Navegando Posts publicados em março, 2023

Quando o livro penetra em nosso de profundis

A descrença moderna, ao invés de ser um fenômeno esparso,
encontra apoio na estrutura da sociedade moderna
e na estrutura do pensamento em si.

A memória mais profunda é a memória de todo nosso destino.
Jean Guitton (1901-1999)

Foram inúmeras as mensagens sobre o blog anterior. De maneira unânime a leitura é louvada. É uma dádiva ter leitores que entendem o livro como um companheiro, por vezes de vida. Do meu amigo Marcelo, que encontro raramente na feira-livre devido a horários diferentes de frequência, ouvi, horas após a publicação, uma pergunta surpreendente: “teria o livro vida?”  Numa analogia, sim, pois um livro conservado na estante, após leitura e visitas outras, respira e “transpira” conhecimento, mas tem algo que o faz pulsar, graças à própria exalação de cada exemplar que se altera à medida que o tempo escoa. O perfume das folhas novas tem incomensurável diferença daquele de livro antigo. Fez-me lembrar, sob outra configuração, de um texto basilar de Edmondo de Amicis (1846-1908), autor do consagrado “Cuore”, e que foi tema de um blog (vide: “A voz de um livro”, 19/02/2010). No conto, o livro tem vida e narra a sua saga pelo mundo, chega a receber um tiro e, de mãos em mãos, convive com as várias camadas sociais, continua sua trajetória até se deteriorar com o passar dos anos, para finalmente estiolar-se em paz, em surdina, sôfrego. Àquela altura, atento à minha narração, meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali (1940-2013) não deixou de criar um desenho para o post mencionado.

Tendo visitado algumas bibliotecas do Reino Unido, da França e de Portugal,  encantaram-me em terras lusíadas as do Convento de Mafra e, sobretudo, da Biblioteca Joanina em Coimbra, que contém milhares de manuscritos e mais de um milhão de volumes em suas salas.  Uma das minhas recordações mais expressivas durante a trajetória como pianista, que se encerra neste ano, foi o privilégio de ter me apresentado 10 vezes em recitais na magnificente Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, de 2004 a 2022. A aura que ela emana é insuperável, a meu ver. Maravilhamento.

https://visit.uc.pt/pt/space-list/joanina

Entendo que a perenidade de um livro físico tem ainda significado mais sensível se estiver sob a guarda daquele que o visitou décadas passadas. Como são expressivas as palavras do meu dileto amigo, ilustre arquiteto português António Menéres (1930-), várias vezes citadas ao longo dos anos neste espaço: “Sempre que olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog: “Crónicas contra o esquecimento”, 29/07/2007).

A formação de uma biblioteca privada merece a preservação dos livros que deixaram raízes no nosso de profundis e, mesmo se determinado exemplar não for mais consultado no decorrer da existência, sabe-se que as referências estão sempre generosamente à disposição quando aprouver. Nesse sentido, o livro adquire um outro patamar, a unir importância e afeto redobrados. Conservo a coleção de “O Thesouro da Juventude” (18 volumes) desde 1950, tendo já permanecido em casa de uma das filhas e retornado à casa paterna (vide blog O “Thesouro da Juventude”, 17/10/2009). Quantos mais livros da minha longínqua adolescência e juventude não continuam nas estantes? Alguns daquele período enriquecem estantes de filhas, netas e amigos sensíveis e prosseguem suas sagas. Assimilados nas entranhas, esses livros poderão encantar outros leitores.

Li recentemente, no Jornal da USP, texto sobre grupo criado por estudantes da USP, “Desapega”, que está a recolher doações de livros e material didático. Alvissareira notícia que, espero, não tenha cunho ideológico preciso. Corrobora o fato mensagem que recebi do ilustre amigo, Gildo Magalhães, professor titular de História da Ciência, FFLECH-USP: “Reenviei o seu último blog para outras pessoas, porque ainda acredito no poder da leitura. Apesar da facilidade eletrônica, também ainda acredito que o livro impresso não morreu. Nesta semana de reabertura (tardia!) das aulas na USP, a EDUSP enviou caixas e mais caixas de livros por ela publicados para distribuição gratuita aos calouros. Colocados numa longa banca, foram rápida e avidamente disputados, acabando logo. Entre eles vi a sua bela edição do quarteto para piano e cordas op. 26 de Oswald”.

Nosso Pai, cultor da literatura portuguesa, conservava obras capitais em sua biblioteca. Estou a me lembrar de que, ao ler ainda bem jovem alguns Cantos dos Lusíadas em edição magnífica e bilíngue da Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, meu Pai frisou que era necessário também visitar, mesmo que com dificuldades, a tradução em francês, pois nosso progenitor era igualmente francófilo. Após a sua morte tive o privilégio de receber na partilha o histórico exemplar. Só de pensar que anos atrás havia projeto de se eliminar Camões dos currículos escolares brasileiros, tentativa que felizmente não vingou!!! Com a decadência cultural em aceleração, é possível que “mentores” retornem ao desiderato recente.

Em viagens ao Exterior, mormente em décadas bem anteriores, verificava que parcela dos usuários do metrô lia livros durante os percursos. Nas viagens recentes, basicamente só vemos leitores de celulares. Em São Paulo, a prática da leitura no celular está a se diluir (não em troca dos livros), pois o receio de roubos clama mais alto.

Por fim, menciono posicionamento de meu dileto amigo Flávio Viegas Amoreira, escritor, poeta e crítico literário, que enviou mensagem a respeito do post anterior: “uma reflexão que enriquece uma luta que travo pelo pensamento crítico através da leitura diante do processo de idiotização, esse o termo forte, que se impõe pelas mídias de massa contra o pensamento autoconstruído a partir do ser consciente como sujeito”.

Does the book have a life? This was the comment of a reader. I include in the post other messages addressing various issues of interest related to the book and its preservation

 

Está a se perder o hábito salutar?

Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço,
e os limitados braços se põem a abraçar o mundo,
a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva
(“Notícia”)

Meses atrás, ao transitar pelos canais fechados de televisão, ouvi durante um bom momento as falas de jovens frente a um entrevistador. O tema era a leitura. A faixa etária devia variar entre os 15 e 20 anos. Às pertinentes perguntas, os jovens, descontraídos, revezavam-se nas respostas, sempre buscando justificar o fato do distanciamento da leitura, mas também realçando outras modalidades de interesse que os satisfaziam.

É fato notório que o desenvolvimento tecnológico trouxe benefícios incomensuráveis à humanidade, mas fez com que tradicionais hábitos tendessem ao olvido progressivo. A eclosão do celular e todas as derivações dele decorrentes transformaram radicalmente a sociedade. Para parcela da juventude, a brevidade das mensagens, a grande maioria delas com erros graves de redação e de “conceitos”, graças também à supressão de sílabas, fato que isenta o “autor” de um mínimo rigor linguístico; o descompromisso com a qualidade dessas comunicações escritas e tantas vezes só entendida pelos pares; os jogos eletrônicos sempre em expansão mundial; as denominadas “baladas” aos fins de semana, tudo contribui para tornar a leitura de livros ou artigos relevantes uma função jurássica e, pela lógica de tantos jovens, enfadonha.

Sabemos das últimas crises de duas das mais consagradas livrarias do Brasil, a Cultura e a Saraiva. Se de um lado tem-se de dar crédito aos sucessivos avanços das vendas online, não se deve desprezar a derrocada da cultura humanística frente ao embate desproporcional provocado pela “leitura” de textos abreviados e mal redigidos na gigantesca quantidade de celulares espalhada pelo país e pelo mundo. Verdadeiro tsunami. A distração que a parafernália internética provoca desvia, para legiões de pessoas, qualquer possibilidade de concentração na leitura de um texto propositivo em revista ou livro. Essa distração, que leva ao fatídico desconhecimento de bons textos, provoca igualmente o mau emprego das palavras nas falas – por vezes verdadeiros dialetos -, a ausência de cuidado com o linguajar que está progressivamente a caminhar para o aviltamento, no caso, da língua portuguesa. Jornais outrora de grande circulação tinham em seus quadros revisores que cuidavam com atenção das gralhas em artigos ou reportagens, tantas vezes redigidos às pressas. Presentemente, se de um lado as tiragens desses jornais diminuíram drasticamente, sob outra égide, tanto nas publicações físicas como online, a proliferação desses erros – antes fossem apenas ortográficos – invadiu as colunas.

O ilustre professor de História Medieval da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, já apontava há mais de uma década a inobservância do jovem frente à leitura, problemática que só está a se acentuar: “Não nego que os jovens não leiam mais. Por exemplo, é seguro que leem muito mais periódicos. E também leem muito mais em suporte informático. O que eu digo é que eles, em média, leem pior, que há uma clara infantilização da leitura. E a prova é que a sua capacidade de expressão por escrito se está a degradar fortemente. Pelo menos entre os jovens que frequentam a Faculdade de Letras, disso não tenho a menor dúvidas. E se assim é nas letras…”. A acentuada visita às “telinhas” certamente é um mecanismo de aviltamento da língua mater, pois basicamente não há o menor cuidado de tantos que “escrevem” mensagens, preferencialmente voltadas ao cotidiano inócuo. Gouveia Monteiro alerta sobre situação que se deteriora, sem antídoto que possibilite a esperança: “Reconheço que hoje os nossos adolescentes têm capacidades de diversa natureza que superam em muito as da minha geração. Por exemplo, do ponto de vista técnico, do manejo de equipamentos eletrônicos essenciais para a satisfação de múltiplas necessidades. Isso é verdade. Mas devemos por isso desvalorizar a degradação de um domínio tão estruturante quanto é a capacidade de expressão oral e escrita? Em que medida é que a própria formação humanística do indivíduo, do cidadão, não se ressente da perda de qualidade nessas duas vertentes nucleares?”. E numa realidade bem próxima à da nossa neste país tropical, considera: “Entre novelas de baixa qualidade, jogos de futebol em catadupa e programas de informação convertidos em reality shows, a hipotermia cultural é certa. Mas poucos são os que resistem a um zapping sem rumo e oferecem aos filhos um bom livro, um bom programa gravado ou um bom filme. E, no entanto, é seguro que, nestas alternativas, existiria uma matéria para seduzir pela positiva e para instruir sem bocejo os nossos jovens” (João Gouveia Monteiro. “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011).

Sob outra égide, não menos preocupante quanto aos caminhos que legião de jovens está a trilhar, Idalete Giga, competente regente coral e especialista em Canto Gregoriano, tece considerações de interesse envolvendo a cultura humanística: “Mas há sempre uma lacuna que os livros da nossa adolescência não tinham – a questão da formação humanística, a formação moral dos jovens era uma preocupação constante que estava presente na literatura que nos era dirigida. Hoje confunde-se moral com religião. Ao mesmo tempo que se foi perdendo o sentido do sagrado, as sociedades contemporâneas também se esvaziaram de valores morais imprescindíveis para nos respeitarmos e amarmos uns aos outros”. Mensagem que recebi de Idalete Giga em Outubro de 2009.

Drama maior que se assevera peristilo da tragédia é a não preservação das raízes. Uma planta se estiola sem raízes sólidas. A nossa tão bela língua portuguesa corre o risco, no Brasil, de em poucas décadas estar, à força do descuido quanto à leitura de autores relevantes e da massacrante difusão de mensagens e breves textos sem quaisquer cuidados na parafernália internética, assim como no trato do cotidiano, perder a essência de sua magnificente estrutura.

Sob outra égide, diariamente determinados comentaristas televisivos ou políticos incorrem sistematicamente em erros banais da linguagem, sem acanhamento ou rubor. Há alguns que, em suas falas, repetem ad nauseam “gente”, “né” e quantidade de outros mais cacoetes. Onde estão os ombudsmen?  Essa difusão sistemática exerce influência, principalmente nos mais jovens.

Mais recentemente, grupos de estudiosos têm transmitido a jovens interessados conceitos que incluem a necessidade da leitura qualitativa – são tantas as áreas -, de disciplina, respeito aos costumes e moralidade, a fim de impedir que lampejos continuem lampejos, sem a possibilidade de um descortino cultural relevante. É uma ínfima minoria, sem dúvida. Prova de resiliência dos que se debruçam sobre a importância do livro, esperançosos por dias alvissareiros. Sem a leitura dos clássicos à contemporaneidade, esta quando qualitativa, o homem corre o risco de não mais se lembrar de toda a caminhada por ele empreendida através dos milênios.

Franz Liszt (1811-1886) compôs “Après une lecture de Dante” (Fantasia quasi Sonata), empregando o mesmo título de poema de Victor Hugo (1802-1885). Trata-se de uma Sonata com apenas um movimento e uma das criações mais significativas para piano do grande compositor húngaro. Integra o caderno “Années de pèlerinage” dedicado à Itália.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “Après une lecture de Dante” (Fantasia quasi Sonata ou Dante Sonata), na interpretação magnífica de Vladimir Sofronitsky (1901-1961). Gravação ao vivo captada em 1952:

https://www.youtube.com/watch?v=SNj1l7xr-9w

The vast majority of young people read little or nothing. Causes are pointed out and unfortunately there are basically no prospects of reversal.

 

Pianista e professora de reais méritos

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Soube recentemente da morte de Tania Achot-Haraoutunian, ocorrida em Janeiro de 2022 na cidade de Lisboa. Tânia Achot, assim conhecida, foi uma das pianistas que me causou mais impacto durante os estudos que realizei em Paris. Após aquele efervescente período de aprofundamento pianístico, tardiamente a encontrei duas vezes na sua morada em Lisboa e tivemos vários contatos amistosos por telefone.

Tânia Achot foi pianista singular. Foi através do extraordinário pianista português Sequeira Costa (1929-2019) que tive o prazer de conviver com os dois artistas na capital da França (vide blog “Sequeira Costa”, 02/03/2019). Tânia vivia com o pianista em uma casa na Porte Dauphine, junto com sua mãe, Madame Achot, e sua irmã Natascha. Frequentei muitas vezes a morada, pois durante aquele período quis estudar os 24 Estudos de Chopin e algumas Sonatas de Beethoven com o pianista, exímio executante dessas obras, pois intérprete da integral dos Estudos do criador polonês e também das 32 Sonatas do compositor alemão. Mais tarde, Tânia se casaria com Sequeira Costa, com quem teve duas filhas. Em Julho de 1959 viajamos os cinco de Paris a Lisboa num Simca Chambord sob a condução de Sequeira Costa. Inesquecível viagem.

Tânia nasceu em Teerão, no Irã. Seu pai era armênio e sua mãe, russa.  Emigraram para o Irã em 1920, após a eclosão da Revolução de 1917. Tânia estudaria em França no Conservatório de Paris, mas sua formação essencial se daria em Moscou, no Conservatório Tchaikovsky, sob a direção de Lev Oborin, notável pianista e pedagogo russo (1907-1974). Confessava-me Tânia, àquela altura de nosso convívio, que devia essencialmente à Escola russa de piano a sua interpretação. Receberia vários prêmios relevantes: menção honrosa na ARD International Music Competition em Munique; láurea no Marguerite Long-Jacques Thibaud em Paris; mormente o terceiro lugar no Concurso Internacional de Piano Frédéric Chopin em Varsóvia, 1960.

Clique para ouvir, de Frédéric Chopin, Estudo op. 10 nº 8, na interpretação de Tânia Achot (1960):

https://www.youtube.com/watch?v=hcbUtC5smoo

Tânia Achot passaria a residir em Lisboa ainda na década de 1960, tornando-se professora da Escola Superior de Música de Lisboa. Continuaria a se apresentar com êxito em carreira internacional, bem como participando na formação de jovens pianistas portugueses, entre os quais Nuno Vieira de Almeida, Antônio Toscano, Carla Seixas, Joana Gama, Paulo Santiago, Paulo Oliveira…

Clique para ouvir de, Frédéric Chopin, Noturno em Sol Maior, op. 37, nº 2, na interpretação de Tânia Achot (1960):

https://www.youtube.com/watch?v=o-9MwnMhh1k

Com certeza Tânia Achot trouxe uma enorme contribuição à arte pianística em Portugal, onde buscou implementar essencialidades assimiladas da Escola Russa. Considere-se que, no período em que Tânia esteve a estudar na então União Soviética, a Escola Russa de piano era modelo indiscutível aos ouvidos do Ocidente. Essa renovação conceitual do ensino do piano em Portugal também despertaria, em oposição, reações adversas. Estou a me lembrar das posições convictas de Tânia, naquele início dos anos 1960, tanto dela como de Sequeira Costa, a respeito da interpretação penetrante, do culto ao legato, à pedalização generosa quando se faz mister, da busca incessante à condução da frase musical, da dinâmica, da acentuação, da rítmica e da flutuação dos andamentos.

Admiradora incondicional do repertório romântico, de Chopin a Rachmaninov, Tânia Achot se destacaria como excelente intérprete das obras desses compositores.  Devo a  ela e a Sequeira Costa o início do meu apreço à obra de Alexandre Scriabine, que me levaria a gravar, décadas após, a integral dos Estudos e outras mais composições relevantes do excepcional músico russo.

Tânia Achot, na longa entrevista concedida a Ana Sousa Dias para a RTP, Rádio Televisão Portuguesa (Arquivo 15/06/2002), tece comentários de raro interesse sobre sua formação, preferências e atitude frente à interpretação. Apesar da admiração por pianistas como Alfred Brendel (1931- ), Alfred Cortot (vide blog: Alfred Cortot – 1877-1962, 29/02/2020), Sanson François (1924-1970) e outros mais, faz elogios rasgados à escola russa, preponderando Emil Gilels (vide blog: Emil Gilels – 1916-1985, 20/06/2020), Grigory Sokolov (1950- ) e Evgeny Kissin (1971- ). Considera que há poucos pianistas na acepção, existindo legiões de outros que tocam bem, gostam do que fazem, mas não são luminares.

Enfatiza determinados conceitos consagrados ao se referir ao approach interpretativo, sendo que o executante russo dá “corpo e alma à arte” e o ocidental, “pensamento, raciocínio, lógica”. De não menos interesse sua visão após ter perpassado várias escolas pianísticas. Da escola francesa, tendo estudado no Conservatório Nacional em Paris, observa que há a perfeita leitura através do solfejo, observância de cada detalhe em seu devido lugar, articulação digital. A alemã se caracterizaria, segundo Tânia, pela forma, estrutura, conhecimento. Da russa, acrescentaria o culto ao legato e ao molto cantabile. Todavia, acrescenta que nenhuma Escola fornece o inalienável talento.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, “La Leggierezza” na interpretação de Tania Achot:

(134) Tania Achot-Haroutounian Plays Liszt “La Leggierezza” – Étude de Concert – YouTube

Na década de 1990, nossa ilustre pianista Iara Bernette (vide blog “Iara Bernette – 1920-2002, 12/12/2020), que durante décadas morou em Hamburgo, tendo a cátedra de piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo, dizia que o recital de piano convencional, como o conhecemos,  estava pouco a pouco a perder importância. Na entrevista de 2002, Tânia Achot também tem o mesmo posicionamento e explica que a causa disso são interesses outros e a forte pressão de  manifestações musicais de toda espécie.

Ao longo dos meus blogs tenho salientado que os holofotes não são determinantes à qualidade de um intérprete. Elementos extramusicais não necessariamente seduzem grandes executantes. Quantos não foram os pianistas de altíssimo nível que ouvi na Europa e que não tinham uma carreira avassaladora? A essência essencial da Música atuando sobre um pianista de alta qualidade independe do holofote. Estou a me lembrar de dois casos em especial, o grande pianista e mestre Jean Doyen (vide blog: Jean Doyen – 1907-1982, 31/03/2007) e François-René Duchâble (vide blog: François-René Duchâble – 1952, 30/01/2021). A uma pergunta que formulei ao meu professor Doyen, excepcional pianista, sobre o porquê de sua carreira não o ter levado aos longínquos recantos do planeta, respondeu-me que nem todos amam viagens, incensos e a vida nômade. Duchâble confessou detestar viagens de avião, fato que o impede de aceitar determinados convites.

Tânia Achot poderia com toda a certeza ter uma carreira de imensa abrangência. No seu caso, a vida professoral e o temperamento cotidiano singular fizeram-na mais fixada a Lisboa. Não obstante, suas interpretações são de extrema qualidade e paixão, pois é pleno o envolvimento com a obra escolhida. Dom inalienável. Será lembrada também pelas gravações excelsas.

Clique para ouvir, de Rachmaninov, sete “Prelúdios”, na interpretação de Tânia Achot:

Tania Achot-Haroutounian | Rachmaninov 7 Preludes – Bing video

Tania Achot-Haraoutunian was an important Iranian-Russian pianist and pedagogue, having received relevant awards in her glorious career. She lived her last decades in Lisbon, where she taught a myriad of young pianists, mainly teaching them fundamental precepts of the extraordinary Russian piano school. I met her in Paris in the late 1950s, during the period she was living with the remarkable Portuguese pianist Sequeira Costa, whom she would later marry. She left a beautiful legacy through exemplary recordings. She passed away in 2022 in Lisbon.