Alterações através da História

Diante de uma obra que escutamos,
que interpretamos ou que compomos,
necessário se faz um respeito profundo
como frente à existência.
Como se fosse uma questão de vida ou morte.
Pierre Boulez (1925-2016)

Foram inúmeras mensagens comentando as interpretações da notável pianista venezuelana Teresa Carreño datadas de 1905 e apresentadas no post de seis de Agosto. Incrédulos, diversos leitores apontaram a extrema virtuosidade e empolgação da pianista, mas igualmente suas arbitrariedades, essas louvadas no período por ilustres coetâneos, exceção à opinião do compositor Edvard Grieg, do qual Carreño foi digna intérprete.

Naturalmente a interpretação através da História sofreu alterações, por vezes intensas. Se pensarmos que em 1906 Santos Dumont realizou o seu primeiro voo no Campo de Bagatelle em Paris com o 14-Bis, podemos refletir mais acentuadamente sobre o que ocorreu com a interpretação nesses 116 anos após as gravações de Teresa Carreño entre 1905-1908. Seria impossível não haver alterações na maneira de se interpretar uma composição. A única âncora que sustenta a manutenção básica da interpretação, tênue por vezes, é a partitura. É ela que possibilita ao intérprete as viagens pelo imaginário através das oscilações de seu pensar. É ela, origem originária, pois fixada, que não se pode transgredir arbitrariamente, alterando-a no decurso da História. A partitura é a estrela guia da interpretação.

A partir do século XIX, os compositores fixaram indicações suplementares para a exata execução. Em 1812, Dietrich Nikolaus Winkel (1777-1826) inventou o metrônomo, patenteado em 1816 por Johann Maelzel (1772-1838). Compositores passaram a assinalar marcações, orientando os intérpretes quanto à “exata” medida para os andamentos. Doravante, um pouco por analogia, acelerou-se a inclusão de sinais concernentes à agógica, acentuação e dinâmica. O século XIX assistiu a esses cuidados dos compositores. Claude Debussy (1862-1918) assinalou todas as suas intenções quanto à execução e ao mood e, nem sempre, paradoxalmente, preocupou-se com as indicações metronômicas, inserindo apenas o andamento norteador, assim mesmo, preferencialmente, de maneira a incentivar a imaginação. Quantas não teriam sido as circunstâncias para o esquecimento de um compositor relacionadas à indicação metronômica inserida sim, mas bem posteriormente, pelo arbítrio de um revisor ou editor?

Veio-me a lembrança fato ocorrido na década de 1970. Minha dileta amiga e boa pianista francesa Odile Robert recomendou-me a uma Diretora de renomado selo parisiense, a fim de gravar a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) ao piano. Diplomaticamente, a senhora me afirmou que Rameau só seria admitido ao cravo, pois a interpretação ao piano desfigurava as intenções do compositor, tornando-as arbitrárias. Respondi-lhe a mencionar a excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958), que gravara a integral na década em 1957 (vide blog: “Marcelle Meyer – a redescoberta merecida”, 06/03/2007). Considerou a dirigente em nosso diálogo que não mais se pensava assim em França e que a crítica seria fatalmente severa. Acabei gravando em 1997 em Sófia, na Bulgária, e o álbum duplo saiu poucos anos após pelo selo De Rode Pomp da Bélgica Flamenga, selo esse responsável por metade de meus 25 CDs gravados no Exterior. Décadas se passaram e mais gravações ao piano da integral do Mestre de Dijon surgiram na França. Uma delas, saudada pela crítica, friso, hoje concentrada nos veículos online, recebeu elogios rasgados e, pasmem os leitores, apesar das inúmeras “improvisações” por pianista consagrado nas salas espalhadas pela Europa! Grotescas, beiram o diletantismo.  Entendo-as um acinte. Sinais dos tempos, que bem indicam que essa flutuação da interpretação através da História teria sido assimilada por parte da crítica que, no caso em consonância com a recepção pública em França, deveria ser severíssima, assim penso. Quantos não foram os impactos, sob todas as esferas das Culturas – assim preferia o notável Alfredo Bosi, pluralizar o termo dando-lhe abrangência, estendendo o seu sentido (“Dialética da Colonização”, Companhia das Letras, 1992) – que, por osmose, influenciaram a interpretação? Não estaria inserido o conceito de Mario Vargas Llosa, que vê irreversibilidade na decadência da cultura erudita face às transformações do mundo atual?

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, Les Niais de Sologne, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700

Questionaram-me também sobre a adaptação às mudanças interpretativas. Creio que ela existe e, como quase tudo no cotidiano, o homem acaba se habituando. Será lógico entender que, se houver um distanciamento longo, as diferenças se acentuam, caso específico das interpretações de Teresa Carreño (1853-1917) e Ferrucio Busoni (1866-1924), se comparadas forem suas gravações àquelas que norteiam a maioria dos intérpretes atuais, preferencialmente os mais jovens. Do 14-Bis aos aviões hipersônicos, que chegam a atingir velocidades acima do Mach 5, fica a mensagem de um caminho absoluto da tecnologia. Impossível não haver transformação interpretativa tendo a âncora a sustentá-la. Difere da tecnologia a ação da interpretação, mercê da imperiosa necessidade de se manter a tradição, essa também sujeita às flexibilizações. Sabe-se que ela existe e regressamos à âncora, pois. Uma outra exemplificação mostraria o notável pianista Alfred Cortot (1877-1962), que, ao interpretar obras mais lentas, tantas vezes num paralelismo absoluto das mãos fixado na partitura, com uma delas realizava ligeira defasagem na execução em relação à outra. Essa prática, empregada por vários de seus coetâneos, caiu em desuso. Outras tantas, como o excesso de rubato ou a leitura a seguir um livre arbítrio “monitorado”, tão frequente entre inúmeros ilustres pianistas de antanho, tiveram “cerceamento” por parte dos mais puristas, haja vista aquilo que denomino “pasteurização” interpretativa quando nos referimos aos concursos internacionais. Jovens talentosos, notáveis em suas execuções tantas vezes acrobáticas, não se desviam de mínimas normas que podem causar a eliminação. Cerceia-se, pela necessidade imperiosa da observância ao que está escrito, mas igualmente pela acomodação das consciências dos jurados, que têm menor trabalho nas decisões. Pequenas imperfeições do candidato no que tange à falha de memória ou às notas falhas, os denominados esbarros, como exemplos, já simplificam decisões que fatalmente excluem participantes. Não por acaso, em meus tempos a estudar em Paris, nas fronteiras das décadas 1950-1960, concorrentes eram denominados bêtes à concours. Paradoxalmente, sob a égide da tradição, a pasteurização tem um lado benéfico. A traditio, apesar dessas alterações que impactam o público, ainda sobrevive graças à partitura, elo fulcral da sobrevivência de uma composição.

Dias atrás, em conversa com um caro amigo que assistira ao recital de uma aclamada pianista que visitava o Brasil, disse ele que gostou imenso da apresentação, apesar de certo exageros extramusicais. Considerei que, diferentemente dos pianistas de antanho, em que o gesto era minimamente realizado e o vestuário padronizado, a importância maior por parte do intérprete era a transmissão da mensagem musical. O público entendia lindamente essas posturas. Presentemente não são poucos os pop stars da pianística erudita que têm no extramusical um de seus sustentáculos, apesar de, majoritariamente, serem exímios executantes. Acionei meu celular e mostrei uma pianista do leste europeu a tocar Clair de Lune, de Debussy, com as duas peças mais íntimas do vestuário feminino. Sinais dos tempos.

Nos meus 84 anos pouco posso antever para o futuro, mas a entrevista, há menos de uma década, do diretor do Conservatório de Pequim para o “Le Monde”, já mencionada em posts anteriores, apontava para norteamentos. Dizia ele àquela altura que, em pouco tempo, os pianistas chineses seriam os mais velozes do mundo. Não disse “os melhores músicos”. O atletismo e seus recordes a serem batidos, tendo o cronômetro como imperativo “metrônomo” dos tempos hodiernos, contagiam a interpretação no aspecto virtuosismo, que impacta plateias afeitas. Gestualidade e suas implicações, sob outra égide, sofrem injunções das tantas transformações sociais. O imediatismo, as fulminantes mudanças tecnológicas e, consequentemente, dos costumes impedem uma das qualidades inalienáveis do homem, a reflexão. Possivelmente a sua ausência tenha efeito na interpretação, pois oblitera desideratos mais concentrados na essência essencial da atividade do intérprete. E onde ficaria a reflexão quanto ao que deveria ser assimilado? Não é improvável que um dia, talvez não tão distante, a palavra reflexão seja considerada arcaica e, após algumas décadas mais, desapareça dos dicionários futuros. É possível.

Interpretation and its transformations from the 19th century onwards. The score as the only safeguard, an anchor supporting the interpretative flexibilities. Tradition as the source to be preserved.