Quando o livro penetra em nosso de profundis
A descrença moderna, ao invés de ser um fenômeno esparso,
encontra apoio na estrutura da sociedade moderna
e na estrutura do pensamento em si.
A memória mais profunda é a memória de todo nosso destino.
Jean Guitton (1901-1999)
Foram inúmeras as mensagens sobre o blog anterior. De maneira unânime a leitura é louvada. É uma dádiva ter leitores que entendem o livro como um companheiro, por vezes de vida. Do meu amigo Marcelo, que encontro raramente na feira-livre devido a horários diferentes de frequência, ouvi, horas após a publicação, uma pergunta surpreendente: “teria o livro vida?” Numa analogia, sim, pois um livro conservado na estante, após leitura e visitas outras, respira e “transpira” conhecimento, mas tem algo que o faz pulsar, graças à própria exalação de cada exemplar que se altera à medida que o tempo escoa. O perfume das folhas novas tem incomensurável diferença daquele de livro antigo. Fez-me lembrar, sob outra configuração, de um texto basilar de Edmondo de Amicis (1846-1908), autor do consagrado “Cuore”, e que foi tema de um blog (vide: “A voz de um livro”, 19/02/2010). No conto, o livro tem vida e narra a sua saga pelo mundo, chega a receber um tiro e, de mãos em mãos, convive com as várias camadas sociais, continua sua trajetória até se deteriorar com o passar dos anos, para finalmente estiolar-se em paz, em surdina, sôfrego. Àquela altura, atento à minha narração, meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013) não deixou de criar um desenho para o post mencionado.
Tendo visitado algumas bibliotecas do Reino Unido, da França e de Portugal, encantaram-me em terras lusíadas as do Convento de Mafra e, sobretudo, da Biblioteca Joanina em Coimbra, que contém milhares de manuscritos e mais de um milhão de volumes em suas salas. Uma das minhas recordações mais expressivas durante a trajetória como pianista, que se encerra neste ano, foi o privilégio de ter me apresentado 10 vezes em recitais na magnificente Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, de 2004 a 2022. A aura que ela emana é insuperável, a meu ver. Maravilhamento.
https://visit.uc.pt/pt/space-list/joanina
Entendo que a perenidade de um livro físico tem ainda significado mais sensível se estiver sob a guarda daquele que o visitou décadas passadas. Como são expressivas as palavras do meu dileto amigo, ilustre arquiteto português António Menéres (1930-), várias vezes citadas ao longo dos anos neste espaço: “Sempre que olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crónicas contra o esquecimento”, 29/07/2007).
A formação de uma biblioteca privada merece a preservação dos livros que deixaram raízes no nosso de profundis e, mesmo se determinado exemplar não for mais consultado no decorrer da existência, sabe-se que as referências estão sempre generosamente à disposição quando aprouver. Nesse sentido, o livro adquire um outro patamar, a unir importância e afeto redobrados. Conservo a coleção de “O Thesouro da Juventude” (18 volumes) desde 1950, tendo já permanecido em casa de uma das filhas e retornado à casa paterna (vide blog O “Thesouro da Juventude”, 17/10/2009). Quantos mais livros da minha longínqua adolescência e juventude não continuam nas estantes? Alguns daquele período enriquecem estantes de filhas, netas e amigos sensíveis e prosseguem suas sagas. Assimilados nas entranhas, esses livros poderão encantar outros leitores.
Li recentemente, no Jornal da USP, texto sobre grupo criado por estudantes da USP, “Desapega”, que está a recolher doações de livros e material didático. Alvissareira notícia que, espero, não tenha cunho ideológico preciso. Corrobora o fato mensagem que recebi do ilustre amigo, Gildo Magalhães, professor titular de História da Ciência, FFLECH-USP: “Reenviei o seu último blog para outras pessoas, porque ainda acredito no poder da leitura. Apesar da facilidade eletrônica, também ainda acredito que o livro impresso não morreu. Nesta semana de reabertura (tardia!) das aulas na USP, a EDUSP enviou caixas e mais caixas de livros por ela publicados para distribuição gratuita aos calouros. Colocados numa longa banca, foram rápida e avidamente disputados, acabando logo. Entre eles vi a sua bela edição do quarteto para piano e cordas op. 26 de Oswald”.
Nosso Pai, cultor da literatura portuguesa, conservava obras capitais em sua biblioteca. Estou a me lembrar de que, ao ler ainda bem jovem alguns Cantos dos Lusíadas em edição magnífica e bilíngue da Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, meu Pai frisou que era necessário também visitar, mesmo que com dificuldades, a tradução em francês, pois nosso progenitor era igualmente francófilo. Após a sua morte tive o privilégio de receber na partilha o histórico exemplar. Só de pensar que anos atrás havia projeto de se eliminar Camões dos currículos escolares brasileiros, tentativa que felizmente não vingou!!! Com a decadência cultural em aceleração, é possível que “mentores” retornem ao desiderato recente.
Em viagens ao Exterior, mormente em décadas bem anteriores, verificava que parcela dos usuários do metrô lia livros durante os percursos. Nas viagens recentes, basicamente só vemos leitores de celulares. Em São Paulo, a prática da leitura no celular está a se diluir (não em troca dos livros), pois o receio de roubos clama mais alto.
Por fim, menciono posicionamento de meu dileto amigo Flávio Viegas Amoreira, escritor, poeta e crítico literário, que enviou mensagem a respeito do post anterior: “uma reflexão que enriquece uma luta que travo pelo pensamento crítico através da leitura diante do processo de idiotização, esse o termo forte, que se impõe pelas mídias de massa contra o pensamento autoconstruído a partir do ser consciente como sujeito”.
Does the book have a life? This was the comment of a reader. I include in the post other messages addressing various issues of interest related to the book and its preservation