Pianista e professora de reais méritos

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Soube recentemente da morte de Tania Achot-Haraoutunian, ocorrida em Janeiro de 2022 na cidade de Lisboa. Tânia Achot, assim conhecida, foi uma das pianistas que me causou mais impacto durante os estudos que realizei em Paris. Após aquele efervescente período de aprofundamento pianístico, tardiamente a encontrei duas vezes na sua morada em Lisboa e tivemos vários contatos amistosos por telefone.

Tânia Achot foi pianista singular. Foi através do extraordinário pianista português Sequeira Costa (1929-2019) que tive o prazer de conviver com os dois artistas na capital da França (vide blog “Sequeira Costa”, 02/03/2019). Tânia vivia com o pianista em uma casa na Porte Dauphine, junto com sua mãe, Madame Achot, e sua irmã Natascha. Frequentei muitas vezes a morada, pois durante aquele período quis estudar os 24 Estudos de Chopin e algumas Sonatas de Beethoven com o pianista, exímio executante dessas obras, pois intérprete da integral dos Estudos do criador polonês e também das 32 Sonatas do compositor alemão. Mais tarde, Tânia se casaria com Sequeira Costa, com quem teve duas filhas. Em Julho de 1959 viajamos os cinco de Paris a Lisboa num Simca Chambord sob a condução de Sequeira Costa. Inesquecível viagem.

Tânia nasceu em Teerão, no Irã. Seu pai era armênio e sua mãe, russa.  Emigraram para o Irã em 1920, após a eclosão da Revolução de 1917. Tânia estudaria em França no Conservatório de Paris, mas sua formação essencial se daria em Moscou, no Conservatório Tchaikovsky, sob a direção de Lev Oborin, notável pianista e pedagogo russo (1907-1974). Confessava-me Tânia, àquela altura de nosso convívio, que devia essencialmente à Escola russa de piano a sua interpretação. Receberia vários prêmios relevantes: menção honrosa na ARD International Music Competition em Munique; láurea no Marguerite Long-Jacques Thibaud em Paris; mormente o terceiro lugar no Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin em Varsóvia, 1960.

Clique para ouvir, de Frédéric Chopin, Estudo op. 10 nº 8, na interpretação de Tânia Achot (1960):

https://www.youtube.com/watch?v=hcbUtC5smoo

Tânia Achot passaria a residir em Lisboa ainda na década de 1960, tornando-se professora da Escola Superior de Música de Lisboa. Continuaria a se apresentar com êxito em carreira internacional, bem como participando na formação de jovens pianistas portugueses, entre os quais Nuno Vieira de Almeida, Antônio Toscano, Carla Seixas, Joana Gama, Paulo Santiago, Paulo Oliveira…

Clique para ouvir de, Frédéric Chopin, Noturno em Sol Maior, op. 37, nº 2, na interpretação de Tânia Achot (1960):

https://www.youtube.com/watch?v=o-9MwnMhh1k

Com certeza Tânia Achot trouxe uma enorme contribuição à arte pianística em Portugal, onde buscou implementar essencialidades assimiladas da Escola Russa. Considere-se que, no período em que Tânia esteve a estudar na então União Soviética, a Escola Russa de piano era modelo indiscutível aos ouvidos do Ocidente. Essa renovação conceitual do ensino do piano em Portugal também despertaria, em oposição, reações adversas. Estou a me lembrar das posições convictas de Tânia, naquele início dos anos 1960, tanto dela como de Sequeira Costa, a respeito da interpretação penetrante, do culto ao legato, à pedalização generosa quando se faz mister, da busca incessante à condução da frase musical, da dinâmica, da acentuação, da rítmica e da flutuação dos andamentos.

Admiradora incondicional do repertório romântico, de Chopin a Rachmaninov, Tânia Achot se destacaria como excelente intérprete das obras desses compositores.  Devo a  ela e a Sequeira Costa o início do meu apreço à obra de Alexandre Scriabine, que me levaria a gravar, décadas após, a integral dos Estudos e outras mais composições relevantes do excepcional músico russo.

Tânia Achot, na longa entrevista concedida a Ana Sousa Dias para a RTP, Rádio Televisão Portuguesa (Arquivo 15/06/2002), tece comentários de raro interesse sobre sua formação, preferências e atitude frente à interpretação. Apesar da admiração por pianistas como Alfred Brendel (1931- ), Alfred Cortot (vide blog: Alfred Cortot – 1877-1962, 29/02/2020), Sanson François (1924-1970) e outros mais, faz elogios rasgados à escola russa, preponderando Emil Gilels (vide blog: Emil Gilels – 1916-1985, 20/06/2020), Grigory Sokolov (1950- ) e Evgeny Kissin (1971- ). Considera que há poucos pianistas na acepção, existindo legiões de outros que tocam bem, gostam do que fazem, mas não são luminares.

Enfatiza determinados conceitos consagrados ao se referir ao approach interpretativo, sendo que o executante russo dá “corpo e alma à arte” e o ocidental, “pensamento, raciocínio, lógica”. De não menos interesse sua visão após ter perpassado várias escolas pianísticas. Da escola francesa, tendo estudado no Conservatório Nacional em Paris, observa que há a perfeita leitura através do solfejo, observância de cada detalhe em seu devido lugar, articulação digital. A alemã se caracterizaria, segundo Tânia, pela forma, estrutura, conhecimento. Da russa, acrescentaria o culto ao legato e ao molto cantabile. Todavia, acrescenta que nenhuma Escola fornece o inalienável talento.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “La Leggierezza” na interpretação de Tania Achot:

(134) Tania Achot-Haroutounian Plays Liszt “La Leggierezza” – Étude de Concert – YouTube

Na década de 1990, nossa ilustre pianista Iara Bernette (vide blog “Iara Bernette – 1920-2002, 12/12/2020), que durante décadas morou em Hamburgo, tendo a cátedra de piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo, dizia que o recital de piano convencional, como o conhecemos,  estava pouco a pouco a perder importância. Na entrevista de 2002, Tânia Achot também tem o mesmo posicionamento e explica que a causa disso são interesses outros e a forte pressão de  manifestações musicais de toda espécie.

Ao longo dos meus blogs tenho salientado que os holofotes não são determinantes à qualidade de um intérprete. Elementos extramusicais não necessariamente seduzem grandes executantes. Quantos não foram os pianistas de altíssimo nível que ouvi na Europa e que não tinham uma carreira avassaladora? A essência essencial da Música atuando sobre um pianista de alta qualidade independe do holofote. Estou a me lembrar de dois casos em especial, o grande pianista e mestre Jean Doyen (vide blog: Jean Doyen – 1907-1982, 31/03/2007) e François-René Duchâble (vide blog: François-René Duchâble – 1952, 30/01/2021). A uma pergunta que formulei ao meu professor Doyen, excepcional pianista, sobre o porquê de sua carreira não o ter levado aos longínquos recantos do planeta, respondeu-me que nem todos amam viagens, incensos e a vida nômade. Duchâble confessou detestar viagens de avião, fato que o impede de aceitar determinados convites.

Tânia Achot poderia com toda a certeza ter uma carreira de imensa abrangência. No seu caso, a vida professoral e o temperamento cotidiano singular fizeram-na mais fixada a Lisboa. Não obstante, suas interpretações são de extrema qualidade e paixão, pois é pleno o envolvimento com a obra escolhida. Dom inalienável. Será lembrada também pelas gravações excelsas.

Clique para ouvir, de Rachmaninov, sete “Prelúdios”, na interpretação de Tânia Achot:

Tania Achot-Haroutounian | Rachmaninov 7 Preludes – Bing video

Tania Achot-Haraoutunian was an important Iranian-Russian pianist and pedagogue, having received relevant awards in her glorious career. She lived her last decades in Lisbon, where she taught a myriad of young pianists, mainly teaching them fundamental precepts of the extraordinary Russian piano school. I met her in Paris in the late 1950s, during the period she was living with the remarkable Portuguese pianist Sequeira Costa, whom she would later marry. She left a beautiful legacy through exemplary recordings. She passed away in 2022 in Lisbon.