Navegando Posts publicados em fevereiro, 2022

Por unanimidade, nome referencial do piano no século XX

Eu tenho os meus conceitos, outros têm os deles;
e não devem ser comparados.
Depois de tudo, música é música.
Eu toco música não porque quero ser comparada,
mas porque a adoro.
Alicia de Larrocha

Nascida em Barcelona, na Catalunha, Alicia de Larrocha, descendente de família de pianistas, foi um talento precoce e aos cinco anos se apresentou durante a Exposição Internacional em Barcelona. Essa precocidade levou-a a outras significativas apresentações, inclusive com orquestra, em vários continentes.

A carreira da Alicia de Larrocha foi uma das mais sólidas durante décadas. Intérprete irretocável de tantos autores, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Liszt, Schumann, Brahms… Foi talvez sua dedicação aos compositores pátrios, Antonio Soler, Enrique Granados, Isaac Albéniz e Manuel de Falla, que a tornaria a mais ilustre pianista na execução desse rico repertório. Vladimir Horowitz não hesita ao dizer que ninguém tocava os espanhóis como de Larrocha. Aliás, a pianista tem uma visão precisa a respeito desses autores: “Não acredito que haja um ‘melhor’ de nada nesta vida. Eu diria, porém, que Granados foi um dos grandes compositores espanhóis, e na minha opinião foi o único que capturou o verdadeiro sabor romântico. O seu estilo era aristocrático, elegante e poético, completamente diferente de Falla e Albéniz. Para mim, cada um deles é um mundo diferente. Falla foi o único que realmente capturou o espírito da música cigana. E Albéniz, penso que era mais internacional do que os outros. Embora sua música seja espanhola no sabor, seu estilo é completamente impressionista”.

Clique para ouvir, de Antonio Soler, a Sonata em Ré bemol, R. 88, na interpretação de Alicia de Larrocha:

https://www.youtube.com/watch?v=m2r4Ty9FKb4

Tivemos, Regina e eu, o privilégio de estar entre os poucos presentes (!!!) ao recital em que Alicia de Larrocha apresentou no MASP os quatro cadernos de Iberia, de Isaac Albéniz, em interpretação a não se esquecer, brindando o público, ao final, com Navarra, que poderia ser considerada  a 13ª da magnífica coletânea. Navarra foi dedicada à ilustre pianista e professora Marguerite Long, que, em seu célebre Le Piano, escreve que o pianista que critica suas mãos é indigno da arte. Alicia de Larrocha realizava proezas com suas pequenas mãos, mas com alguns atributos: o quinto dedo era  longo e a abertura entre o polegar e o indicador, ampla, permitindo-lhe as façanhas que realizava. Afirmaria: “Quem me dera ter uma extensão naturalmente ampla, mas não tenho. Não me importaria com dedos mais longos, apenas com uma mão mais espalhada. Mas com treino e trabalho árduo, consegui ultrapassar essa limitação”.

Se pianista consagrada, Alicia de Larrocha também teve proeminência como professora. A acuidade, decorrente desse olhar o desenvolvimento de gerações de pianistas, fê-la, quando em entrevistas ou simples testemunhos, deixar claras as suas deduções a respeito da arte pianística, repertório, psicologia voltada à execução. Quando instada a comentar a respeito de concursos internacionais de piano, ela, que não participara dessas competições, é bem crítica em sua avaliação: “Penso que todo o sistema está errado, completamente errado. Não tem nada a ver com a música do artista. É como uma olimpíada artificial e mecânica. É apenas trabalho, trabalho, trabalho para a competição, mas e depois? Se os pianistas são bons, não precisam de uma competição. Além disso, se ganharem, apenas recebem um prêmio e uma série de concertos que, por vezes, os transformam em meras máquinas. Isso não é música, nem é arte. A grande publicidade tem algum efeito. Divulga o nome, mas quer seja um bom músico ou não, não conta muito”.

Clique para ouvir, de Schumann, Carnaval de Viena op. 26, na interpretação de Alicia de Larrocha:

https://www.youtube.com/watch?v=DaUoIcItGnE

Quanto à preparação e escolha de repertório, comenta: “Posso ser considerada principalmente como uma pianista bastante egoísta porque toco para mim mesma. E, quando partir, meu único desejo é que as pessoas tenham tido algum prazer com o meu trabalho e não pensem que eu fui uma pessoa desagradável! Eu também não olho para trás, mas teria sido uma alegria conhecer Beethoven, Bach e Schumann porque eles eram grandes artistas”.

Sob o plano voltado ao estudo pianístico, Alicia de Larrocha comenta que o dedilhado lhe era fundamental e que sempre dele se servia a fim de buscar um toque particular. Afirmaria que a mudança de dedilhado às vésperas de uma apresentação poderia ser tardia, perigosa. “É melhor ter uma dedilhação prática trabalhada com antecedência, especialmente para mim, porque a dedilhação é a base da segurança, penso eu”.

Liszt dizia que se sabe bem uma obra se conseguimos tocá-la lentamente e melhor se mais lentamente ainda… Alicia de Larrocha considera que “por vezes, também tenho de tocar uma peça muito lentamente para solidificar a memorização”.

Clique para ouvir, de Liszt, La Campanella, na interpretação de Alicia de Larrocha:

https://www.youtube.com/watch?v=R0wmi0y1Geg

Num apanhado histórico, observa: “Cada período da história da música tem mostrado gostos, modos e técnicas diferentes. Em qualquer época havia um grupo de artistas de excelência que trabalhava no mais alto nível até que pouco a pouco novos estilos e maneiras foram desgastando as suas posições e novos grandes artistas os substituíram. Ouvimos dizer que o período Romântico, por exemplo, foi o período do virtuosismo, da ênfase na técnica. Os pianos de Liszt e Chopin eram tão leves ao toque que bastava soprar sobre as teclas para produzir o som. Todavia, o som era menor e assim deveria ser porque as salas de concerto acomodavam apenas algumas centenas de pessoas, e muitos recitais eram dados em casas particulares ou em salões da moda. Mas se Liszt e Chopin tivessem de tocar num piano moderno, ninguém sabe como se comportariam”.

Clique para ouvir, de Isaac Albéniz, Triana na magistral interpretação de Alicia de Larrocha:

https://www.youtube.com/watch?v=WjvkXoNXBqw

Corroborando as palavras de Vladimir Horowitz, só poderemos endossar a magnificente interpretação da música espanhola pela excelsa pianista. Imbatível nesse repertório e extraordinárias as suas leituras de Mozart, Schumann, Liszt… Não há arestas em suas interpretações. Elas configuram uma unidade sonora raríssima. Ouvi-la, através de gravações que estão disponíveis, é motivo de raro prazer estético.


Tendo encerrado a carreira em 2003, após uma trajetória que se estendeu por 76 anos, pois iniciada ainda quando criança, pouco tempo após sofre queda e fratura o quadril, vindo a falecer em 2009 em sua cidade natal, Barcelona.

Clique para ouvir, de Enrique Granados, Dança Espanhola nº 7, na interpretação de Alicia de Larrocha;

https://www.youtube.com/watch?v=ejVPK7cEwLU

Alicia de Larrocha was one of the biggest names in piano playing in the 20th century. An eclectic interpreter, her performances of Spanish composers, according to Vladimir Horowitz, are unsurpassed. I believe some of her opinions, expressed in interviews throughout her career, are worth reading.

As cartas do compositor a André Hellé dizem muito…

Entre nós, eu nunca suportei bem a multidão…
Claude Debussy
(carta a Gabriele D’Annunzio, 10/05/1911)

A recepção do blog anterior foi animadora. Agradeço as considerações e creio que as missivas de Debussy a André Hellé corroboram entendimentos.

Como observei no último post, há tempos Elson e eu pensávamos introduzir La Boîte à Joujoux no Youtube. Como se trata de obra singular, programática e cercada de sensíveis ilustrações criadas pelo escritor e pintor francês André Hellé, várias montagens foram feitas ao longo de mais de um século. A primeira audição mundial se deu no Théatre Lyrique (10.12.1919) através da versão para orquestra, preparada pelo compositor e regente André Caplet, amigo de Debussy, embora a edição da partitura original para piano tivesse sido publicada no final de 1913. Ficaria a impressão de que La Boîte à Joujoux teve como destinação inicial a orquestra. Essa teria sido uma das razões para que uma menor divulgação da obra pelos pianistas ocorresse ao longo de muitas décadas.

Vários leitores atentos pediram que me alongasse mais nessa obra que é exceção na composição para piano de Debussy, caracterizando melhor a gênesis, o evoluir da composição até seu término, o estilo e as ideias concernentes do autor. Essas colocações têm interesse e explicam com clareza incontáveis outras situações paralelas nas obras dos compositores, ratificando a posição do escritor e naturalista Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), para o qual le style est l’homme même.

As “autocitações” de Debussy em La Boîte à Joujoux são reminiscências de motivos ou frases musicais metamorfoseados. Como não pensar em Children’s Corner, mormente em Jumbo’s Lullaby (berceuses des élephants), Serenade for the Doll e The Little Shepperd, esta última tão próxima do “Un pâtre qui n’est pas d’ici joue du chalumeau dans de lointain” (Um pastor que não é daqui toca flauta ao longe), do terceiro quadro de La Boîte…! Essas lembranças fazem parte essencial do idiomático de um autor, revelam que há, mormente em Debussy, o olhar o novo sem olvidar o passado, mesmo que a linguagem se transforme.

Antolha-se-me que La Boîte à Joujoux contém a síntese de vários procedimentos empregados por Debussy, por vezes num despojamento essencial, e que a escritura do ballet pour enfants revela elementos estilísticos inalienáveis do autor que serão projetados poucos anos após. O Étude pour les arpèges composés (1915), como um exemplo basilar, contém diversos compassos que fazem lembrar segmentos de La Boîte à Joujoux.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, o Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

No Youtube há várias versões para La Boîte à Joujoux a partir do original para piano solo: piano e algumas ilustrações, piano e declamação – frases da história contidas na partitura -, piano e teatralização, orquestra…
Como asseverei no blog anterior, sempre que apresentei em público La Boîte à Joujoux tinha em mente a criação de Debussy como composição que se sustenta independentemente de outros recursos. Interpretei-a em recitais no Brasil e no Exterior na formatação original e o público sempre compreendeu a mensagem intrínseca. Contudo, mercê dos avanços da internet, a inclusão das frases e das ilustrações não apenas norteia o ouvinte-leitor, como não interfere minimamente no discurso musical, antes, corrobora o entendimento. E possibilita em acréscimo o recurso de novamente se ouvir e se ver de imediato frase ou frases não inteiramente entendidas durante a execução de determinada passagem.

Sem contar determinadas criações, como Petite Suite (piano a quatro mãos, 1888-1889), Children’s Corner (1906-1908) e La Boîte à Joujoux (1913), seria esta última a que apresenta tardiamente aspectos mais descontraídos e lúdicos, sem que o rigor estrutural perca a absoluta coerência. Foi Georges Ricou, secretário geral da Ópera-Cômica, que sugeriu a André Hellé apresentar o projeto do ballet a Debussy. Isso feito, ao responder ao autor do texto e das ilustrações, convidando-o a visitá-lo, Debussy escreve: “Acredite de bom grado que a sua ideia de um ballet não pode me deixar indiferente” (14/02/1913). A se ler, a adorada filha Claude-Emma (Chouchou – 1905-1919) estará sempre presente durante a criação. Como André Hellé obtivera sucesso com seus vários livros para crianças, entre os quais L’Arche de Noé e Les Facéties de Topsy, chien mácanique, aceitação também conseguira pelos papéis com pequenas ilustrações de bichinhos. Debussy lhe escreve para agradecer esses papéis: “Chouchou me disse que só pode escrever sobre o seu papel. Poderíamos contestá-la por essa precoce marca de gosto e de alegria?” (22/06/1913). Vítima de difteria, Chouchou faleceu aos 13 anos, pouco mais de um ano após a morte do pai.

Creio de interesse para o leitor determinadas frases da correspondência de Debussy a André Hellé. Mantêm as missivas muito do charme existente na composição.

Durante a criação, escreve a Hellé: “Desde que você acertadamente deseja que a rosa tenha importância, porque não inseri-la na primeira página? Na realidade, tudo nessa pequena tragédia resulta numa rosa descartada! Desde a existência das mulheres e das rosas, é a eterna história” (25/07/1913). Hellé insere a rosa naquele espaço, após carta de Debussy quatro dias depois, na qual ratifica: “Pediria que colocasse a rosa na capa da partitura, sob o título La Boîte à Joujoux…, pois isso resultaria em surpresa nas páginas seguintes. Aliás, essa rosa tem a mesma importância de qualquer outro personagem”. Acrescentaria o fato de que na página dos personagens – boneca, soldado e polichinelo – há, logo abaixo, o “tema” da rosa sobre o desenho, e os instigantes sinais são inequívocos, pois uma pausa de semínima com fermata e mais o sinal decrescente em direção a um pp, silêncio absoluto pois, ratificam, nessa singela anotação, o fato de que 80% da opera omnia de Debussy se situar nas baixas intensidades, configurando uma de-dinamização. Nas 25 ilustrações constantes da edição de 1913 (Durand), por 11 vezes a rosa estará presente!

A respeito de uma futura apresentação de La Boîte à Joujoux, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand que “a mise en scène não necessita de um mestre de ballet, pois no transcorrer da obra tem-se preferencialmente movimentos e não Passos de ballet” (19?/05/2014).
Após a morte de Debussy, André Hellé escreve à viúva do compositor, Emma Debussy: “Choro o amigo que partiu e com emoção me lembro da grande confiança que ele em mim depositou. Evoco, estarrecido, as horas cruéis e todos os sofrimentos dele, assim como os seus. Contudo, quero pensar que Debussy não pode morrer” (27/03/1918). Tradução: J.E.M.

E não morreu. Continua a ser um dos compositores mais frequentados, geralmente através de suas obras sacralizadas há bem mais de um século. La Boîte à Joujoux pouco a pouco desperta o interesse dos pianistas, independentemente de texto e imagens. Aguardemos esses passos.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les note répétées, na interpretação de J.E.M. Não é difícil detectar nesse magnífico Estudo, composto dois anos após La Boîte à Joujoux, eflúvios emanados do ballet pour enfants:

https://www.youtube.com/watch?v=yFwQ_iiSVZI

Para o leitor que não teve acesso ao blog anterior, insiro novamente o link de La Boîte à Joujoux, gravação que realizei na Capela de Saint-Hilarius, Mullem, Bélgica, para o selo De Rode Pomp (2002):

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU


I have received numerous e-mails requesting further information about the genesis of “La Boîte à Joujoux”. After considerations, I insert passages of letters from Debussy to André Hellé, author of the text and the illustrations of “ballet pour enfants”, as well as two Études pour piano which, despite their abstract genre, contain effluvia from “La Boîte à Joujoux”.

 

Intenção se realiza

Agora eu extraio as confidências das velhas bonecas de Chouchou e aprendo a tocar tambor, pensando em La Boîte à Joujoux.
Claude Debussy (carta ao seu editor Jacques Durand, 25/07/2013)

O dileto amigo Elson Otake, responsável pela introdução de minhas gravações no Youtube desde Julho de 2010, sempre me provocava: “precisamos postar La Boîte à Joujoux no Youtube”. Primeiramente relutei, mercê do aguardo dos 70 anos da morte do autor da história e das ilustrações de La Boîte…, André Hellé (1871-1945), prazo determinante relativo aos direitos autorais. Em segundo lugar, fazia-se necessária a colocação da obra no Youtube não apenas através da música, mas também com as singelas pinturas e o texto que acompanham o discurso musical de  Claude Debussy. Outras introduções de minhas gravações no aplicativo que exigiram um debruçamento maior, como Viagens na Minha Terra de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), ou mesmo as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste de Francisco de Lacerda (1869-1934) e as seis Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau (1660-1722), foram minuciosamente montadas por Elson Otake. Quanto às Sonatas Bíblicas, primeira obra programática na história para teclado, a inserção no Youtube foi minuciosamente planejada. La Boîte à Joujoux não deixa de ser uma obra programática, com as frases seguindo o desenrolar do discurso musical.

A insistência de Elson resultou. Para amenizar a montagem, sempre realizada na plena amizade, inicialmente quis poupá-lo, pois não adicionaria o texto que segue paralelo na partitura. Elson não desistiu e voltou a sugerir. Acatei e dediquei-me à rígida cronometragem para que esses “acoplamentos” se dessem como se deve. Não contente, Elson sugeriu fazer também a versão para o inglês. Consultei minha dileta amiga, Professora Jenny Aisenberg, que se encarregou generosamente da impecável versão. Música, ilustrações e texto bilíngue tiveram a cuidadosa edição de Elson para essa singularíssima composição de Debussy. O amálgama se deu.

A criação mágica de Debussy não surgiu espontaneamente. André Hellé (1871-1945), pintor e escritor francês, autor de várias obras dedicadas ao universo infantil, propôs a Debussy, em Fevereiro de 1913, a criação musical para um ballet pour enfants. Apesar de ser um ballet para crianças e tendo já dedicado à sua filha Claude-Emma (Chouchou) a suíte Children’s Corner (1906-1908), interessou-se pela temática e pelas singelas ilustrações, compondo no mesmo ano La Boîte à Joujoux, publicada pela editora parisiense A. Durand & Fils no final de 1913. Em espaço relativamente curto, Debussy compõe seus três ballets: Khamma (1911-1912), Jeux (1912-1913) e La Boîte à Joujoux (1913), os dois primeiros para orquestra, e La Boîte…, original para piano e orquestrada após por André Caplet. A primeira audição se deu nesse formato em Paris, em 10 de Dezembro de 1919, não com marionetes, como desejava Debussy, mas sim com personagens.

Essa sensível criação, Debussy, como fizera anos antes com a suíte Children’s Corner, dedicou La Boîte à Joujoux à sua filha Chouchou. Escreve a Jacques Durand aos 27 de Julho de 1913: “… a alma das bonecas é mais misteriosa  do que Maeterlinck supõe e suporta mal a falsidade na qual se acomodam tantas almas humanas”.

Em La Boîte à Joujoux Debussy revisita sutilmente ideias contidas em Children’s Corner, em alguns Préludes, reutiliza o tema de Le petit nègre (1909) quando da apresentação do Le soldat anglais no primeiro quadro, aproveita o tema do coro dos soldados da ópera Fausto, de Gounod, quando da “tropa em marcha” do segundo quadro, a Marcha Nupcial de Mendelssohn ao final do terceiro quadro, assim como temas de cariz popular, como Il pleut bergèreFanfan la Tulipe, en avant. Sob a égide do pós-criação, Debussy lembrar-se-á de algumas ideias de La Boîte à Joujoux ao compor as duas magníficas Sonatas para violoncelo e piano (1915) e violino e piano (1916-1917).

Por duas vezes dei palestras na École Pratique des Hautes Études em Paris, a convite do notável musicólogo François Lesure, a grande referência sobre Debussy na segunda metade do século XX (vide blogs “François Lesure – 1923-2001). Uma a ratificar, através de provas, o fato de ser La Boîte à Joujoux obra original para piano, pois várias integrais para piano a descartavam, considerando-a uma redução da partitura de orquestra. Talvez essa teria sido a razão pela qual um dos mais importantes biógrafos de Debussy, Edwardo Lockspeiser, tê-la considerado uma obra menor.  Uma segunda palestra, a demonstrar que La Boîte… “descendia” dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, criação igualmente lúdica (J.E.M. “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Cahiers Debussy nº 9, Centre de Documentation Claude Debussy, Ircam, Paris, 1985). Em 2002, gravei La Boîte à Joujoux para o selo belga De Rode Pomp, assim como os Quadros de uma Exposição, ratificando as propostas apresentadas.

Creio ter sido o primeiro a apresentar La Boîte… no Brasil, no longínquo 1973, continuando a apresentá-la unicamente com o conteúdo musical depositado na partitura. Apesar de pouco frequentada pelos pianistas, mais voltados às obras de Debussy ventiladas desde a existência do compositor e insistentemente repetidas, sempre que interpreto La Boîte à Joujoux a recepção, pelo encantamento dessa criação, tem sido um grande estímulo.

Já lá se vão mais de oito décadas e um dos maiores privilégios na minha vida musical foi ter sido o pianista convidado para festejar o centenário de La Boîte à Joujoux, interpretando-a na casa onde nasceu Debussy, hoje museu que leva seu nome, em Saint-Germain-en Laye, aos 4 de Janeiro de 2014 (vide blog: “Centenário de ‘La Boîte à Joujoux’, de Debussy” 04/01/2014). Interpretei-a com comentários iniciais do competente cantor lírico, comediante e metteur en scène Alexandre Martin-Varroy, que meses após encenaria La Boîte à Joujoux com outros atores a partir da partitura para piano. Na segunda parte toquei os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “La Boîte à Joujoux”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU

“The Toy Box” by Claude Debussy, from a story written and illustrated by André Hellé, is one of the most expressive works of the composer, but little performed by pianists. Originally composed for piano, for decades it was understood as a reduction from orchestra, a fact that corroborated the little publicity the work received. My dear friend Elson Otake, responsible for introducing my recordings on Youtube, has made a careful editing, preserving all of André Hellé’s illustrations as well as the narrative content that accompanies the score, both in the original French and in English.