fritz De Quervain 1868-1940), que afeta justamente o movimento de articulação do polegar. Logicamente, por analogia, o mesmo se daria com o processo exercitado pela mão esquerda. Reza a história que Scriabine na juventude estudou demais, a fim de cumprir os programas do Conservatório.  Sob outra égide, ao consultar o notável Professor e Psicanalista Dr. Eduardo Etzel (1906-2003), relatei-lhe o crescimento, na obra para piano de Scriabine, dos motivos curtos entremeados por pausas. Esse processo se acentua na medida em que Scriabine penetra nesse universo místico, pois eles se tornam mais sôfregos e angustiados. Segundo o especialista, seriam motivos neurótico-obsessivos. Se a linguagem composicional de Scriabine se transforma, essas duas considerações seriam elos que fazem “identificar” os extremos da criação (vide Cahiers Debussy “Quelques aspects comparatifs entre le langage de Debussy et Scriabine”, nº 7, 1983). Essa comparação entre Debussy e Scriabine se faz necessária, pois contemporâneos, embora apenas ao final de suas produções haja aproximação de procedimentos, estes voltados à sonorística, ao timbre e a essa busca daquilo que Debussy denominava “la beauté du son”. Frise-se, os dois não se conheceram, mas Debussy teria assistido a concerto de música russa em que foram apresentadas criações de Scriabine.

Quando dos 75 anos de Pierre Boulez, em entrevista ao Le Monde (24/03/2000), o notável músico afirmaria que, se Sacre de Printemps de Stravinsky, Pierrot Lunaire de Schoenberg, o 4º Quarteto de cordas de Béla Bártok e os Douze Études de Debussy fossem escritos atualmente, seriam aceitos como criações absolutamente contemporâneas. Acrescentaria à lista o Poema Vers la Flamme op. 72 de Scriabine, composto em 1912. “Na realidade eu não vivo senão no futuro”, como afirmaria o compositor.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Vers la Flamme op. 72, composta em 1912, na interpretação de J.E.M. Gravação ao vivo durante recital no Convento Nª Senhora dos Remédios em Évora, Portugal, 2017:

https://www.youtube.com/watch?v=wdgfEnv51MI

This year we celebrate the sesquicentenary of Alexandre Scriabine, the Russian composer whose works have been increasingly championed by pianists worldwide in the last decades, garnering significant acclaim.