A partir de uma história real, a imaginação viaja

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

Recebi de uma leitora o livro “O último duelo” (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2021) de Eric Jager , crítico literário voltado principalmente à literatura medieval. O enredo se passa durante a Guerra dos 100 anos entre França e Inglaterra, a ter como protagonistas principais três figuras que fazem parte do histórico real da França: Jean de Carrouges, cavaleiro normando, sua esposa Marguerite e o escudeiro Jacques Le Gris. Vivendo em pleno século XIV, as três figuras permanecem na literatura francesa através dos séculos.

Tenho sempre desconfiança, possivelmente devido aos trabalhos exegéticos exigidos na Academia, ao ler pesquisas sem dúvida sérias, mas intermediadas pela imaginação do autor, fator expurgado na área da História quando de dissertações e teses. Sob outra égide, há que se destacar o desiderato maior de um autor, no caso Eric Jager, doutor pela Universidade de Columbia e professor premiado de inglês na UCLA, que, ao imaginar situações possíveis através da leitura de fontes fidedignas, angaria um número incomensurável de leitores não necessariamente interessados na veracidade dos fatos. A notoriedade de “O último duelo”, inclusive, inspirou o filme “The Last Duel”, dirigido pelo renomado Ridley Scott. Na “Nota do autor”, Eric Jager esclarece os porquês: “Todos os personagens, locais, datas e muitos outros detalhes – incluindo o que as pessoas da época disseram e fizeram, suas declarações muitas vezes contraditórias na corte, as somas pagas e recebidas, e mesmo as condições climáticas – são reais e baseados em tais fontes. Quando estas se contradizem, apresento o relato mais provável dos fatos. Quando o registro histórico é insuficiente, uso a imaginação para preencher alguns hiatos, sempre tentando ouvir as vozes do passado”. Essa escuta do imaginário, ao “complementar” fontes fidedignas, configuraria enxertos à história. Se a lacuna de uma fonte documental existe, inventá-la dirige o texto a um público menos exegético, mas necessariamente amplo, pois mais preocupado com a narrativa em si, curioso sobre o desfecho, do que com a interrogação que leva à dúvida. O esclarecimento de Eric Jager evidencia propósito claro.

Foram dez anos de longa pesquisa frente a um manancial de documentos que levou o autor a tantas viagens, a fim de que sua visão dessa história, a envolver personagens que permanecem através dos séculos graças à larga documentação, fizesse com que renascessem numa narrativa harmoniosa, tornando-os conhecidos por número incalculável de leitores e, como consequência, pelos amantes do cinema.

Uma brevíssima sinopse faz-se necessária para que se conheça o enredo histórico. Está-se em pleno século XIV durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que antagonizou França e Inglaterra. O cavaleiro normando Jean de Carrouges, que participara de várias batalhas, em um de seus retornos ouve a confissão de sua esposa, que assegura ter sido estuprada por um seu ex-amigo de combates, mas há tempos inimigo declarado, o escudeiro Jacques Le Gris. O caso, levado a várias instâncias judiciárias, recebe finalmente a decisão do Rei Carlos VI, então nos seus 17 anos, após a autorização do Parlamento de Paris, declarando que haveria o duelo entre os dois. Àquela época as penas eram implacáveis. Se perdesse, Carrouges não só morreria na arena, como sua esposa Marguerite seria queimada viva por perjúrio. Foi o último duelo oficial do gênero em França. Munidos de todo o arsenal de combate, como armadura, cavalo, lança, machado, espada e adaga, um dos combatentes encontraria a morte, tida como expressa vontade de Deus. Através da história, dúvidas permaneceram a respeito da veracidade das confissões.

Há na internet documentação sobre esse tumultuoso caso, que se prolonga ao longo dos séculos nem sempre no mesmo direcionamento, mas que ganharia ímpar notoriedade através do livro de Eric Jager e do filme dirigido por Ridley Scott.

Frise-se que Eric Jager conduz a trama de maneira a manter o leitor atento ao desenrolar do enredo e tece comentários de interesse sobre os julgamentos àquela altura e as penas fatais dos condenados, de extrema crueldade.

Estou a me lembrar de que, após gravação de CD dedicado ao notável compositor português Fernando Lopes-Graça, em Leiria no ano de 2003, visitei, no Castelo Medieval da cidade, no alto de uma colina, a Exposição Internacional dos instrumentos de tortura autênticos usados na Idade Média. Para cada engenho fatídico havia um painel com cópia de desenho ou pintura de época, a evidenciar a utilização do instrumento de martírio. Aconselharam-me a não visitar, tamanho o impacto. Todavia, quis conhecer. Entendi os limites absolutos da tortura. Ao sair da Exposição quiseram-me vender um magnífico livro com “belíssimas” ilustrações. Respondi jocosamente à funcionária: “já não basta a Exposição?”. Na descida do belo Castelo Medieval restaurado deparei-me com várias senhoras a vomitar.

Após a leitura assisti ao filme “The last duel”, dirigido por Ridley Scott. Sendo um filme e não um documentário, mais elementos fantasiosos foram adicionados para que a condução do enredo se tornasse palatável. Se, sob uma ótica, entendo impecáveis a caracterização dos personagens, dos locais escolhidos, dos Castelos autênticos e das batalhas, a condução da história, a objetivar o grande público, está plena de intermediações criadas pelos roteiristas Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon, responsáveis pelas três partes do filme. Nestas, há repetições, pelo fato de os “roteiros” dos três personagens históricos terem, por vezes, situações semelhantes. Resulta uma imaginação ainda mais fecunda àquela do livro de Eric Jager. A escolha da iluminação dos interiores leva ao espectador a noção dos recintos de antanho, à luz de velas ou tochas, o que tem boa dose de autenticidade. Os atores Matt Damon (cavaleiro Jean de Carrouges), Adam Driver (escudeiro Jacques Le Gris), a bela Jodie Comer (Marguerite de Carrouges) estão excelentes em seus respectivos papéis tão contrastantes, assim como Ben Affleck (Conde Pierre d’Alençon). Pena que o jovem Rei Carlos VI apareça sempre como um imbecil. Reza a história que, a partir de determinada altura, teve acessos de loucura.

Acredito que a leitura do livro e o consequente filme possibilitem reflexões sobre a realidade dos fatos e comparações com acontecimentos hodiernos.

“The Last Duel”, a book by Eric Jager, a literary critic and specialist in medieval literature, is of interest. The author has done researches in reliable sources, but uses his imagination to fill in gaps in the real story. It reached huge audiences, turning into a motion picture directed by Ridley Scott. Book and film, despite deviations from reality, present the last judiciary duel held in 14th-century France between a knight, a squire and, as a pivot, the wife of the first, with themes that echo powerfully until today.