Pianista brasileiro referencial pouco cultuado

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Não é difícil compreender que a música erudita no Brasil tenha sofrido um sensível decréscimo, tanto no que concerne à divulgação como ao aparecimento de maior número de instrumentistas que granjeariam renome fora do Brasil. Em jornais de décadas atrás, a crítica — sob a pena de críticos músicos, diga-se —, pontuava quase diariamente o resultado das performances dos concertos. Eram aproximadamente dez veículos da imprensa publicando apreciações!!! Estiolaram-se. É fato. Reduziram-se as salas para recitais em número e espaço, assim como minguou a afluência do público. Alguns intérpretes internacionais relevantes ainda conseguem se apresentar com boa audiência nos dois Teatros maiores da cidade.

A premissa se faz necessária, pois se esse panorama parece acentuar-se, divulgar os que já se foram torna-se também tarefa complexa. Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro e Nelson Freire, com absoluta justiça, mercê de carreiras consagradas permanentemente pelo planeta, permanecerão como luminares, mesmo não sendo cultuados à altura. Mas alguns outros pianistas que partiram, de imenso valor, basicamente estão encobertos por uma neblina. Refiro-me a Antonieta Rudge, Arnaldo Estrela, Yara Bernette, Antônio Guedes Barbosa e Roberto Szidon, como alguns dos exemplos marcantes. Neste espaço reservei blogs a Antonieta Rudge (17/10/2020), Guiomar Novaes (09/05/2020), Yara Bernette (12/12/2020), Magda Tagliaferro (a partir do livro de Catherine Lechner-Reydellet, “Les légendes françaises du piano”, 10/11/2018), assim como outro a salientar, Fernando Lopes (vide: Fernando Lopes, (30/03/2019). Nascido em Porto Alegre, Roberto Szidon estudou com Karl Faust e posteriormente, nos Estados Unidos, com Ilona Kabos e Claudio Arrau. Sua ascensão foi meteórica, mormente após estudar medicina, abandonando o curso no quinto ano para se dedicar inteiramente à música. Sem amarras, todo um potencial revelou-se. Viveu nos Estados Unidos, mas fixaria definitivamente morada na Alemanha. Apresentou-se com algumas das mais importantes orquestras e seu nome figuraria entre os mais respeitados pianistas do período. Paralelamente à sua aceitação, não desprezaria o repertório pátrio, tendo gravado em LPs uma série de autores, como Alberto Nepomuceno, Glauco Velásquez, Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Radamés Gnatalli, Marlos Nobre, mas também Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.

Clique para ouvir, de Villa-Lobos, A Lenda do Caboclo (0:00), New York Skyline (3:52) e A Fiandeira (6:50), na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=O_9gXfvzHCM

Contudo, seu nome ficaria indelevelmente inscrito no cenário internacional através de gravações para um dos selos mais importantes do mundo, o Deutsche Grammophon. Entre os registros extraordinários salientem-se as 10 Sonatas e a Fantasia op. 28 de Scriabine, feito largamente louvado, pois a integral do gênero era um dos desafios pianísticos. Igualmente gravaria as 19 Rapsódias Húngaras de Liszt, a transcendente Sonata Concorde de Charles Ives, os 4 Scherzos e os 4 Impromptus de Chopin, a 2ª Sonata de Rachmaninov e a 6ª de Prokofiev, assim como o 2º Concerto de MacDowell e o Concerto em Fá de Gershwin, ambos para piano e orquestra, entre outros mais registros que incluem obras de câmara, uma de suas predileções. Entre essas, saliente-se a integral das Sonatas de Béla Bartók para violino e piano, com Jenny Abel, que foi colocada como uma das mais importantes do século XX pela revista alemã Fono Forum. De Schumann, gravou ciclos de melodias com o barítono Thomas Quasthoff.

Clique para ouvir de Franz Liszt, a Rapsódia Húngara nº 15, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=SGdosIzG20k

Distante dos palcos anos antes de sua morte, partiria aos 69 anos, vítima de ataque cardíaco em Düsseldorf, na Alemanha.

Aos 8 de Novembro de 1977 dei recital no auditório do SESI, na Av. Paulista, em São Paulo. Meses antes apresentara no MASP, na mesma Avenida, a integral dos Estudos para piano de Alexandre Scriabine. Em torno do compositor russo, Szidon e eu tivemos contatos. Ele compareceu ao auditório do SESI, pois no programa interpretei alguns poemas do compositor e, logo após o recital, participamos de programa ao vivo na TV Cultura unicamente sobre Scriabine, a convite do maestro Walter Lourenção. Conversamos e interpretamos algumas obras do imenso criador russo. As fotos do evento, sem muita nitidez, registrariam o encontro prazeroso. Estavam “perdidas” há décadas e, ao consultar velhos arquivos, encontrei-as, motivo a mais para a inserção de blog em homenagem ao imenso pianista Roberto Szidon, considerando ademais a efeméride a lembrar o sesquicentenário de nascimento de Scriabine (1872-1915). Dedicarei o próximo blog ao notável compositor russo.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, a Sonata nº 2, op 19, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=S8qry3WyPTs

Estou a me lembrar de dois fatos que evidenciam outras qualidades de Roberto Szidon. Naquele período, Szidon esteve em nossa casa mais de uma vez. De todos os pianistas que conheci com leituras à primeira vista rigorosamente fulminantes e precisas, conheci três singulares: Fritz Jank (1910-1970), Jean Doyen (1907-1982), meu mestre em Paris, e Roberto Szidon. Quanto a esse dom extraordinário, lembraria que, após nosso programa na TV Cultura, deixei-o à porta do prédio onde morava seu tio. Eram duas da madrugada e Szidon me disse que às sete voltaria ao Rio, pois às dez da manhã gravaria um LP com obras de Radamés Gnatalli. Perguntei-lhe se faziam parte de seu repertório. “Não, aprendi-as nesta última semana”, respondeu. Foi um dos pianistas referenciais de sua geração a deixar gravações que permanecerão.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, a Sonata nº 4, op 30, na interpretação de Roberto Szidon:

https://www.youtube.com/watch?v=9G6osdfBA-o

Clique para ouvir, de Scriabine, o Poème Tragique op. 34, na interpretação de J.E.M.

Alexander Scriabin – Poème Tragique Opus 34 – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Roberto Szidon was one of the greatest pianists of his generation worldwide, as testified by his discography, released by the highly respected label Deutsche Grammophon. I also comment on our past contacts thanks to a mutual interest in the works of the Russian composer Alexander Scriabine.