Conceitos do compositor, pensador e místico

Todos nós somos
Fluxo amoroso
Do instante em direção à eternidade, ao infinito
Da tristeza petrificada em direção à transparência clara
Sobre a pedra,
Pelo fogo da criação,
Nós gravamos
Tua face divina.
Alexandre Scriabine
(Extraído do “L’acte préalable”)

Chamou-me a atenção o número de mensagens solicitando incluir um post com os pensamentos de Scriabine voltados ao misticismo, às reflexões sobre a condição do homem e até, por vezes, ao visionarismo nítido. Na medida em que Scriabine deixa suas anotações nos carnets, que trazia sempre consigo, criações musicais são compostas sob a égide desses estágios do pensar místico e sua linguagem se encaminha para patamares que o consagram como um dos maiores inovadores da escrita musical.

Marina Scriabine, renomada musicóloga e filha do compositor, sintetiza os almejos de seu pai voltados a uma constante descoberta: “O fulcro dessa experiência, que se modificou em certos termos no curso do desenvolvimento da personalidade do artista, fundamentava-se na consciência a mais profunda de si mesmo, de um princípio, seu ‘grande Eu’, a certeza absoluta de uma total liberdade cujo conhecimento o preenchia de uma alegria iluminada, de uma plenitude de ser e de um desejo de comunicar essa alegria e essa liberdade a todos os homens e ao universo inteiro. O instrumento dessa livre pujança era a arte, capaz de agir sobre o universo espiritual, mas também material” (Alexandre Scriabine, “Notes et Réflexions”, traduction et présentation, Marina Scriabine, Paris, Klincksiek, 1979).

Seria possivelmente o problema físico que acometeu sua mão direita nas fronteiras dos 20 anos (vide blog 15/01/2022) que predispõe de maneira mais acentuada a sua crise de ordem mística.

Para a compreensão da linguagem musical de Scriabine e de suas transformações, necessário partir-se do testemunho de Marina Scriabine a respeito desse mal que o atingiu: “Pela primeira vez, ele se via frente à hostilidade do mundo exterior, material, que se opunha à sua pujança criativa. Contudo, o abatimento, a resignação ou o desespero eram opostos à sua verdadeira natureza e seu forte elã criativo, que não seriam vencidos por desígnios contrários. Naquele ser frágil, nervoso, hipersensível se revelava uma vontade singular. Ao médico que vaticinou ser impossível solucionar seu problema da mão direita, ele respondeu ‘Sim, é possível’. Após meses de perseverantes esforços, reencontra sua técnica e continuaria sua carreira como pianista. Ao longo da crise, refletiu longamente. A revolta contra Deus e as leis do universo material, ao invés de abatê-lo, fortificou sua confiança nas forças interiores. Foi quando ele tomou consciência progressiva de seu ‘grande EU’, livre e divino, oposto ao ‘pequeno eu’ do indivíduo Alexandre Scriabine, submetido às limitações do espaço e do tempo”.

À medida que mencionarei vários escritos de Scriabine, colocarei obras pertencentes às diversas fases que demonstram as transformações escriturais provocadas pelo aprofundamento místico. Os 12 Estudos op. 8 estão imbuídos do pleno espírito romântico, sem descartar a influência dos Estudos de Chopin.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 8 nº 9, Alla Ballata (1894), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=WnJgD_lypLM

No início do século XX, Scriabine lê com entusiasmo obras de Nietzsche e esboça uma ópera que será abortada. À época, desabrochava um Scriabine voltado às possibilidades infindas do homem nesse direcionamento voltado ao Cosmos, poderoso quando sente a “atuação” desse grande EU através da Arte. Essa experiência, como bem salientam seu biógrafo Boris de Schloezer (vide os dois blogs anteriores) e Marina Scriabine, é fruto do interior do homem em seus almejos reflexivos, mas a vivenciar o cotidiano apenas como cotidiano. Scriabine fixara o êxtase cósmico como meta, princípio que o acompanhou durante a existência, pois esse objetivo fora determinado pelo Único, como afirma o compositor: “A individualidade é a taça na qual o Único bebe o vinho do sofrimento e da alegria”. É importante entender que ao compor, mormente na última década de vida, Scriabine tinha a absoluta certeza de que sua criação era gestada através do grande EU, o que implicaria a apreensão do conhecimento pleno do mundo e o seu direcionamento ao Único, à Divindade, a Deus. Apesar de ter elaborado um processo de composição, acreditava que a teoria só poderia ser entendida se resultasse na criação a partir dessa interiorização conceitual, o viver o EU, longe de um cotidiano com conteúdo até superficial, sendo a experiência interior, espiritualizada, fonte para as composições nascidas sob essa égide.

O início do século XX já evidencia um encaminhamento em direção à linguagem musical com características próprias. Se os Estudos op. 42 (1903) já se afiguram com perspectivas de transição num período em que há lembranças de uma admiração pelas criações de Liszt, consolidava-se a tendência voltada ao misticismo como meio de se chegar ao Único e ao Cosmos, palavras onipresentes no vocabulário de Scriabine.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 42 nº 1, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

Nos quatro cahiers de notas íntimas, Scriabine está em permanente debate com o pequeno eu e o grande EU. Nega-se, mas exalta-se. Há o nítido anseio por essa ligação com o Único. Deus é sempre presente, mas o sentir-se um nada também. Quando em exaltação, une-se ao Único em direção ao Cosmos. Esse constante debate influenciará decididamente sua escrita.

O primeiro cahier é breve e finda em 1904, mas há conceitos sobre a criação: “Nada explica a criação. Ela é a mais elevada representação (conceito), pois ela produz todos os conceitos. Eu digo que a criação é a distinção; criar alguma coisa quer dizer limitar uma coisa por uma outra. Mas isso não explica a criação. A distinção é também uma certa representação espacial e temporal. A distinção não explica o espaço e o tempo, porque ela não pré-existe ao espaço e ao tempo. Em geral é necessário compreender que explicar inteiramente a criação é impossível”.

No segundo cahier (1904-1905), nota 18, escreve em “versos” livres, a enfatizar esse Eu em permanente dialética.

Eu não sou nada
Eu sou a espera, eu sou a sensação
Eu sou o mundo
Lembrança e sonho
… Eu sou Deus
Eu não sou nada, eu sou a liberdade, eu sou a vida,
Eu sou o limite, eu sou o cimo
Eu sou Deus
Eu sou realização, Eu sou beatitude
Eu sou a paixão que consome tudo, que engole tudo
Eu sou o incêndio que invade o universo
E o precipita nos abismos do caos
(Eu sou o repouso) eu sou o caos
Eu sou o jogo cego das forças dissolvidas
Eu sou a consciência adormecida, a Razão extinta
Tudo está fora de mim
Eu sou a multidão indiferente.
Eu perdi a liberdade
Perdi a consciência
E só seu reflexo
Reside em mim
Como um elã cego
Do centro
Do sol
Do reflexo
De minha Divindade passada,
Que me esmaga no presente
Em direção à liberdade
Em direção à unidade
Em direção à consciência
Em direção à verdade
Em direção a Deus
Em direção a mim
Em direção à vida
Ó vida, elã criador (desejo)
Elã que cria tudo
Fora do centro, eternamente fora do centro
Em direção à liberdade
Em direção à consciência

Na anotação 19, escreve:

“Vós, sentimentos de angústia, religião, arte, ciência, toda a história do universo, vós sois as asas sobre as quais eu voei até as alturas. Mas vós não sois apenas asas, vós sois minha exaltação, minhas carícias, o jogo do meu capricho. Vosso lema: sempre o novo, de qualquer outro”.

Na de número 74

“Ama a vida de todo o teu ser e tu serás sempre feliz. Não temas ser aquilo que almejas, não temas teus desejos. Não temas a vida, tampouco os sofrimentos, pois não há maior vitória sobre  o desespero. Tu deves ser sempre radiante”.

Desse período, Feuillet d’Album, a primeira de três peças op. 45 (1904). Em 1960, o notável compositor Camargo Guarnieri disse-me que considerava o andante da Sonata nº 4, op. 30Feuillet d’album, op. 45 nº 1 como  obras pertencentes à “quinta-essência” musical.

Clique para ouvir, de Scriabine, Feuillet d’album op. 45 nº 1 (1904), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M

No terceiro cahier (1905-1906), Scriabine lança conceitos sobre o universo, sua criação e tem interesse o debruçamento sobre sua consciência pessoal: “O que ela representa em si como PORTADORA de certos elãs? A cada minuto eu experimento algo e disso tenho consciência, pois se trata da minha vida pessoal. Apresento-me como portador de uma vida pessoal que, em assim sendo, é a LIGAÇÃO dos fatos de minha experiência pessoal e nada mais, e minha consciência, como ‘mensageira’, é somente a atividade que elabora essa ligação, e nada mais. Assim, minha consciência pessoal é uma atividade que produz muito, quero dizer, que analisa e liga muitas coisas em um todo, que sintetiza”.

Entre 1911-1912, Scriabine compõe os três Estudos op. 65, seus últimos do gênero. A respeito do 0p. 65 nº 1, para o intervalo de nonas, escreve ao seu amigo Sabaneeff, um de seus biógrafos: “que depravação”. Apesar de apresentar em público o seu complexo repertório, suas mãos não lhe permitiam a abertura necessária para o intervalo de nonas no que concerne ao singular Estudo.

Durante a atividade paralela à composição, Scriabine interpreta, após os anos juvenis, recitais apenas com suas obras, muitas delas entre as mais virtuosísticas escritas para o piano. Um de seus mais importantes biógrafos, Faubion Bowers (1917-1999), consagra em três volumes, com farta documentação, o trilhar de Scriabine nessas duas abrangências e os respectivos programas apresentados nas salas de concerto (Faubion Bowers, “Scriabin, a Biography of the Russian Composer”, Tokio and Palo Alto (California), Kodansha, 1970, 2 volumes e “The New Scriabin-Enigma and Answer”, New York, St. Martin’s Press, 1973). Recebi carta de Faubion Bowers semanas após ter apresentado, em Junho de 1977, a primeira audição no Brasil (São Paulo, MASP) dos 26 Estudos de Scriabine. Escrevia o ilustre biógrafo, referindo-se inclusive ao Estudo op. 65 nº 1: “Penso que os opus 8, 42 e 65, com os curtos Estudos do início e intermediários, formam um maravilhoso programa. Como foi sua execução do Estudo das nonas?  Uma parada dura, não acha?”.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1911-1912), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

O quarto cahier (1914) expõe a primeira versão do “L’Acte Préalable”, escrito que permaneceu do grande projeto de Scriabine. Texto contemporâneo das últimas Sonatas e do Poema Vers la Flamme.

Desde 1903 Scriabine já idealizava a criação daquela que deveria ser sua mais importante obra, Mystère, que avançaria ainda mais após as tantas inovações em Prométhée, le poème du feu (1908-1910). Seria uma obra total. Escreve: “Não haverá um personagem secundário, todos serão participantes. A representação exigirá pessoas e artistas particulares, e uma cultura completamente nova”. Scriabine a seguir destaca que se estaria diante de uma obra de comunhão global. O Mystère seria tão amplo que sua duração se prolongaria por sete dias, no Himalaia ou na Índia. Chegou a desenhar esboços gráficos. Marina Scriabine escreve: “Sem dúvida é a liturgia que pode fornecer uma imagem aproximada do Mystère. O Apocalipse nos propõe a imagem de uma vida transfigurada sob o aspecto de uma liturgia celeste. Nada falta: nem o altar, nem o incenso, tampouco os oficiantes, divididos em coros hierarquizados, dispostos em torno de uma vítima glorificada. O Mystère era também idealizado como uma liturgia de dimensão cósmica: a humanidade inteira deveria participar do ato libertador que, pela pujança da arte, a conduziria ao êxtase final e à união com o Único”.

A prematura morte de Scriabine em 1915, aos 43 anos, abortou a concepção ampla do Mystère. Restaria o “Acte préalable”, texto que bem faz entender as intenções de um compositor singularíssimo, um dos maiores mestres da composição.

Clique para ouvir o Poème de l’Extase de Scriabine, na interpretação da Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt, sob a regência de Markus Stenz:

https://www.youtube.com/watch?v=xQwLcKTAtfs

Estou a me lembrar de que, ainda na metade do século XX, Scriabine não granjeara o merecido lugar entre os mais ventilados compositores. Sim, era tocado, majoritariamente pelos pianistas russos. O boom a seguir foi extraordinário e hoje Scriabine está presente no repertório de quase todos os intérpretes. Proliferaram as gravações de alto nível, tanto para as obras para piano solo como para as orquestrais. Um compositor excelso. Um de meus eleitos.

Alexandre Scriabine’s thought is transformed as his mysticism grows. The influence of his thinking is evident when he is creating and his inner self surfaces. He left four notebooks with his writings, the last one with the “L’Acte Préalable” of what would be his greatest work: Le Mystère. His early death interrupted the project before it was finished.