848 posts distribuídos através das semanas
Um mundo arrumado é apenas o palco para o grande espetáculo,
de que até hoje tivemos apenas um ou outro raro exemplo,
da plena criação em todos os domínios,
arte, ciência, filosofia, porventura vida também.
Agostinho da Silva
(“Só ajustamentos”)
À medida que o tempo se afunila, aos 84 anos continuo a publicar os blogs de maneira hebdomadária, divulgados que são aos sábados, sempre aos 0:05 minutos. Não poucas vezes ao longo da escrita afirmei que o ato sem interregno se deve ao fato de que a respiração não pede férias, tampouco minha prática pianística. A permanência traduz o ato amoroso. Sem essa presença, inexiste a possibilidade de prosseguir pelos caminhos escolhidos.
As temáticas são as mais variadas, preponderando textos sobre música e tantas de suas variantes. Literatura, mormente resenha de livros (vide Livros – Resenhas e Comentários no menu), faz parte de minhas atenções. Predominantemente obras sobre música em seus aspectos essenciais. Ideia, criação e interpretação não apenas povoam meus anseios, como possibilitam novas aberturas. Diria que a Música se apresenta incólume à desativação ou à diminuição de interesse. Só não abordei ao longo dos anos temas sobre a nossa política, pois mantenho idiossincrasia pelas ideologias que servem à digladiação de contendores e jamais ao debate de ideias, hélas.
Textos de dois de Março de 2007 a 19 de Março de 2011 estão inseridos em três livros, sob o título “Crônicas de um observador” (I, 2008 II, 2009, III, 2011), publicados em São Paulo pela Pax Spes e esgotados. Textos sobre a Música Portuguesa e outros temas relacionados à cultura de Portugal foram publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra, o que muito me honrou, sendo que o segundo volume foi lançado recentemente e será em breve blog a abordar o porquê da minha atração pelo extraordinário pulsar criativo da pátria-mãe.
Folheando aqueles três primeiros livros, a fim de subsídios para o presente post, releio o prefácio da publicação de 2008. Apesar de um longo caminho até o presente, parágrafos do texto preliminar continuam como propósitos, e se outras paisagens do pensar surgiram, entendo-as como acúmulos, pois o itinerário já estava traçado. A aposentadoria afastou-me decididamente da vida uspiana e, outras oportunidades, sem amarras e vínculos, possibilitaram-me novos estágios da imaginação. Aquela introdução de 2008 traduzia escolhas sedimentadas na memória:
“Nos anos 90, após um recital em Gent, André Posman, diretor da organização cultural belgo-flamenga De Rode Pomp, disse-me que chegara o momento de deixar minha herança musical. Iniciava-se o ciclo das gravações no Exterior. Em 2007, no peristilo da aposentadoria junto à Universidade de São Paulo, apreendi que, mesmo a continuar a atividade pianística e os artigos acadêmicos publicados na Europa, haveria a necessidade de pensar em outra categoria de herança, livre de quaisquer amarras, simplesmente o afloramento de lembranças sedimentadas, leituras marcantes, impressões de viagem, personalidades que me ajudaram a entender o mundo, o cotidiano a me surpreender com sua magia e também distorções, a música onipresente”. Continuaria: “Os textos fluíram semanalmente sem interrupção e hoje continuam a fazer parte do meu respirar. Uma ideia a chamar a atenção é acalentada, a tornar-se post durante a madrugada, quando o silêncio e a paz interior resultam no amálgama com a escrita que está a nascer. A reunião de todos os textos datados, sem as ilustrações que acompanham cada post, fez-se necessária, a fim de que o leitor possa seguir os caminhos, da evocação e do olhar, de um músico que observa sempre surpreso o mundo que o cerca”.
Para a publicação no formato blog, as imagens inseridas em cada texto substanciam aquilo que o notável filósofo Vladimir Jankélèvich definia como “instante do acontecido”. Utilizei algumas criações de nossa filha Maria Fernanda e muitas de meu saudoso amigo, o artista plástico Luca Vitali (1940-2013) que, ao ouvir minha ideia para o blog do sábado, já idealizava o desenho. Dizia a Luca que o amigo tinha um lápis no cérebro.
Em 2007, jurássico, nada entendia da internet e ainda hoje mal posso acompanhar os avanços cotidianos na área. Devo ao meu ex-aluno e amigo, Magnus Bardela, a iniciação nessa complexa área e o acompanhamento de minha lenta evolução durante alguns anos a um plano ao menos plausível. Com o tempo consegui realizar as montagens dos blogs semanais. Os textos que nascem de madrugada e recebem uma primeira leitura continuam a ser revistos, desde aquele ano, pela dileta amiga Regina Maria Pitta. Várias vezes mencionei Henrique Oswald (1852-1931), o nosso mais importante compositor romântico, que, ao escrever ao organista Furio Franceschini (1880-1976) sobre a revisão de sua sonata para órgão pelo músico nascido na Itália, comentaria que “o autor é mau revisor e entre estes, eu sou o pior”. Geralmente, após findar um texto, leio para minha mulher Regina que, por vezes, ainda pondera algo.
Nesses dezesseis anos houve concentrações temáticas devido ao meu interesse por determinadas áreas. Montanhismo voltado ao Himalaia; livros do escritor-aventureiro francês Sylvain Tesson; cerca de 100 pianistas já falecidos e que permanecem quase sempre pouquíssimo acessados na internet, verdadeiros avatares, em detrimento de determinados “astros” da nova geração cercados pelos holofotes. A profecia de Mario Vargas Llosa, ao escrever que a cultura erudita está erodindo na atualidade, é uma realidade. Recentemente pelas ruas parisienses não realizaram passeata em favor da música erudita?
A maioria dos blogs tendo a música como tema principal quase sempre é acompanhada de algumas gravações de excelsos pianistas ou as que gravei e estão no Youtube, graças à atenção do meu dileto amigo Elson Otake.
A lembrança desta data tem suas razões, pois à medida que o tempo se afunila, jamais saberemos sobre brevidade ou prolongamento. O que me parece certíssimo é o prazer da escrita e o surgimento constante de temas que me interessam e que repasso ao leitor. É a sua fidelidade o fundamento essencial ao incentivo. Continuarei. Se a mente humana é um mistério, segredos podem ser desvelados. Mistério e segredo são entidades bem diferenciadas. Do segundo, há sempre aqueles retidos no de profundis e que afloram repentinamente, do primeiro só há o insondável.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a “Valsa op. 38″, na interpretação de J.E.M.:
(100) Alexander Scriabin – Valse Opus 38 – José Eduardo Martins – piano – YouTube
March 2, 2007 marks the beginning of my blog and the socializing with readers. It is sixteen years of uninterrupted posts published every Saturday. In the 848 posts that I wrote I have tried to transmit my impressions when faced with cultural themes that have an impact on me, especially music.