Distinção necessária entre duas intervenções

Por um lado, o artista furta o seu tema ao tempo,
tornando-o acessível a todos em todos os momentos;
por outro lado,
salva-o ainda da corrente do tempo
na medida em que faz convergir
num só instante o que foi beleza em instantes sucessivos.
Agostinho da Silva
(“Conversação com Diotima”)

Mensagens recebidas a respeito do tema do último post, no qual abordo alguns aspectos dos limites da interpretação, tecem referências às transcrições, tantas vezes confundidas como gênero arbitrário, pois a interferir numa criação já sedimentada e destinada a um ou mais instrumentos ou voz. Seis leitores me escreveram sobre a busca empreendida e a localização do pianista que gravou a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), adicionando improvisações e… saudado pela crítica (vide blog anterior). Comento a seguir algumas diferenciações claras entre transcrição e arbitrariedade.

A transcrição é uma categoria de gênero musical. Ao longo dos últimos séculos, determinadas composições para instrumento solo ou conjunto deles, ou mesmo para corais, despertam o interesse de outros compositores, pósteros ou coetâneos, que adaptam tal obra para destinação que lhes apetece. Composições de Antonio Vivaldi (1678-1741) para violino(s) e orquestra de câmara foram transcritas para cravo e conjunto de câmara por J.S.Bach (1685-1750). Criações para órgão ou coral de J.S.Bach foram magnificamente transcritas para piano por excelsos músicos, como Franz Liszt (1811-1886), Ferrucio Busoni (1866-1924), Alexander Siloti (1863-1945), Wilhelm Kempff (1895-1991), entre outros; os “Quadros de uma Exposição” de Modest Moussorgsky (1839-1881) para piano tiveram transcrições para grande orquestra realizadas por Maurice Ravel (1875-1937), Dmitri Shostakovitch (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986). Uma extensa lista demonstra a frequência a essas leituras — ampliadas ou não — de obras preferencialmente bem conhecidas. A transcrição não transgride, mas sim oferece uma outra possibilidade de leitura e, consequentemente, de audição. Nosso ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016) transcreveria para piano solo, a meu pedido para a coletânea que idealizei, duas obras instrumentais: “Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Doroty Lamour” e “O Pente de Istambul”. Resultaram.

Devido a certos purismos que vigoraram durante décadas no século passado, as transcrições, mormente para piano solo, basicamente desapareceram dos repertórios e muitos pianistas foram cúmplices, seguindo os ditames de puristas e desviando-se do gênero. Presentemente, e é alvissareira a retomada, elas regressam e penetram o repertório dos pianistas. Deve-se o fato à abertura, positiva ou não, que se processa nas artes como um todo. O mesmo ocorreu com a obra dos compositores que, nos séculos XVII e XVIII mais acentuadamente, depositaram suas ideias em criações para cravo. Um verdadeiro anátema foi lançado aos que executavam ao piano – durante décadas no século XX – a obra dos clavecinistas franceses, de J.S. Bach ou de Domenico Scarlatti, para mencionar os mais visados. Essa “condenação” dos puristas visava outorgar unicamente aos cravistas a interpretação desse fantástico repertório. O notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001) fez coro aos que assim não pensavam e acredito que, com suas palavras autorizadas, colocou um ponto final à inconsistente posição: “O tempo do Barroco integrista passou, o uso de instrumentos de época cessou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Presentemente, e é promissora a retomada, transcrições e composições para cravo interpretadas ao piano regressam aos repertórios, sem barreiras censuradoras, e penetram o repertório dos pianistas.

Clique para ouvir, de Bach-Kempff, o coral “Awake, the voice is sounding”, na interpretação de J.E.M.:

(239) Bach-Kempff – Awake, the Voice is Sounding – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Por vezes é o próprio compositor que realiza uma outra versão para determinada obra. Gabriel Fauré (1845-1924) escreveu sua “Ballade” originalmente para piano, transcrevendo-a posteriormente para piano e orquestra, transcrição muito mais ventilada do que a original. Esta compõe meu CD dedicado a Fauré (Gabriel Fauré, Works for piano, De Rode Pomp, 2009). Outros autores assim procederam, oferecendo “possibilidades” outras às criações para um só instrumento. O também compositor francês François Servenière (1961-), num caminho inverso, compôs em 2008, “Promenade sur la Voie Lactée”, para flauta, piano, coro, harpa e orquestra de câmara, criação inspirada em Le Petit Prince, de Saint-Exupéry, autor que nos é caro. Ao ouvir, entendi que a bela composição se daria muito apropriadamente se transcrita para piano solo. Em 2018, François Servenière gentilmente escreveu a versão pianística, gravada por mim na Bélgica em 2019, a integrar o CD “Retour à l’Enfance” (ESOLEM, França, 2020).

Clique para ouvir, de François Servenière, “Promenade sur la voie Lactée”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

Sob outra égide, não poderiam ser consideradas “transcrições” todas as adaptações que cenógrafos e estilistas realizam nas últimas décadas para as óperas de antanho? Não ocorre o mesmo com os textos teatrais, que hodiernamente também têm cenografias e roupagens atualizadas? Aceitas, elas proliferam nos teatros do planeta. Não obstante, a partitura musical e seu libreto, para as óperas, assim como o texto literário para as peças teatrais, permanecem na essência inalterados. Não seria a âncora mencionada no post anterior que mantém a autenticidade das obras erigidas pelos notáveis compositores e dramaturgos, a possibilitar as flexibilizações das montagens nos tempos atuais? As “transcrições” visuais, tanto para a ópera como para a peça teatral, não representariam o olhar do presente, que será certamente descartado em futuras encenações com projetos diferenciados? Essas “transcrições” não seriam alternativas em constantes mutações às tradicionais encenações que, através da perpetuação da traditio, vigoram e não deverão certamente desaparecer? Todo novo olhar tem algo estimulante desde que a  partitura e seu libreto, assim como o texto literário na dramaturgia, permaneçam inalterados. O espírito humano tem essa necessidade do descortino.

A arbitrariedade ocorre quando um intérprete transgride ao adicionar à partitura destinada a um instrumento arranjos ou improvisações, numa pretensa vontade de provocar a “atualização” de obra finda, geralmente consagrada. É um simulacro que, como tal, torna-se caricato. Ao mencionar a obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada por pianista de sucesso em países que mais cultuam a música erudita ou de concerto e, hélas, exaltado pela crítica, assevero que a integral para teclado de Rameau é uma das maiores contribuições da música em todos os tempos e as arbitrariedades do pianista, todas elas fora do contexto, são aquilo que, no post anterior, denominei um acinte.

Antolha-se-me que, na esfera erudita, seja em concerto ou em gravação, o sumário acréscimo em partitura finda desrespeita a criação. Contrariamente, na música contemporânea alguns compositores delegam ao intérprete a possibilidade de participar. Estou a me lembrar dos três “Estudos para Edu”, do ilustre compositor e teórico Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), a mim dedicados e nos quais expressamente o músico dava-me a liberdade de, durante a apresentação, improvisar trajetórias por ele escritas seguindo uma orientação cronométrica. As linhas retas que compõem o traçado e as sinalizações numéricas do autor determinam a orientação ao intérprete que, apesar da liberdade “criativa”, tem de se adequar às durações de tempo e a obediência da tessitura, entre outras indicações propostas por Koellreutter. Os três Estudos fazem parte da coletânea que idealizei em 1985 com término fixado em 2015 a abranger 30 anos do Estudo para piano nas fronteiras dos séculos XX-XXI. Recebi 85 Estudos de compositores de vários países. Apresentei os de Koellreutter no Festival Música Nova de 1991, em Santos e São Paulo.

No Youtube há vários exemplos de obras consagradas que são pervertidas através da introdução até de bateria com ritmos “alienígenas” em relação à criação original. Certamente ainda assistiremos à ascensão desmesurada do arbítrio nas artes. O notável compositor Camargo Guarnieri (1907-1993), ao ouvir a execução de uma sua obra para violoncelo, foi ao camarim e ouviu do intérprete palavras entusiasmadas, a dizer que alterara o final e indagando se ele apreciara. Após impropérios ditos pelo criador da composição, o violoncelista ainda ouviu “se quiser assim agir, vá compor”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “Danse Sacrée – Danse Profane” para harpa e orquestra de cordas, na versão para piano solo realizada pelo seu editor Jacques Durand (1865-1928), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6YnkC0idEgw

I have received numerous messages regarding the previous post. In this one, I address some aspects regarding transcription and arbitrariness, two distinct poles.