Intenção se realiza

Agora eu extraio as confidências das velhas bonecas de Chouchou e aprendo a tocar tambor, pensando em La Boîte à Joujoux.
Claude Debussy (carta ao seu editor Jacques Durand, 25/07/2013)

O dileto amigo Elson Otake, responsável pela introdução de minhas gravações no Youtube desde Julho de 2010, sempre me provocava: “precisamos postar La Boîte à Joujoux no Youtube”. Primeiramente relutei, mercê do aguardo dos 70 anos da morte do autor da história e das ilustrações de La Boîte…, André Hellé (1871-1945), prazo determinante relativo aos direitos autorais. Em segundo lugar, fazia-se necessária a colocação da obra no Youtube não apenas através da música, mas também com as singelas pinturas e o texto que acompanham o discurso musical de  Claude Debussy. Outras introduções de minhas gravações no aplicativo que exigiram um debruçamento maior, como Viagens na Minha Terra de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), ou mesmo as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste de Francisco de Lacerda (1869-1934) e as seis Sonatas Bíblicas de Johann Kuhnau (1660-1722), foram minuciosamente montadas por Elson Otake. Quanto às Sonatas Bíblicas, primeira obra programática na história para teclado, a inserção no Youtube foi minuciosamente planejada. La Boîte à Joujoux não deixa de ser uma obra programática, com as frases seguindo o desenrolar do discurso musical.

A insistência de Elson resultou. Para amenizar a montagem, sempre realizada na plena amizade, inicialmente quis poupá-lo, pois não adicionaria o texto que segue paralelo na partitura. Elson não desistiu e voltou a sugerir. Acatei e dediquei-me à rígida cronometragem para que esses “acoplamentos” se dessem como se deve. Não contente, Elson sugeriu fazer também a versão para o inglês. Consultei minha dileta amiga, Professora Jenny Aisenberg, que se encarregou generosamente da impecável versão. Música, ilustrações e texto bilíngue tiveram a cuidadosa edição de Elson para essa singularíssima composição de Debussy. O amálgama se deu.

A criação mágica de Debussy não surgiu espontaneamente. André Hellé (1871-1945), pintor e escritor francês, autor de várias obras dedicadas ao universo infantil, propôs a Debussy, em Fevereiro de 1913, a criação musical para um ballet pour enfants. Apesar de ser um ballet para crianças e tendo já dedicado à sua filha Claude-Emma (Chouchou) a suíte Children’s Corner (1906-1908), interessou-se pela temática e pelas singelas ilustrações, compondo no mesmo ano La Boîte à Joujoux, publicada pela editora parisiense A. Durand & Fils no final de 1913. Em espaço relativamente curto, Debussy compõe seus três ballets: Khamma (1911-1912), Jeux (1912-1913) e La Boîte à Joujoux (1913), os dois primeiros para orquestra, e La Boîte…, original para piano e orquestrada após por André Caplet. A primeira audição se deu nesse formato em Paris, em 10 de Dezembro de 1919, não com marionetes, como desejava Debussy, mas sim com personagens.

Essa sensível criação, Debussy, como fizera anos antes com a suíte Children’s Corner, dedicou La Boîte à Joujoux à sua filha Chouchou. Escreve a Jacques Durand aos 27 de Julho de 1913: “… a alma das bonecas é mais misteriosa  do que Maeterlinck supõe e suporta mal a falsidade na qual se acomodam tantas almas humanas”.

Em La Boîte à Joujoux Debussy revisita sutilmente ideias contidas em Children’s Corner, em alguns Préludes, reutiliza o tema de Le petit nègre (1909) quando da apresentação do Le soldat anglais no primeiro quadro, aproveita o tema do coro dos soldados da ópera Fausto, de Gounod, quando da “tropa em marcha” do segundo quadro, a Marcha Nupcial de Mendelssohn ao final do terceiro quadro, assim como temas de cariz popular, como Il pleut bergèreFanfan la Tulipe, en avant. Sob a égide do pós-criação, Debussy lembrar-se-á de algumas ideias de La Boîte à Joujoux ao compor as duas magníficas Sonatas para violoncelo e piano (1915) e violino e piano (1916-1917).

Por duas vezes dei palestras na École Pratique des Hautes Études em Paris, a convite do notável musicólogo François Lesure, a grande referência sobre Debussy na segunda metade do século XX (vide blogs “François Lesure – 1923-2001). Uma a ratificar, através de provas, o fato de ser La Boîte à Joujoux obra original para piano, pois várias integrais para piano a descartavam, considerando-a uma redução da partitura de orquestra. Talvez essa teria sido a razão pela qual um dos mais importantes biógrafos de Debussy, Edwardo Lockspeiser, tê-la considerado uma obra menor.  Uma segunda palestra, a demonstrar que La Boîte… “descendia” dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, criação igualmente lúdica (J.E.M. “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”. Cahiers Debussy nº 9, Centre de Documentation Claude Debussy, Ircam, Paris, 1985). Em 2002, gravei La Boîte à Joujoux para o selo belga De Rode Pomp, assim como os Quadros de uma Exposição, ratificando as propostas apresentadas.

Creio ter sido o primeiro a apresentar La Boîte… no Brasil, no longínquo 1973, continuando a apresentá-la unicamente com o conteúdo musical depositado na partitura. Apesar de pouco frequentada pelos pianistas, mais voltados às obras de Debussy ventiladas desde a existência do compositor e insistentemente repetidas, sempre que interpreto La Boîte à Joujoux a recepção, pelo encantamento dessa criação, tem sido um grande estímulo.

Já lá se vão mais de oito décadas e um dos maiores privilégios na minha vida musical foi ter sido o pianista convidado para festejar o centenário de La Boîte à Joujoux, interpretando-a na casa onde nasceu Debussy, hoje museu que leva seu nome, em Saint-Germain-en Laye, aos 4 de Janeiro de 2014 (vide blog: “Centenário de ‘La Boîte à Joujoux’, de Debussy” 04/01/2014). Interpretei-a com comentários iniciais do competente cantor lírico, comediante e metteur en scène Alexandre Martin-Varroy, que meses após encenaria La Boîte à Joujoux com outros atores a partir da partitura para piano. Na segunda parte toquei os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “La Boîte à Joujoux”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nGug1ZFxKU

“The Toy Box” by Claude Debussy, from a story written and illustrated by André Hellé, is one of the most expressive works of the composer, but little performed by pianists. Originally composed for piano, for decades it was understood as a reduction from orchestra, a fact that corroborated the little publicity the work received. My dear friend Elson Otake, responsible for introducing my recordings on Youtube, has made a careful editing, preserving all of André Hellé’s illustrations as well as the narrative content that accompanies the score, both in the original French and in English.