Tentando entender o talento transcendente

É necessário ter, diante da obra que ouvimos,
interpretamos ou que compomos,
um respeito profundo como em frente da própria existência.
Como se fosse questão de vida ou morte.
Pierre Boulez

No esteio do tema tratado no blog anterior, não foram poucos os que hesitam em acreditar que haja os não apreciadores de música e entendem o fato de que, entre os que dela gostam, segmento privilegiado de aficionados a ela se dedicará, mas poucos se destacarão. Quantos, na busca de compreender a palavra gênio, ela também tão questionada, recorrem ao divino, ao sobrenatural, à reencarnação…

Em áreas específicas que, no meu entender, têm muito a ver com o aspecto físico, referindo-me aos intérpretes musicais e aos atletas nas várias modalidades, é possível entender que, entre milhares que se destinam a determinado mister, um ou dois  tornam-se ícones, e assim perduram sem concorrentes à altura. Estudos são elaborados por especialistas, mas as conclusões são sempre sujeitas a questionamentos, mercê também das pesquisas sempre in progress. Não obstante, cientistas entendem que, nas áreas do pensar, cérebros daqueles com QI bem alto não são diferentes dos QIs dos cidadãos comuns, mas que leituras “subjetivas” das engrenagens cerebrais detectam diferenças entre pessoas que praticam modalidades afins. Quanto às aptidões físicas, há também “engrenagens” que permitem que determinados atletas ou instrumentistas sejam mais aptos do que a extensa maioria de outros nas mesmas funções. Não me estendo nesse complicado mister por motivos óbvios, o fato de ser leigo na matéria, mas o leitor tem à sua disposição, via internet, resultados de muitas pesquisas científicas sobre o tema.

Na esfera musical, tanto na composição como na interpretação, alguns luminares se destacaram em ambas as categorias, casos específicos de Niccolò Paganini (1782-1840), Franz Liszt (1811-1886), Camille Saint-Saëns (1835-1921), Sergei Rachmaninov (1873-1943), Sergei Prokofiev (1891-1953), Pierre Boulez (1925-2016) e outros mais. A porcentagem dos que praticaram composição e interpretação é restrita, mas esses notáveis músicos desenvolveram paralelamente duas categorias que, apesar de distintas, têm ligação intrínseca. Possuidores de QIs altíssimos, alguns poucos tiveram predisposição a outras atividades correlatas à música, como Saint-Saëns e Ferrucio Busoni (1866-1924), pois igualmente editores e revisores consagrados. Muzio Clementi (1752-1832), além dessas duas atividades suplementares ainda foi fabricante de pianos quando em Londres. Sob outra égide, lembraria as observações do compositor, pianista e “visionário ou místico” russo Alexandre Scriabine (1872-1915) que, num café na Suíça, teceu intrigante dedução ao ver pessoas e carruagens transitando. Observou que, ao compor, ele se sentia Criador com C maiúsculo e na plenitude, um messiânico, mas ao estar sentado tranquilamente a olhar a movimentação na rua sentia-se um cidadão rigorosamente comum, sem mais. Sua filha, a musicóloga Marina Scriabine (1911-1998), escreve, a prefaciar “Notes et Réflexions” de seu pai: “Scriabine chegara a um solipsismo de caráter bem singular. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da  criação” (Alexandre Scriabine “Notes et Réflexions”, Paris, Klincksiech, 1979). Impossível dissociar o compositor-pianista do pensador místico que legou textos de real importância. Os super talentos transitam normalmente em campos precisos de atuação, excluindo-se quase todos os outros fora do interesse dessas figuras singulares, que, não poucas vezes, deles têm compreensão bem pueril. Não obstante, há aqueles que extrapolaram a(s) área(s) de interação, caso de Pitágoras (ca a.c. 570 – ca a.c. 500), Leonardo Da Vinci (1452 – 1519), René Descartes ( 1596-1650) e inúmeros outros luminares que, através de curiosidade e vocação, não se restringiram a um objetivo preciso.

Seria evidente a constatação de que os seres muito dotados só concretizam suas obras através do labor obstinado. O velho preceito que atribui mínima porcentagem à inspiração e índice superlativo à transpiração é regra. Compositores que permaneceram na História produziram muito e na excelência. Georg Friedrich Händel (1685-1759) comporia em brevíssimo tempo o célebre oratório “O Messias”, uma das obras referencias da humanidade. A capacidade descomunal de Mozart traduzia-se inclusive em suas composições, jorradas em cascata e sem rasuras, fato raríssimo na criação musical, literária e artística. Fruto de labor intenso, Modest Moussorgsky (1839-1881), apesar de todos os seus transtornos, comporia uma de suas obras-primas, “Quadros de uma Exposição”, durante quinze dias sem sair de seu quarto, após visitar a exposição de aquarelas de seu grande e saudoso amigo Victor Hartmann (1834-1873). O manuscrito autógrafo, claríssimo, contém algumas rasuras e alterações durante a efervescente gestação. E, portanto, apesar da grandiosidade, trata-se de uma obra lúdica.

Claude Debussy (1862-1918) escreveria ao seu editor Jacques Durand, tão logo finda a composição da possivelmente sua mais importante obra para piano, os Douze Études: “Escrevi como um louco ou como aquele que deverá morrer no dia seguinte” (1915).

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les huit doigts, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk

Clique para ouvir,  de Claude Debussy, Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

Compositores e escritores ditos “geniais” deram um passo à frente no que tange à criação. Inovaram e todos têm aquilo que considero impressões digitais inalienáveis, fato que não ocorre com outros nessas categorias do pensar que, detentores de real talento, não deram esse passo adiante e cujas marcas dos dedos não são tão evidentes. Paradoxalmente, alguns compositores não “inovadores” têm as impressões digitais nítidas e suas obras apresentam real interesse. Conheço alguns assim descritos cujas composições me encantam. Mas há tantos em que o pastiche evidencia a pobreza das ideias…

A contemporaneidade tem suas características próprias. Nas múltiplas tendências que continuam a pulular na área da “criação musical” há aquelas baseadas em pesquisas sérias e meritórias, assim como outras que se entendem por vanguardistas, mas que traduzem o vazio do pensar.

O recuo do tempo é lição obrigatória para avaliações. Decanta-se como o bom vinho. Os assim denominados gênios ou super talentos permanecem, à la manière da ação de uma peneira que retém os resíduos, deixando passar a essência essencial para gáudio dos que a desfrutam.

The present post deals with the differences between a great talent and the so-called genius, a very rare figure found in all areas. There are composers who go beyond the limits and possess the attributes of genius and others who, even though non-innovative, produce works of reference. Only the composer who relies on pastiche will be forgotten by History.